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Wednesday, December 28, 2005

A IMAGEM DE LULA: DANUZA NÃO FALA SOZINHA

A IMAGEM DE LULA: DANUZA NÃO FALA SOZINHA
27.12, 17h55
por Paulo G. M. de Moura, cientista político

A observação atenta - compulsiva até - da dinâmica da conjuntura política, treina o analista para os detalhes e os indicadores que, muitas vezes, passam desapercebidos do olhar leigo. A experiência, a teoria, o conhecimento de pesquisas e técnicas de estudo do comportamento político e o acompanhamento diário e obsessivo dos acontecimentos políticos e econômicos através da leitura de diversas fontes de informação, desenvolve no analista uma sensibilidade que explica, muitas vezes, a capacidade de antecipar fatos e tendências.

Nesse contexto, é comum perceber, inclusive, que insights que integram minha relação de temas para futuros artigos – que terminam adiados ou não publicados pelo atropelo dos acontecimentos – apareçam nos textos de outros analistas que, na mesma situação profissional, terminam vendo o que os leigos não conseguem ver, ou somente perceberão quando a dimensão oculta dos fatos já veio à percepção das maiorias.

Algumas das ferramentas de trabalho mais preciosas de um cientista político são as pesquisas de opinião, qualitativas e quantitativas. Cada uma a seu modo, as duas técnicas, operando combinadas, são instrumentos poderosos para a análise do comportamento político e para a orientação estratégica para a ação. Na impossibilidade de dispor desse tipo de instrumento aferindo tudo o que se gostaria de aferir sobre a percepção da política pela opinião pública, resta-nos recorrer à sensibilidade adquirida pela prática, para observar com atenção os sinais que a realidade emite, e que podem ser considerados indicadores, e não apenas fatos isolados ou dimensões irrelevantes da cena política.

A percepção da imagem de Lula que Danuza Leão expressa na sua entrevista à IstoÉ Dinheiro é um desses casos. Quero dizer, ao afirmar que "a nítida impressão de que esse foi o ano em que as pessoas se cansaram do presidente Lula. Ninguém o agüenta mais, não dá mais para ouvir a voz dele ou ver a figura dele na televisão. Cansou. Enjoou. Para mim, 2005 é o ano em que essa exaustão fica marcada", Danuza Leão está expressando um sentimento que não é só seu, mas de uma parcela expressiva da opinião pública brasileira.

Essa constatação, que faço sem ter a oportunidade de avaliar pesquisas qualitativas de percepção da imagem de Lula pela população, nasce, em primeiro lugar, de um sentimento compartilhado. Apesar de orientar minha observação da dinâmica da política pela ótica de Maquiavel (na leitura hermenêutica e epistemológica de sua obra e não na percepção vulgar que se tem desse pensador como pretenso defensor da maldade na política), não menosprezo o poder da intuição e dos sentimentos difusos como instrumento de alimentação da análise política.

Quando esse sentimento é apenas meu, tomo o cuidado de armazená-lo nalguma gaveta do cérebro, a espera de que a dinâmica da política forneça outros indicadores capazes de me permitir avaliar se aquela percepção primeira é apenas minha, ou se ela expressa sentimentos e percepções de mais gente, a ponto de permitir retirá-la da gaveta e transformá-la em artigo publicável.

É o caso presente. Apesar da frieza e objetividade com que devo orientar minha análise, confesso a você leitor, que, de uns tempos para cá comecei a sentir asco - perdão Lula - mas é esse mesmo o nome do sentimento; asco, ao ver e ouvir o presidente da República em seus pronunciamentos e entrevistas à mídia. Mesmo tendo a obrigação profissional de vê-lo e ouvi-lo toda vez que fala, não raras vezes não resisto ao impulso de desligar o rádio ou a TV, deixando para ler o conteúdo da fala em algum site depois, só para não ter de ver a cara ou ouvir a voz de Lula. É um erro, pois a imagem e som também fornecem informações qualitativas relevantes ao analista. Mesmo assim, não resisto ao zapping para outro canal.

Não obstante, guardei meu sentimento naquela gaveta do cérebro a que me referi algumas linhas atrás. Mas, comecei a ouvir cada vez mais pessoas, em diferentes círculos sociais, expressando o mesmo sentimento; a mesma percepção. No entanto, como circulo em ambientes em que predomina a antipatia pelo petismo, resolvi manter minha percepção na gaveta, apesar de, nos últimos tempos, ela ter começado a transbordar de tantas observações similares que fui acumulando.

Ao analisar o "personagem difícil", Lula, preferi - como no artigo publicado em 20/12/2005, "A candidatura Lula tem salvação?",- apoiar-me em informações sobre pesquisas publicadas e não publicadas que circulam pelas páginas da imprensa e nos sites e blogs de política, para falar da impressão que tenho sobre a irreversibilidade dos danos causados por Luis Inácio Lula da Silva à imagem de Lula.

A entrevista de Danuza Leão foi o indicador que me faltava para tirar o insight da gaveta. Como escreveu a companheira Eliane Cantanhêde na Folha de São Paulo, referindo-se ao camarada Zé Dirceu, Danuza não fala sozinha. Ao contrário, reflete uma tendência. Não tenho dúvidas, agora, que se a imagem de Lula for submetida ao teste de uma bateria de pesquisas qualitativas com grupos focais, esse mesmo sentimento aparecerá como expressão de uma parcela significativa da opinião pública. Não sei que percentual da população sente o mesmo, mas o perfil sócio-econômico e cultural de Danuza, assim como dos círculos sociais em que ouvi a mesma leitura da imagem do presidente, é um indicador relevante.

Mais importante do que apenas o percentual dos que percebem Lula assim, é a qualidade do sentimento revelado: enjôo, asco, saturação, cansaço. Esse é o conteúdo qualitativo dos 46% de rejeição a Lula, que a última pesquisa CNT/Sensus apontou. Esse tipo de sentimento é de muito difícil, senão impossível, reversão. É isso que chamei de "carcinoma na face de Lula" no artigo a que me referi antes.

Não sei não, posso estar errado, mas acho que Lula está politicamente morto como candidato a cargos majoritários. Sua liderança foi desmistificada. Sua ascendência política está restrita a uma parte, apenas, do petismo robotizado. E só.

Tuesday, December 27, 2005

VALDO CRUZ Missão impossível

FOLHA
BRASÍLIA - O governo Lula vai mudar sua estrutura de comunicação no próximo ano. Descobriu que se comunica muito mal. É a desculpa de sempre de todos os governos quando se sentem acuados.
Não que seja uma inverdade. É fato que esse governo é ruim de comunicação -marca da administração petista desde seu início, a despeito dos elevados gastos de publicidade.
Exemplos não faltam. Recentemente, reclama um ministro, o governo não soube planejar nem faturar a divulgação de dois dados positivos para o presidente Lula:
O pagamento antecipado da dívida com o FMI (Fundo Monetário Internacional) e os números da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio) indicando melhor distribuição de renda em 2004.
Nos dois casos, critica esse auxiliar de Lula, o governo tentou faturar a boa notícia apenas depois de sua divulgação, mesmo assim de forma totalmente descoordenada.
Lula espera que o novo secretário de Comunicação, a ser anunciado no próximo ano, acabe com essa falha. Pretende ungi-lo de poderes para tal, devolvendo ao futuro comandante da área o status de ministro.
A partir daí, o presidente sonha acabar com uma situação com a qual não se conforma: seus assessores lhe apresentam tabelas com indicadores melhores do que os da era tucana, mas essa avaliação não estaria chegando à população.
Tudo bem. Talvez o governo consiga, agora, faturar mais suas boas notícias. Mas essa é uma solução cosmética. Afinal, não está aí o principal foco de desgaste petista.
Não há, no planeta, profissional capaz de fazer brilhar a imagem de um governo cujo partido montou um escandaloso esquema de caixa dois, com farta distribuição de dinheiro ilegal entre deputados. Sem falar nas taxas medíocres de crescimento da economia. É preciso mais ação e menos discurso.

