Primeira Leitura | ||
Há no PT, obviamente, uma cultura de solene desprezo pela democracia. Não há grande diferença entre comprar o Congresso e fechá-lo | ||
Que Delúbio era aquele da entrevista? Com tanta desenvoltura este homem se esgueirava nas sombras e nos corredores do poder, que todos, vá lá, tínhamos dele outra impressão. Era de tal sorte onipresente, que éramos tentados a imaginá-lo dotado de alguns dons naturalmente maquiavélicos — emprego a palavra em sentido usual e apelando mesmo ao pensador florentino. Falava e articulava com tanta gente, que lhe atribuíamos poderes encantatórios, uma linguagem plena de sinuosidades sedutoras, a articulação verbal dos retóricos destinados a engolfar com o seu verbo as restrições adversárias; supúnhamos, talvez, a contundência de um Cícero aliada à capacidade sentenciosa de um Catão: arrasador, imperativo, hierático, pleno de autoridade simbólica. E, no entanto, o que se viu? Um homem que parecia acuado pelo oxigênio, com a fala entrecortada pela respiração traiçoeira, as frases desarticuladas em anacolutos, o olhar perdido, buscando na platéia algum ponto amistoso em que se fixar. Monocórdio, negava, negava e negava. Transcrita, boa parte de sua fala não faz sentido. Era composta de pedaços de uma história que hoje, obviamente, gira em falso. A barba hirsuta lembrava um carnaval ideológico antigo, incongruente com o terno preto, porém com gravata vermelha, o que me fez lembrar de Resíduo, aquele poema de Drummond que começa afirmando "De tudo ficou um pouco" e conclui com o emblema das raspas e restos que sobram: "Às vezes um botão. Às vezes um rato ." Ao vê-lo ali — português claudicante, plurais fugidios, concordâncias hostis, lógica trôpega, sintaxe acabrunhada —, tive quase a tentação de lhe dar a mão, com a solidariedade a que somos tentados sempre que vemos alguém em dificuldade. Por que não crer, afinal de contas, no que nos dizem os outros homens, nós todos, que temos o dever — o dever da tolerância — de acompanhar Terêncio na máxima de que nada do que é humano nos é estranho? E a resposta me vem pronta, arrasadora: porque Delúbio não é um, mas uma legião. Sua rusticidade aparente esconde um método. Seus sinais exteriores de um orgulho avaro, pequenino, quase suplicante, não combinam com o homem que anda precedido de batedores, em companhia de seguranças, num carro blindado. Mas Delúbio, ainda assim, usava uma gravata vermelha... Então chego agora ao ponto. Quem estava sentado naquela cadeira era um dos expoentes da nova classe social que se formou no Brasil e que luta desesperadamente não apenas para manter, mas também para ampliar seus privilégios. Como ele mesmo lembrou, está na luta faz muito tempo, mais de 30 anos, 25 deles dedicados ao PT, parte desse tempo passado na CUT, a verdadeira incumbadora de quadros para tomar conta do Estado. Só estava sentado naquela cadeira porque foi, e isso ele mesmo disse, o homem encarregado de cuidar da base material das alianças de seu partido com as demais legendas. Com uma gravata vermelha. Sua aparência bronca, desarticulada, é, na verdade, a revelação de seu poder. A hierarquia na burocracia soviética era inversamente proporcional ao refinamento intelectual do dirigente. A despeito do servilismo de boa parte dos intelectuais ao PT, o poder, de fato, no partido, sempre foi hostil à inteligência. A elite sindical nunca deu a menor pelota para o que pensavam Antonio Candido, Marilena Chauí, Francisco de Oliveira (hoje ex-petista) ou o "inteligente" da hora do petismo, Renato Janine Ribeiro, que ascendeu na burocracia universitária. Sua mais recente contribuição intelectual ao socialismo é um livro sobre televisão. Deveria ser mais "orgânico" e escrever na revista Capricho, para educar o povo, e na Caras, para dar lustro filosófico às elites de banheira, aliadas de Delúbio, que usava uma gravata vermelha. Estava lá por quê? É este um mecanismo muito comum de psicologia individual e coletiva: o sujeito passa a operar sem qualquer limite, nem mesmo aqueles que toda guerra tem, porque parte da suposição de que o inimigo faça a mesma coisa. No começo, o auto-engano e a autojustificação sopram-lhe ao ouvido que ele está sujando as mãos por necessidade imperiosa, para evitar o mal maior. Depois de algum tempo, ele acaba dependente da bandalheira contra a qual originalmente havia se lançado. De um reformador do statu quo, eventualmente revolucionário, torna-se beneficiário do sistema e já não quer mudar mais nada. É por isso que assistimos agora, tardiamente, ao esforço patético de Lula para tentar pôr na agenda a reforma política. A mesma à qual o seu partido e ele mesmo davam de ombros até ontem. Algum desejo reformista está na origem do PT? Está, sim. Ainda que falasse a linguagem confusa e essencialmente autoritária da esquerda. Mas logo o partido percebeu a grande vantagem publicitária que hauria de falar a linguagem de esquerda, ao mesmo tempo em que ia se imiscuindo nas estruturas do Estado que dizia querer mudar. Quando chega, finalmente, ao poder federal, havia consolidado já, segundo a tática do entrismo, posições estratégicas nos Três Poderes. Mudar o quê? Só o que sirva para o crescimento do partido e para a consolidação da nova classe. Não dá para saber se a CPI vai ou não encontrar alguma prova contra Delúbio, mas é bom não ter muitas ilusões. E quem me informa isso é justamente essa reforma polícia, a panacéia da hora. Ainda que institua o financiamento público de campanhas, ainda que se proíbam doações individuais e de empresas, o esquema de que Delúbio é acusado, se existiu, seria imune a qualquer lei. Até porque, convenha-se, proibido ele já é hoje. Podemos e devemos nos organizar em favor de leis mais restritivas e mais severas na área, mas nada substitui a ética pessoal e a moral partidária. Trata-se de saber até onde um partido acha que pode chegar para realizar o seu "projeto". Durante longos oito anos, para ficar nos dois governos FHC, o PT acusou o tal "neoliberalismo" e a "venda do patrimônio público" — e Lula, por incrível que pareça, insistiu nessa ladainha naquele discurso em que falou sobre o sexo da Petrobras (leia a bobagem nesta edição). Agora no poder, opera uma espécie de privatização branca é de todo o Estado brasileiro, não das estatais. Entendam bem: não é sem projeto que o faz, ainda que os petistas estejam se revelando desastrados, amadores, na consecução. Mas há, obviamente, uma cultura de solene desprezo pela democracia. Não há grande diferença, a não ser para os cofres — que são sempre públicos, mesmo quando o dinheiro originalmente é privado —, entre comprar o Congresso e fechá-lo. Delúbio parece ser a síntese do encontro do stalinismo renitente no petismo — democracia é coisa de fresco ou de ingênuos! — com o pragmatismo da nova classe social. Fortunato era um só. Delúbio, com sua gravata vermelha, é uma estirpe. |
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Thursday, June 09, 2005
A gravata vermelha de Delúbio Por Reinaldo Azevedo
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