Monday, December 26, 2005

O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade

O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade
Por Reinaldo Azevedo

O Estadão me convidou para escrever um texto sobre as rampas antibandido que a Prefeitura de São Paulo construiu na passagem subterrânea da Avenida Paulista com a Dr. Arnaldo. O jornal sabe que apóio a ação. Não apenas aquelas rampas: eu cercaria todos os baixos de viaduto da cidade. Recomendo ao prefeito José Serra que, assim procedendo, imite as prefeituras petistas de Belo Horizonte e Santo André.  O texto foi publicado no sábado passado (clique aqui para ler). O jornal me informou que padre Júlio Lancellotti talvez escrevesse um artigo atacando a medida. Ele o fez ( clique aqui).

Eu e Lancellotti divergimos sobre rampas, catolicismo, teologia, ideologia, política... Como, em religião, eu sigo estritamente os ensinamentos da Igreja Católica, a começar do Catecismo recém-lançado, com apresentação de Bento 16, um de nós dois está fora da ordem. E posso assegurar, página sobre página da Bíblia (a oficial, não aquela que certos padres interpretam como querem — o livre exame do Texto Sagrado, diga-se, tem importância crucial no catolicismo há quase 500 anos...), que não sou eu. Além dos fundamentos, padre Júlio não deve ignorar, há os pilares que sustentam o edifício católico, que ele rói cotidianamente com sua atuação particularista, discriminatória e partidarizada.

Tive a impressão — e pouco me incomoda (direi adiante o motivo deste registro) — que ele leu meu texto antes de escrever o seu. As referências a algumas questões que levantei são explícitas. Não sei se o jornal lhe passou o meu artigo. Se o fez, está bem feito. É chato para o padre, que se torna apenas reativo. Em vez de desenvolver argumentos novos, fica numa postura puramente defensiva. A surpresa é a graça da vida. Ele não deve achar.

No mês que vem, terei um programa diário de TV, ao vivo. Não redigirei comentários previamente nem quero combinar as indagações que o interlocutor (interlocutora no caso) fará no ar. Ou afetaríamos aquela informalidade estudada que vejo em alguns telejornais e que me matam de vergonha. Só não vale me perguntar quantos quilômetros quadrados tem o Turcomenistão. Não sou o Google. O padre, pelo visto, gosta de um jogo combinado. Comigo não, violão. Quanto mais a quente, melhor.

Bom, vamos lá, de volta. Pobre Igreja Católica que já teve São Jerônimo, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino. E que agora tem Frei Betto, Júlio Lancellotti e Leonardo Boff — este botado pra fora, com o barulho habitual. Quem se interessar pela história da instituição saberá que foi sempre um suceder de ameaças de cismas. Ao menos dois fizeram história: o catolicismo oriental e o protestantismo. O resto se perdeu na poeira do tempo, em particularismos e maluquices várias. Assim, sei bem, os Lancellotis da vida, sem representarem uma ameaça à doutrina, tampouco são uma novidade.

Se sinto algum pesar pela Igreja, nem tanto é pelo risco, então, que ela corre com ministros dessa qualidade (de fato, ele é pequeno), mas sim pela indigência da argumentação, seja a racional, seja a teológica. É por isso que muitos fiéis preferem os truques de mágico de circo do interior de certos pastores neopentecostais a continuar no rebanho católico. E olhem que esses caras até falam línguas estranhas em seus cultos — o que também é indício do demônio, diga-se... O texto assinado pelo padre não faz sentido. É pior do que a glossolalia de araque desses picaretas que se dizem pastores. Nos dois casos, é evidente, o Espírito Santo passa longe. É pomba, mas não é burra.

Lancellotti começa negando que ele próprio e "as entidades" (que ele controla) façam o culto da miséria ou queiram os miseráveis na rua. Em seguida, ele dá um salto e defende que os mesmos miseráveis fiquem... na rua! Sua principal reclamação nada tem a ver com o bem-estar dos assistidos. Ele está bravo porque diz que a prefeitura agiu sem consultar as... "entidades"! Bingo! Eu estava mais certo do que imaginava: ele se considera o dono desse latifúndio e não aceita que ninguém invada o seu território. Os pobres são de Lancellotti como o céu é dos urubus. De olho (ou faro), como se sabe, na carniça ou na promessa dela, quando identificam um moribundo.

O padre comanda uma entidade  — se é diretor ou não, pouco importa — que recebe R$ 420 mil mensais da Prefeitura. Também é funcionário da Febem, o que pouca gente sabe. Não quero saber o que ele faz com o dinheiro que ganha sem trabalhar. Isso tudo poderia fazer dele um profissional da assistência social, mas ele preferiu ser um profissional da miséria. E noto à margem: já um profissional da assistência estaria impedido de ser um pastor, que deve antes cuidar de alimentar a alma de seu rebanho. Não me oponho, muito ao contrário, que este senhor vire um ongueiro ou um militante do PT. É o que eu acho que ele deve fazer. Mas que largue a batina.

Falo, claro, por metáfora ou metonímia. Todas as vezes em que o vi, ele estava sem a dita-cuja. Bento 16 me decepciona um pouco. Padre tem de usar batina. E de saber latim ao menos para ler a Vulgata, um latim para semi-analfabetos, que não permite pegar um Cícero de frente, é claro. Duvido que Lancellotti saiba até esse. Não sabe nada. Está ocupado demais em fazer a sua caridade autoritária para aprender alguma coisa.

A rampa virou apenas o aspecto mais vistoso de sua militância contra a gestão do prefeito José Serra. Ele se mobiliza contra todas as ações da Subprefeitura da Sé no Centro da cidade. É o coronel dos moradores de rua, dos catadores de papelão, das crianças que cheiram cola nas praças, dos menores ambulantes. Esse Mamãe Ganso da Ideologia da Miséria Organizada espalha as suas asas imensas para proteger os seus pobres e não aceita que ninguém os proteja do seu "amor".

Não adianta ele se fazer de ofendido comigo. Eu não dou a menor bola para o seu muxoxo. Se é padre e quer ajudar, que colabore com a Prefeitura de São Paulo e ajude a convencer os sem-teto a buscar abrigo nos albergues; se é padre é quer ajudar, que colabore com a Prefeitura de São Paulo e torne esses albergues locais, como direi?, catolicamente corretos: não porque se vai ministrar religião lá, mas porque se vai tentar garantir uma condição de vida condizente com os irmãos em Cristo, que somos todos aqueles que professamos tal crença.

Mas não! Lancellotti não vê mal nenhum em, por exemplo, satanizar a gestão Serra ou Andrea Matarazzo, subprefeito da Sé, que tem feito um trabalho exemplar na cidade, revitalizando o Centro e devolvendo-o ao Estado de Direito. É verdade: a prefeitura, sozinha, não consegue dar cabo da miséria. Ela deriva, diga-se, em boa parte, da política macroeconômica que Luiz Inácio Lula da Silva, um aliado do padre-coronel dos pobres, põe em prática.

Acho uma graça o beicinho de Lancellotti para o meu texto e o pito que ele dá no Estadão.  Vejam o que ele escreve: "Considero importante o debate sobre questões públicas com o pluralismo próprio da nossa sociedade que o jornal O Estado de S. Paulo quer garantir com total e ampla liberdade. Mas me causa estranheza e constrangimento que tal 'pluralismo' seja exibido à custa da desqualificação do interlocutor, com ofensas pessoais que mais parecem oportunismo que pluralismo". Não é bonito? Ele gosta do plurarilismo, desde, é claro, que seja aquele dos que concordam com ele. Lancellotti estava acostumado a falar sozinho. Ele ameaçava botar o seu bloco na rua, decretar a sua fatwa, e todos se recolhiam. Não havia ninguém que lhe dissesse o óbvio: ele se comporta como militante petista, não como padre; ele se comporta como um cultor dos valores da miséria, não como alguém que se organiza para combatê-la.

Eu não o desqualifico como pessoa. Não o conheço e não quero conhecê-lo. As humanidades que ele estreita no peito como indivíduo não me interessam. Eu questiono e, com efeito, desqualifico a sua ação como sacerdote — que considero sectária, particularista e anticatólica — e a sua atuação como militante político. Quando o Centro da cidade era conhecido como Cracolândia, com os miseráveis, incluindo crianças, largados ao relento, seqüestrados pelo tráfico e consumidos pelo crack, sob o olhar benevolente da gestão Marta Suplicy, eu nunca o vi protestar. Ao contrário: era papagaio de pirata da prefeita. Foi seu cabo eleitoral. E quero que ele diga que estou mentindo, com a mão posta sobre a Bíblia.

Não, padre! Eu nada tenho contra o senhor. Apenas lhe sugiro que deixe o Poder Público fazer o seu trabalho. A sua Igreja Católica não é mais Estado. Deve ser parceira nas obras de ação social, oferecendo — e jamais impondo! — o humanismo cristão como norte ético das ações do Estado. Não é o que o senhor vem fazendo. Ao contrário: pretende arrostar com este Estado, satanizá-lo, submetê-lo à expiação pública. Quando o senhor falava sozinho na mídia, nunca apontou a parcialidade. Agora que tem uma voz contrária à sua dividindo espaço no jornal, faz-se de ofendido porque eu o estaria "desqualificando". E me acusa de oportunista. Desde quando bater em padre com fama de caridoso rende popularidade? O senhor fique tranqüilo. O senhor continuará a ser convidado para seminários em que se discute o Brasil do século 25!!! Enquanto houver miseráveis que lhe façam a fama, a sua fortuna crítica estará garantida. Há demanda no mercado para o tipo de produto que o senhor oferece. Ademais, as suas virtudes de marqueteiro são inequívocas. Em pior situação fico eu, que lhe dou a chance de posar de vítima.

Segundo entendi, e já caminhando para a conclusão, Lancellotti prefere não responder ao que realmente importa no meu texto — por que ele não ajuda a tirar as pessoas da rua? — e rezar por mim, jogando toda a responsabilidade de sua atuação nas costas da Igreja Católica, que aprovaria as suas atitudes. Aprova? Ela tem sido historicamente tolerante com desvios — das mais variadas naturezas — e é bem provável que acolha Lacellotti como uma daquelas ovelhas que, embora teimosas, não devem ser deixadas pelo meio do caminho. A esperança é a de que acabe se integrando. É um erro. Não vai acontecer nunca. O capítulo das heresias é dos mais fascinantes da história do catolicismo.

Infelizmente, a Igreja é um lugar propício ao acoitamento de vocações que preferem se exercer nas sombras. O padre, é óbvio, é um político. Eu já o teria obrigado a voltar para o seminário e estudar de novo os Textos Sagrados e a doutrina ou a deixar a Igreja e se filiar ao PT. Segundo entendi, ele ora por mim. O que dizer? Não sou arrogante a ponto de dispensar as orações. Quero crer que sejam em favor do meu bem-estar. Ou ele não ocuparia os ouvidos do Altíssimo. Deixo-lhe uma recomendação: não faça de seu perdão um clichê e da oração em favor dos "caluniadores" um gesto de soberba. É pecado. Até porque, padre, eu nem o calunio nem o delato. Eu apenas o relato.

Ministério Público
Li no Estadão que o Ministério Público Estadual vai instaurar um inquérito civil público para apurar as razões que levaram a Prefeitura a construir as rampas. Noticia o jornal: "O promotor da Infância e Juventude, Vidal Serrano, disse que os argumentos da subprefeitura não o convenceram. 'Se é um problema de segurança, não vai adiantar, porque as pessoas mudam para a quadra seguinte e continua a ter assalto.' Para investigar o caso, o promotor atuará em parceria com outra promotoria criada para cuidar especificamente do povo da rua. A promotora responsável será Fernanda Leão de Almeida. 'Pediram que alguém especializado no regime jurídico de moradores de rua trabalhasse junto', explicou Fernanda." Ora, "inquérito" para quê? Esses ilustres representantes do MPE já sabem tudo e já deram a causa como transitada em julgado. Nunca se conformaram em ser promotores. Sua vocação sempre foi a de ser juiz. E juizado absoluto. De última instância. Até o fim dos tempos.

Sugiro, doravante, que a Prefeitura, a cada vez que for instalar um sinal de trânsito para evitar acidentes, consulte antes o promotor Serrano. Caso se chegue à conclusão de que colisões continuarão a acontecer, é de se perguntar: "Sinal para quê?". Tudo isso já foi muito além do ridículo. Como diria Millôr, esse pessoal é realmente um espanto: sempre que chega ao limite, avança mais um pouco.


[reinaldo@primeiraleitura.com.br] Publicado em 26 de dezembro de 2005.

ALBERTO DINES E ZÉ DIRCEU

Por Alberto Dines

Dirceu e seus heterônimos

Tragédia, Tarso Genro foi o primeiro a servir-se desta palavra, ainda em Junho, para definir o que estava acontecendo com o PT. O ex-ministro da Educação viu nela o sentido de catástrofe, desastre, infortúnio. Sempre na esfera política, plural. E, por extensão, histórica. Não teve tempo para verificar que a tragoidia grega significa literalmente, o "canto do bode", lamúria religiosa entoada antes do sacrifício de um bode nas festas de Baco.

Leia também:




Leia abaixo o texto

Oferenda aos deuses para aplacar suas iras diante da falência da condição humana, tragédia tem a ver com o ritual do sacrifício, expiação, submissão aos desígnios superiores. Assim a viu Shakespeare com suas tragédias políticas encabeçadas por "Júlio César", sublime e dolorosa linha reta em direção às punhaladas no Senado.

A cassação do deputado José Dirceu traz a noção de tragédia para o nível pessoal, humano. Na aparência, o ex-ministro e ex-deputado está ótimo, firme no comando da sua vida: sabe exatamente o que quer, diz precisamente o que deve dizer, não comete impropriedades, não se deixa levar por qualquer emoção. Traçou uma estratégia, montou seu cronograma, faz sua ginástica diária, mantém a postura altiva, a vida regrada. Em nenhuma das aparições públicas, revela marcas das bengaladas com que os fados o castigaram por ousar ser dono do seu destino.

Para os menos avisados, era arrogante. Nada disso: Dirceu apenas ostentava a segurança daqueles que se sentem privilegiados pelos deuses. Certo de que estava certo, confundiu acertos e desacertos e, como diria Orestes Barbosa, pisou nas estrelas distraído. Seguro, sereno, imbatível e, miseravelmente vulnerável.

Tragédias gregas estão envoltas em clima nobre, elevado, combinação do grandioso com o funesto. Nas tragédias modernas, igualmente patéticas, os personagens podem exibir-se engravatados (ou com jogging) e as tramas desenrolam-se em cenários corriqueiros e amenos, como num anúncio de loja de eletrodomésticos.

O fim da votação na Câmara, à meia-noite da última quarta, não foi o último ato do fascinante percurso de José Dirceu e seus heterônimos. Na melhor das hipóteses pode ser o fim do primeiro ato. Os seguintes devem desenrolar-se ao longo dos próximos anos. Certamente usará o mesmo e mitológico nome para repetir o mesmo número - esta pode ser a sua perdição.

Ele mesmo a prenuncia ao prometer que vai começar a luta pela anistia. O bode sacrificado levanta-se para dizer que não se conforma com a degola. Sempre soube que se não fosse ele o castigado, o cutelo cairia no pescoço do presidente Lula. Esperneou e lutou certo de que não poderia ultrapassar um determinado ponto. Na hora aprazada, resignou-se. Agora se revolta contra a expiação acertada entre aliados e inimigos.

Assegura que tem as mãos limpas, não se serviu da dinheirama que correu pelo valerioduto e quando proclama que não é corrupto não finge, está convencido da inocência. Sua tragédia está justamente na esfera semântica, distonia na percepção das malignidades do agente e do paciente. O corruptor no universo de Dirceu não é um infrator, ao contrário, um emissário do destino para tentar as almas frágeis, seduzir os seres menores que mordiscam migalhas.

A tragédia dirceana alimenta-se numa sucessão de ilusões, uma delas no tocante à bravura. Desafiar os deuses não é necessariamente prova de grandeza moral. A pretensão à infalibilidade é um destes auto-enganos que não resiste à repetição. Sacudir a poeira e dar a volta por cima, como preconizou Paulo Vanzolini, costuma ser mais sensato. Dirceu, porém, não abre mão de ser Dirceu. Sabe que até Outubro de 2006 cada gesto, cada movimento e cada palavra que pronunciar, sobretudo para proclamar sua inocência, iniciará fatalmente uma nova pressão em cima do presidente Lula. Esqueceu que também neste caso a criatura não se equipara ao criador.

Esta é outra tragédia. Não propriamente de Dirceu, mas de todos nós.



Alma de dedo-duro POR Mauro Malin EM EM CIMA DA MIDIA

Leitor, se você quiser entender tudo o que o Observatório da Imprensa não é, leia a coluna de Diogo Mainardi na Veja, um concentrado de fofocas. Ele usou o nome deste Observatório no título mas não deu o crédito. Para fazê-lo, na Veja, precisaria ter um pouco mais de independência intelectual. Ou funcional. Ou seria moral?

No tempo da ditadura, a deduragem em colunas da imprensa foi usada para atacar jornalistas da TV Cultura que acabaram torturados na cadeia. O diretor de jornalismo da emissora chamava-se Vladimir Herzog e foi morto.

Os tempos são outros mas o espírito que move esse tipo de ataque é o mesmo.

Os jornalistas agredidos estão convidados a responder, se acharem que vale a pena.

A posição de Alberto Dines a respeito da cassação de José Dirceu está no artigo Dirceu e seus heterônimos , publicado ontem no IG.

Eis o texto de Mainardi:

Veja, edição 1934 . 7 de dezembro de 2005

Observatório
da imprensa
"Os lulistas reclamam da imprensa. Não entendo o motivo. Lula já teria sido deposto se jornais, revistas e redes de televisão não estivessem tomados por seus partidários.
Eu acompanho todo o noticiário político. Minha maior diversão é tentar adivinhar a que corrente do lulismo pertence cada jornalista. Não sou um grande especialista no assunto. Não freqüento o ambiente jornalístico. Tenho apenas quatro ou cinco amigos no ramo. E nunca fui de esquerda. Não sei direito quem é quem dentro do PT. Esses pelegos me parecem todos iguais. Mas tenho um bom olho para reconhecer o jargão lulista. Não preciso de mais de uma frase, perdida no meio de um artigo, para identificar um governista infiltrado.
O Globo tem Tereza Cruvinel. É lulista do PC do B. Repete todos os dias que o mensalão ainda não foi provado. E que, de fato, José Dirceu não deveria ter sido cassado. Cruvinel aparelhou o jornal da mesma maneira que os lulistas aparelharam os órgãos públicos. Quando ela tira férias, seu cunhado, Ilimar Franco, assume sua coluna.
Kennedy Alencar foi assessor de imprensa do PT. Ele continua sendo assessor de imprensa do PT, só que agora de maneira não declarada, em suas matérias para a Folha de S.Paulo. Ele é o taquígrafo oficial de André Singer, secretário de Imprensa de Lula. Singer dita e Kennedy Alencar publica.
Franklin Martins é José Dirceu até a morte. Eliane Cantanhêde é da turma de Aloizio Mercadante. Luiz Garcia é lulista, sem dúvida nenhuma, mas não consigo identificar sua corrente. Vinicius Mota é do grupo de Marta Suplicy. Quem mais? Alberto Dines é seguidor de Dirceu, e só se cerca de seguidores de Dirceu. Alon Feuerwerker, do Correio Braziliense, é do partidão, e apóia quem o partidão mandar. Paulo Markun, da TV Cultura, tem simpatia por qualquer um que seja minimamente de esquerda. Paulo Henrique Amorim é lulista de linha bolivariana. Ricardo Noblat era lulista ligado a Dirceu, mas pulou fora no momento oportuno.
Leonardo Attuch, da IstoÉ Dinheiro, é subordinado a Daniel Dantas. Quando Dantas está satisfeito com o governo, Attuch é governista. Quando Dantas está insatisfeito com o governo, Attuch vira oposicionista. Mino Carta, por outro lado, é subordinado a Carlos Jereissati. Tem a missão de atacar Dantas. E de defender a ala lulista representada por Luiz Gushiken.
Os jornalistas que não pertencem à área de Dirceu, Gushiken, Mercadante, Suplicy ou Rebelo em geral pertencem à área de Antonio Palocci. Nunca houve um político tão protegido pela imprensa quanto ele. Palocci tem defensores influentes em todos os veículos, sobretudo em O Estado de S. Paulo e Valor.
Nem mesmo VEJA escapa do tribunal macartista mainardiano. Os lulistas costumam definir a revista
como tucana, mas eu desconfio que ela esteja cheia de lulistas. Não posso revelar seus nomes por puro corporativismo. E porque não quero perder aqueles quatro ou cinco amigos na profissão."


Ver também Mainardi polariza.

COMENTÁRIOS:

Diogo Mainardi
Acredito no senhor Mainardi.Se a imprensa não estivesse tão ligada ao Governo e não recebesse fundos do Governo, já estaria batendo em Lula há muito tempo. Aliás, Lula sequer teria sido eleito. Pena que poucos são os jornalistas honestos e capazes. Por acaso, vocês não ouviram falar dos milhões de mortos do socialismo/comunismo? Que o socialismo/comunismo prende, arrebenta, mata (inclusive de fome), e faz calar a boca? Parabéns, senhor Mainardi.

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Mainardi
Vivemos em uma época de plena liberdade de imprensa,e é aceitável que um colunista expressa a sua opnião a respeito de seus colegas de profissão.

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Mainardi
Há algum tempo desisti de ler Mainardi. Achava-o um idiota bem pago e inócuo. Descubro agora que além das características já citadas ele resolveu virar X9. A merda é que um idiota pode ser perigoso.

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Diogo Mainardi
Parabéns Mainardi pela sua coragem e bravura que há tempo tem demonstrado sua capacidade de prever a catastrofe do governo LULLA e do PT para com nosso Brasil. Acredito que com mais esta tua provocação muito dos bons jornalistas irão cair na real.
Mainardi polariza

Pelo número e pelo teor dos comentários, não se deve subestimar o debate (às vezes não é disso que se trata, mas de xingação – dos dois lados) em torno do texto de Diogo Mainardi reproduzido em tópico anterior (Alma de dedo-duro ).

O ponto crucial foi abordado hoje por Alberto Dines no programa de rádio do Observatório da Imprensa: "No caso, vale o ditado ´ruim com ela, pior, muito pior, sem ela´. Estamos esquecendo que o primeiro passo para solapar a democracia começa com a desmoralização da imprensa. O resto desaba naturalmente. O governo e o partido do governo não gostam de uma certa imprensa. As direitas não gostam de outro tipo de imprensa. Neste confronto de interesses escusos quem perde é a instituição jornalística".

Diogo Mainardi se igualou ao governo e ao PT na tentativa de desqualificar a imprensa.

Mas existe algo que ainda não conseguimos, todos, perceber claramente. São indícios. Por exemplo, a exasperação dos comentários, a violência verbal. Seria um subproduto da crise do "mensalão"? Se vamos por esse caminho, a democracia recua, não avança.

Ao mesmo tempo, é importante ver a realidade sem véus. E tirar as devidas conclusões, embora cento e tantos comentários não sejam estritamente representativos da mentalidade de milhares de leitores. Mas são sinais.

Resumo em seguida respostas a diferentes comentários.

Em nenhum momento se disse que Mainardi não tem talento. Vou repetir a crítica: falta de independência intelectual e funcional. Ou, talvez, falta de independência moral (sempre em relação à Veja).

Delação: usou o mesmo estilo empregado durante a ditadura. Delação é sempre delação.

Mainardi não conhece o assunto que abordou. Pegou pela rama, fantasiou. Desde sábado abrimos espaço para respostas dos atingidos. Com uma ressalva: se achassem necessário responder. Até agora, ninguém achou. Para não alimentar uma polêmica secundária, personalizada, imagino. Eu poderia responder sobre a independência política e profissional dos que conheço pessoalmente, quase todos. Poderia mostrar erros bobos de Mainardi. Mas não quis entrar no território da fofoca.

Ao escrever o tópico, aceitei conscientemente outro jogo do colunista: reconhecer-lhe importância. Aceitei em respeito à Veja, gostemos ou não de sua linha atual. Em respeito ao que Mainardi já escreveu de interessante, ou relevante. Mas principalmente porque não se pode ficar omisso diante desse tipo de prática. Os jornalistas trabalham na maior parte dos casos em empresas privadas, mas têm responsabilidades sociais. Mesmo que não adotem uma atitude "pedagógica". Quando alguém ultrapassa certos limites, não se pode fingir que não se viu. A questão não é pessoal, é política.

Aproveito para esclarecer que comentários desacompanhados do nome e do sobrenome do autor não são publicados.

Dines vs Mainardi
Leio Mainardi assisto ao OI. Após ler "Dirceu e seus heterônimos" sinto muito, Dines, Mainardi tem razão! Por dois anos eu não compreendia como a imprensa podia ser tão conivente, subserviente e omissa com as besteiras do Lula. Precisou um jornalista "gringo" para vir a público algo que a imprensa conhecia e omitia (exceto Mainardi). Quanto às bengaladas em Dirceu: foram bengaladas que resgatam a alma do brasileiro, indignado de ter sido enganado, de ter depositado, com fé, muita fé, seu destino nas mãos de políticos, que tardiamente descobriu-se, altamente inescrupulosos!

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DEDO DURO NA FERIDA
Muito engraçada a reação dos jornalistas citados por Diogo Mainardi como Lulistas. Chamam-no de dedo duro e alcagüete, ou seja, dizem "fomos descobertos"... O Brasil precisa de jornalistas de talento e coragem ("e" não "ou"), pois a grande imprensa nacional não consegue reconhecer os pecados do seu cordeiro dourado que de tanto adorar sua história e a beleza da sua alma virginal, chegou ao poder, e hoje conta com um misto de complacência e auto-censura ressentida e envergonhada. Diogo Mainardi pôs o seu "dedo duro" na grande ferida da imprensa, que é sua cegueira em relação ao Lulinha paz e amor de 2002 e a quem pagava as contas dos seus jantares. A mesma cegueira que Bakunin não tinha, porque sabia dos homens que chegam ao poder pelos operários, lá se tornam opressores destes. Palmas a ele.

O macartismo mainardiano em ação – A.D.

Bomba! Acabou a lista negra da Veja – A.D.


Friday, December 23, 2005

Mauro Santayana e aPrimavera de Praga -comentários do blog do Noblat 23/12


Enviado Por: Oráculo de Delfos
PRIMAVERA DE PRAGA
Foi uma experiencia com amplo apoio da população tcheca e era uma tentativa de um socialismo dom face humana e cujo objetivo era des-stalinizae o pais, removendo o despotismo, o autoritarismo, promovendo liberdade de imprensa, de culto,de organização partidária e restauração dos direitos civís.Iniciou-se em 5 de abril de 1968 e foi brutalmene destruída pelos tanques soviéticos em 20 de agosto de 1968.
Mauro Santayana trabalhou na Rádio Praga após a destruição dessa experiência democrática até 1970 e apoiou o governo títere instalado pelos soviéticos.
Enviado Por: Oráculo de Delfos
Mauro Santayana(1932) é colunista da agência "Carta Maior". Em 1965 em Cuba foi chefe das emissões em português da Radio Havana e comentarista político da Rádio Praga após o esmagamento pelos tanques soviéticos do regime democrático conhecido como Primavera de Praga, iniciado em 5 de abril de 1968 e destruido pela invasão soviética em 20 de agosto de 1968

Wednesday, December 21, 2005

Quem manda no governo?

Quem manda no governo?

Sem a grandeza épica das guerras sertanejas, a reunião ministerial de segunda-feira faz lembrar um dos pontos altos da literatura de Guimarães Rosa, quando Riobaldo toma de Zé Bebelo o comando do grupo de guerreiros. Ao identificar a indecisão do chefe, Riobaldo pergunta, com a ingenuidade do astuto: "Quem manda aqui?" A diferença é que, na ficção, há um desfecho, e da reunião ministerial não houve rumo nítido.

Não estamos colocando em dúvida a autoridade presidencial. Adisputa entreos ministrosPalocci eFurlan reflete o conflitoentre o capital financeiro – felicíssimo com a alta taxa de juros, que vem, semestre sobre semestre, engordando os balanços dos bancos – e os empresários da indústria e do comércio.

Furlan acolheu, em sua crítica, a inquietação dos industriais brasileiros, que se reúnem naFiesp e na CNI. Como ministro da Fazenda, leigo no assunto e cumpridor das normas do Banco Central, Palocci falou em nome da até agora invencível Febraban.

O Brasil está diante dos dois como o bando de combatentes se encontrava nos inóspitos chapadões do noroeste de Minas. Na imaginação de Rosa, optaram pela ousadia de Riobaldo, levando Zé Bebelo a abandonar a disputa. É chegada a hora de o país escolher entre o Banco Central e a República. Não podem os bancos continuar ditando a vida política nacional, mediante controle monetário a seu serviço e embenefício dos que só vivem de juros, e não trabalham.

Em estudo minucioso sobre o FED, o banco central americano (Secrets of the Temple), o jornalista William Greider diz que a instituição, criada em 1913, impôs limites definitivos à democracia americana. Com o Sistema Federal de Reserva, o projeto de república democrática dos fundadores ficava restrito aos interesses do capital financeiro. Ora, o Sistema Federal de Reserva não tem o poder de que dispõe o nosso Banco Central, nem é controlado apenas por meia dúzia de executivos. Lá é realmente um "sistema federal", com seus 12 bancos centrais regionais, e formalmente mais subordinado ao Congresso do que ao Poder Executivo, embora seu presidente seja indicado pelo chefe do Executivo e aprovado pelo Senado. Mas, aqui, o presidente do Banco Central tem statusde ministro, o que o nivela a seu superior formal.

O Banco Central, tal como o temos, é a obra-prima do governo militar. Foi criado no último dia de 1964, pelo presidente Castello Branco, e nunca impediu as crises sucessivas no sistema bancário. Não soube prevê-las, como tampouco o FED foi capaz de adotar medidas prévias que impedissem a grande quebra do sistema, em 1929. Ao assumir a dupla função de dar normas ao sistema e o fiscalizar, o nosso Banco Central não tem feito uma coisa, nem outra. As suas normas, invariavelmente, são as do interesse dos grandes bancos, nunca as do interesse do povo. E paira, sobre o país, a ameaça feita por Dênio Nogueira, que foi seu presidente: "No dia em que for aberta a caixa preta do Banco Central, o Brasil quebra". Devemser tenebrosos os segredos guardados no templo negro do Setor de Autarquias de Brasília.

Quando houve a crise bancária –eoProer – noinício do governo Fernando Henrique Cardoso, tornou-se claro que o Banco Central não quisera exercer a fiscalização necessária sobre os bancos. As irregularidades eram ostensivas, mas o Banco Central protegeu os maus administradores. Com os escândalos mais recentes, ficou evidente que o Banco Central não acompanhou as atividades de algumas instituições, como o Banco Rural, cúmplice, oucriador, deMarcosValério. Agiuda mesma formana evasão de recursos por intermédio do Banestado e outros bancos menores, graças a uma portaria do Banco Central – conforme confessou à CPI truncada GustavoFranco. Falta um balanço sereno dos danos causados pelo Banco Central ao povo, nestes 41 anos em que assumiu o comando da vida nacional. Só com a diferença da taxa interna dos juros, pagos para "rolar" a dívida pública, e as dos países estrangeiros, poderia ter sido evitada a morte prematura de milhões de brasileiros.

É chegada a hora de uma administração realmente política colocá-lo a serviço da República.

[21/DEZ/2005]

Sunday, December 18, 2005

Teacher Pension Plan Faces Hurdle on Costs

The Washington Post

Teacher Pension Plan Faces Hurdle on Costs
Md. Union Seeks $480 Million Boost

By John Wagner
Washington Post Staff Writer
Sunday, December 18, 2005; C06

Maryland's two leading Democratic candidates for governor stood in solidarity this fall with the state's largest teachers union, pledging their support in a battle to improve what educators say are the worst pensions in the nation.

But since then, Baltimore Mayor Martin O'Malley and Montgomery County Executive Douglas M. Duncan seem to be suffering sticker shock after learning that the initiative could cost $480 million annually.

"Is that something they want to do all in one year?" O'Malley asked in a recent interview.

Duncan reiterated his commitment to "major reform" in a separate interview but said he is not prepared to commit to a dollar figure. "We need to work with them on something that is affordable and makes improvements," he said.

Their views are emblematic of the challenge that teachers face in a fight that will unfold most immediately in the Maryland General Assembly session that begins next month.

"This is something our members deserve," said David Helfman, executive director of the Maryland State Teachers Association, which has launched a lobbying campaign that includes "house parties" to raise awareness across the state and an online pension calculator so teachers can see how they stand to benefit.

Maryland teachers who retire after 30 years receive pensions equivalent to about 38 percent of their pre-retirement pay, Helfman said. That compares with a national average of about 57 percent. But Maryland's problem is exacerbated by the proximity of Pennsylvania, which has one of the nation's most generous systems. The plan the union is pushing would raise Maryland's figure to 60 percent.

"We have a very poor teacher pension system, and it does affect our ability to retain and attract good teachers," said Del. Murray D. Levy (D-Charles), among the lawmakers who have studied the issue since last session. "We want to do something, but exactly where it falls between nothing and $480 million is going to depend on a lot of other things."

Of the $480 million, about $315 million would go toward improving teacher benefits. An additional $165 million would be used to boost the pensions of other state employees, including some education support staff. Lawmakers have made it clear that they are not likely to help teachers without assisting the rest of the state workforce.

Several other factors are likely to complicate the debate. Maryland teachers contribute 2 percent of their salary toward their pensions -- one of the lowest percentages in the nation. And they fare relatively well in pay: Their average annual salary of $52,331 ranked 12th in the nation last year, according to the National Education Association.

Under the teachers union's plan, educators' contributions could rise to 5 percent of salary. But state employee representatives have expressed concern that lower-paid workers could not afford that.

Lawmakers say a major factor contributing to the lofty price tag is the union's desire to apply more generous pension calculations retroactively. Applying the new formula only to future years served would significantly reduce the cost.

But Helfman said that would be unfair to "educators who have provided a career of service to the children of our state."

It remains unclear how much support, if any, the effort will receive from Gov. Robert L. Ehrlich Jr. (R), who faces reelection next year and has sparred with the teachers' union in the past.

"The governor is interested in retaining and attracting qualified teachers and is looking at the issue," his budget secretary, Cecilia Januszkiewicz, said last week. She said it is premature to say whether Ehrlich will include pension increases in the budget he plans to submit to the legislature next month.

State Sen. Edward J. Kasemeyer (D-Baltimore County), who is his chamber's point man on pensions, said he believes "a significant upgrade" is likely.

But Senate President Thomas V. Mike Miller Jr. (D-Calvert) sounded a more cautious note, saying it would be hard to fund the proposal in full without raising taxes -- which he ruled out -- or finding another new revenue source. Asked whether he was referring to the legalization of slot machine gambling, Miller chuckled.

"I'm not going to push it this year," he said. "If it happens, it happens."

© 2005 The Washington Post Company

Friday, December 16, 2005

Por que acho que Lula não desiste

Por que acho que Lula não desiste
Por Reinaldo Azevedo

Quem lê este site sabe que fui o autor da tese original de que Lula não deveria se candidatar à reeleição. Isso foi lá no começo da crise. Queria evitar esses dramas despudorados todos e até facultar ao Apedeuta o trabalho de limpeza da área, ainda que seja o grande responsável por tudo. Creio que ele autorizou pessoalmente as operações de José Dirceu-Delúbio & Cia. Mas o poder é assim mesmo: os homens de confiança são fusíveis; queimam para preservar o chefe. Ocorre um apagão momentâneo, mas basta trocar a peça. Se Lula tivesse anunciado a disposição de sair de cena, a temperatura teria baixado, é claro. Em vez disso, ele saltou para o centro dela, certo de que nada colava na sua imagem, que seguiria a ser o demiurgo infenso à sua própria obra. O resultado é este aí: está se esfarelando. O que, em si mesmo, é excelente. E, agora, parece tarde para desistir.

Por que escrevo isso? Porque é claro que todos vocês já leram, nos últimos dias, dezenas de sugestões de que Lula pode desistir da candidatura. O que antes talvez tivesse até um aspecto virtuoso seria, agora, vicioso — esse particular, já que vício é com o PT, me faz flertar com a possibilidade, embora não acredite nela. Mas vamos adiante. Tivesse feito o que recomendei em junho, a esta altura, já se estaria construindo uma alternativa a seu nome no próprio partido. Eu errei numa coisa: subestimei a República de Ribeirão Preto e sugeri, à época, que fosse Antonio Palocci o substituto. Não pode ser, como se sabe. Se Lula desistir agora, será uma tentativa, obviamente, de melar o jogo, uma demonstração de irresponsabilidade (Santo Deus!, se é assim, estou começando a me convencer de que estou errado...).

Bem, vamos ver por que, segundo uma argumentação que considero racional (xiii...), Lula tende, sim, a disputar, embora as pesquisas de opinião apontem que ele está em franco processo de desconstituição eleitoral e de corrosão da imagem. Ainda que o presidente tenha uma propensão a pensar apenas em si mesmo; ainda que esteja mais para um arrivista do sindicalismo do que para um ideólogo de qualquer porcaria — socialismo, nacionalismo, terceiro-mundismo ou o que seja —, o fato é que o PT lhe confere uma identidade e é a máquina que garante a sua boa vida desde 1975. Se vocês pensarem bem, todos, no país, têm alguma ocupação, à qual até pode se juntar a política. A profissão de Lula é ser Lula. Há 30 anos, ele só faz isso. Sempre teve mais votos do que o PT e foi maior do que a legenda, mas é a agremiação que detém o controle de alguns órgãos do Estado, pouco importa quem esteja no governo, e que manipula os fios da institucionalidade.

Mesmo que Lula tenha autonomia e uma base social mais ampla, sem o PT, ele nada é além de uma Madre Teresa de hospício. Não há mais tempo para substituí-lo na legenda, e muitos são os interesses a ser preservados. O partido tem como correia de transmissão uma gigantesca rede de sindicatos, comandada pela CUT, e é o virtual dono de nove entre dez entidades de defesa disso e daquilo. Detém ainda parte do controle dos fundos de pensão, está entranhado nas estatais, na Justiça, no Ministério Público e nos órgãos de regulação e de prestação de serviços do Estado: da Comissão de Valores Mobiliários à funerária que distribui caixão para os pobres, lá está um companheiro.  É um monstro de mil tentáculos parasitando o país. A atual crise só expôs uma parte desse poder.

O PT, entendam bem, é só uma espécie de fachada legal de um Estado paralelo, que sobreviverá, sim, à eventual derrota de Lula. Mas, para tanto, é preciso ter viabilidade eleitoral, ainda que sobrevenha a derrota. Lula terá sempre um terço do eleitorado brasileiro, não importa se chuta a santa, rouba pirulito de criança ou cospe na cruz. Seus fiéis não dão a menor bola. Mesmo corroído, ainda é o líder. O partido precisa dessa fachada legal; precisa fazer uma bancada no Parlamento que tenha algum poder de negociação e de pressão. Contra os planos de Dirceu e companhia, o Estado legal, oficial, sobreviveu. E os petistas terão de negociar com ele.

Por isso, acho que Lula não desiste, mesmo que a derrota se afigure como certa. Isso não significa, no entanto, que o partido vá se acomodar e aceitar pacificamente o resultado das urnas. Nunca aceitou. Não seria desta vez. Uma parte, como sempre, vai fazer o jogo legal, fingindo acatar as regras da democracia. Mas a outra, a das sombras, a "ilegal", vai infernizar a vida de quem for eleito. A "firma", com características de máfia, tentará inviabilizar qualquer alternativa de futuro. Dispõe de aparelhos para tanto. O próximo governo do Brasil terá, por exemplo, de fazer uma nova reforma da Previdência. Imaginem Luiz Marinho, atual ministro do Trabalho, esfregando as mãos de satisfação, ameaçando marchar sobre Brasília em companhia de João Pedro Stedile. O que este tem a ver com a área? Nada, ora. E precisa?

O que quero dizer, em suma, é que os interesses são amplos demais para que Lula faça uma aposta tão arriscada. Já que falhou o Plano A — tornar a democracia representativa irrelevante —, volta-se ao Plano B: continuar a aparelhá-la e a sabotá-la em nome de supostos interesses coletivos. A nova classe social, de que Lula é o representante máximo, esta "burguesia do capital alheio", subsiste a uma derrota eleitoral. Vejam o exemplo em São Paulo: Marta Suplicy não me deixa mentir. É acintoso que seja considerada uma forte candidata ao governo de São Paulo depois do que fez na capital. O preço da sobrevivência do Estado de Direito será o eterno combate, a eterna vigilância.

Está morto?
De resto, Lula tem ainda alguns instrumentos à mão. O pior que pode acontecer às oposições é considerar que ele já é cachorro morto. Não é. Aposto alguns tostões como virão por aí algumas "medidas de impacto", tomadas na boca do caixa e da urna. Antecipação do pagamento ao FMI, auto-suficiência de petróleo (e, eventualmente, queda no preço do gás...) e números da economia supostamente favoráveis à atual gestão serão devidamente explorados no horário eleitoral gratuito. O PT também fará campanha, é bom ter claro.

Se querem saber, havendo uma esfriada nos escândalos, há tempo para Lula se recuperar e se tornar, sim, competitivo. O jogo, creio, tende a ser bem mais disputado do que os números atuais estão a indicar. O comportamento das oposições é algo preocupante. Raramente terá acontecido no mundo — no país, que eu me lembre, nunca! — de haver um candidato, como é o caso de José Serra, com 50% da preferência do eleitorado e que não é considerado um favorito. Fala-se muito na "fotografia do momento". Os números de Lula são o quê? Alguém garante que ele só vai piorar, jamais se recuperar?

Mas e se desiste?
Bem, se Lula desistir, certamente não será em favor de um petista puro-sangue, que vá levar "a mensagem" do partido. Teria de ser uma aposta em alguém com alguma viabilidade eleitoral, um Ciro Gomes, que pudesse ser mais "lulista" do que "petista" e que viesse para desorganizar o statu quo. É possível? É. Haveria um rearranjo das forças políticas? Acho que sim. Mas comporta algum risco também para o petismo, que teria de buscar um lugar e um discurso. Se o presidente for Serra ou Alckmin, a identidade do PT se recompõe. Até mesmo a antiga mística pode ser ressuscitada.

Se Lula abandona a corrida, estará fazendo uma aposta principal: não precisa ser Serra o candidato das oposições. A rigor, seria um esforço para tentar impedir a eleição de um tucano; valeria por um aceno em favor de uma renovação, uma vez que desapareceria a polaridade que toma conta da política desde 1994: PSDB x PT. Não é uma hipótese maluca, sei disso. Até porque o PT tentaria ser o condestável desse "presidente qualquer".

A despeito de tudo isso, acho que o Moderno Príncipe prefere se acomodar ao statu quo: um tucano no poder não deixa de ser um conforto. É uma realidade que o PT já conhece. De certo modo, ele o ajudaria a recompor a sua mística.

Ah, bem..., sempre resta a hipótese de Lula vencer. Aí será mesmo um deus-nos-acuda. Aí, meus amigos, todos os absolutos serão relativos. Que a Providência tenha, então, piedade de nós.

[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 15 de dezembro de 2005.

Thursday, December 15, 2005

Definição (ao completar 98 anos de idade) OSCAR NIEMEYER

Folha de S Paulo

Uma coisa que me agrada particularmente -quando sozinho passo a rever os velhos tempos- é constatar que essa revolta que sinto ao ver a pobreza crescer e se multiplicar por toda parte não decorre de um amadurecimento político que a leitura e a companhia de amigos progressistas muitas vezes propiciam.
Lembro, com satisfação, de como me incomodou (tinha apenas sete anos!) ouvir a minha avó materna dizer à empregada: "Tira esse pano da cabeça. Negra não usa isso".


Tudo isso explica minha adesão à luta política e essa convicção de que só o comunismo poderá criar um mundo mais justo


E recordo, já arquiteto, um artigo que publiquei no "Diário de Notícias", no qual falava de coisas antigas, inclusive desse episódio, do qual nunca esqueci, e, no dia seguinte, o escritor Tristão de Athayde -pseudônimo de Alceu Amoroso Lima (1893-1983)- a comentar o meu pequeno texto generosamente, se detendo na referência crítica que fiz a minha avó, para ele, pessoa muito boa, conhecida da sua família.
Tinha razão. Minha avó apenas repetia o jeito autoritário a que se habituara em sua fazenda de Maricá, um pouco amiúde, com certeza, levando o meu avô Antônio Augusto Ribeiro de Almeida a intervir: "Valha-me, Deus, Ribeira brava!".
Quantas lembranças guardo daquele tempo!
A velha casa em que morávamos, assobradada, com seis janelas na fachada, a sala de jantar, a longa mesa na qual a família se reunia, a sala de visitas e, depois, a extensa varanda que acompanhava a casa até o fim do terreno, a conversa que se estendia noite adentro a debater os problemas daquela época -mais fácil de viver, com certeza.
O meu nome deveria ser, na verdade, Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares, pois foi na casa do meu avô que nasci e vivi a vida inteira. Ele provinha de Maricá, das fazendas que o seu pai, Manuel Ribeiro de Almeida, lá possuía. Era sóbrio, tranqüilo, incapaz de levantar a voz para quem quer que fosse.
Eu e meus irmãos morávamos no andar de cima daquela casa que o meu avô para nós construíra. Já com 17 ou 18 anos, lembro-me bem, eu, como toda a rapaziada, só pensava em futebol e sacanagem, mas -o que não era comum- me preocupava também com a miséria neste mundo injusto em que vivemos, atuando na coleta de donativos para o Socorro Vermelho, já existente.
Apesar de ter sido ministro do Supremo Tribunal Federal por muitos anos, meu avô morreu pobre, apenas deixando para nós, hipotecada, aquela velha casa da rua Passos Manuel, hoje Ribeiro de Almeida. E passei a compreender, satisfeito, o exemplo que ele me deixara, esse desprezo pelo dinheiro que me acompanha a vida inteira, sempre voltado às obrigações familiares e aos que me cercam, e que procuro atender da melhor maneira possível.
Tudo isso explica a minha adesão à luta política, o meu ingresso no PCB (Partido Comunista Brasileiro), a minha integração àquele ambiente de solidariedade em que encontrei as melhores pessoas que conheci e essa convicção de que só o comunismo poderá criar o mundo mais justo que desejamos.
Nenhuma crítica com relação ao PCB, nenhuma palavra contra os erros cometidos, nenhuma dúvida quanto à vitória final.
A revolução de 1905, de outubro de 1917, a vitória contra o nazismo, a libertação de Cuba, tudo isso vai se repetir depois destes tempos sombrios que o capitalismo brutalmente instituiu e o império de Bush procura manter.
Como o tempo tenta nos enfraquecer! E o pensamento vigoroso de Sartre e, mais longe, a palavra revoltada de Schopenhauer a nos convencer de que a existência não tem sentido, que o homem é precário demais para ser levado a sério.
Mas a vida existe e o ser humano se multiplica com a força da natureza. Dar-lhe uma vida mais justa é o caminho que Marx propunha. Segui-lo de mãos dadas é o que a dignidade e a solidariedade humanas exigem.


Oscar Niemeyer faz 98 anos hoje. Arquiteto, é um dos criadores de Brasília (DF). Tem obras edificadas na Alemanha, na Argélia, nos EUA, na França, em Israel, na Itália, no Líbano e em Portugal, entre outros países.

Monday, December 12, 2005

Sem medo e sem ódio MAURO SANTAYANA

JB
Sem medo e sem ódio



Quem conviveu com Tancredo Neves, sobretudo entre 1974 e 1984, naqueles dez anos de intervalo entre a espetacular vitória do MDB nas eleições parlamentares e a campanha para as diretas que conduziu ao governo civil, via colégio eleitoral, recorda-se de seu conselho aos companheiros: agir sem medo e sem ódio. Era preciso confrontar-se ao governo militar sem medo dos radicais de direita, que ainda estavam no comando de tropas, mas sem ódio. O ódio é diferente da indignação, que é criadora. O ódio, mais do que estéril, é destruidor.

Estamos, nesta sucessão presidencial, ameaçados pelo ódio e pelo medo. A velha e incansável direita, sob o pretexto da vingança contra os métodos que o antigo PT empregava na oposição, está disposta a partir para o tudo ou nada, no combate ao governo. O governo, por outro lado, em lugar de desprezar a provocação, quer compará-la à oposição venezuelana. Por mais vizinhos sejamos, e por mais nos sejam comuns os adversários externos, os dois países nada têm a ver, do ponto de vista de política interna, um com o outro. Lula faz uma homenagem a Bornhausen e a certos setores mais alucinados do PSDB, quando os compara aos conservadores da Venezuela. Eles não têm audácia para tanto, mas podem sentir-se estimulados a saltos mais irresponsáveis, se o governo não os deixar dentro dos próprios limites.

Quando o Brasil se encontrava no impasse, uma vez que a luta armada demonstrara impotência para a derrubada do governo militar, a saída imaginada por Tancredo e outros foi a de criar uma força de centro, de tal maneira poderosa, capaz de empurrar para fora do processo a extrema direita e a extrema esquerda. A solução, desde que os gregos tiveram aquela idéia, era a democrática. E a democracia, pensem o que pensarem certos "cientistas políticos", é o centro, o equilíbrio entre as forças sociais. Esse equilíbrio vacila historicamente. Em certas ocasiões, prevalece o pensamento conservador, puxando o centro para a direita; em outras, impõe-se o pensamento solidário para com os pobres, empurrando-se a linha de talvegue do curso histórico para a esquerda. A grande força do sistema democrático é a certeza de que a inteligência política sempre se orientará para o centro.

Naqueles dez anos, o presidente Geisel entendeu que era preciso reduzir a pressão de direita, que chegara ao seu ponto máximo durante o governo Médici. Se continuasse o confronto, estimulado pela vitória militar no Araguaia, o Brasil poderia isolar-se da comunidade internacional e se transformar em ditadura ainda mais sanguinária, como a da Indonésia ou da Alemanha nazista. Geisel, com coragem, mas sem perder a prudência, desarmou os bolsões, começando por São Paulo, onde a aliança entre os grandes empresários e os torturadores, por meio da Oban, ameaçava o seu grupo nas Forças Armadas. O ato final foi a demissão de Sylvio Frota e a confirmação de Figueiredo como seu sucessor. Tancredo e Geisel (e, depois, Figueiredo), junto com outros militares e civis, agiram sem medo e sem ódio, contra o ódio de uns e o medo de outros. A situação, hoje, é outra, mas o Brasil é o mesmo. Não conseguimos avançar muito na solução de seus problemas mais profundos, que se resumem na questão social, no encontro de um projeto nacional de desenvolvimento que não desestimule o capital mas não eternize a injustiça; que pense na exportação, mas não despreze um dos maiores mercados potenciais do mundo, o que se encontra em nosso próprio território.

Não podemos, a pretexto de combater a corrupção (que os regimes fechados escondem, mas da qual sempre se valem) colocar em risco as conquistas democráticas. Uma coisa é punir os peculatários, outra é manter os ritos democráticos. A corrupção é um caso de polícia. As eleições são assunto político. Não convém voltar ao ódio, e muito menos ao medo. Que pensem nisso os defensores da radicalização. O Brasil é o mesmo, mas as forças sociais internas não são as mesmas de 40 anos antes, nem a situação internacional é igual à do início dos anos 90, da queda do muro de Berlim e de ascensão do neoliberalismo no mundo.


Sunday, December 11, 2005

Entrevista JB : Oscar Niemeyer: 'A gente vem, escreve uma história e vai...'

JB Online - Caderno B

  [11/12/2005]

 

'A gente vem, escreve uma história e vai...'

 

 

Estamos no estúdio de Oscar Niemeyer, num edifício niemeyeriano, com a fachada em curvas. Esta sinuosidade permite que a varanda onde estou se transforme num posto de observação suspenso sobre a Avenida Atlântica, descortinando-se abaixo de mim a curva amarela da praia e para adiante o mar de um azul profundo. A janela envidraçada tem 180 graus de visão. Copacabana em curva parece um traço esboçado por Oscar Niemeyer. As paredes brancas de todo o estúdio atrás de mim estão cobertas destes traços em preto, são mulheres, frases, mais curvas, fachadas, traços finos, velozes, deslizantes... Acabamos de fazer esta entrevista com Niemeyer e penso em como escreverei a sua abertura. Como passar em palavras o sabor desta conversa agradável com um dos maiores gênios brasileiros. Como traduzir em texto a sua arte, arquitetar com o concreto armado dos vocábulos pesados um arco imenso entre o jornal e os leitores, sustentando as vigas do raciocínio, porém tão leve e solto e belo como uma cúpula de Niemeyer, para que a abertura pareça flutuar como um prédio de Niemeyer... Não há uma nuvem no céu de primavera. Desisto e desfio mentalmente o lugar-comum em que pensam aqueles que conversam com o arquiteto: quando crescer quero ser como Niemeyer, quero chegar aos 98 anos, com esta saúde e esta lucidez espantosa, com uma vida plena de realizações, saboreando a fraternidade dos amigos, e consciente de como os seres são pequenos diante do cosmos porém cada um é uma pedra fundamental no projeto do universo. (Ricky Goodwin)

Luís Pimentel - O Festival de Brasília abriu com um documentário sobre sua vida chamado "A Vida é um Sopro". O cineasta disse que o título é em cima de uma frase sua onde diz que a vida é curta e deve ser vivida com alegria.

Oscar Niemeyer - A vida é uma mulher do lado e seja o que Deus quiser! Me lembro de João Saldanha, que dizia sempre: "A gente não pode fazer plano nenhum. Tem sempre alguma coisa que ocorre".

Pimentel - Por isso é que sempre encerrava suas crônicas com "Vida que segue".

Niemeyer - A vida é pouca coisa. A pessoa vem, cada um escreve sua histórinha, e o tempo apaga. Por isso é que digo que a arquitetura não tem importância.

Dermeval Netto - Tem uma frase sua escrita ali na parede: "O mais importante não é a Arquitetura, mas a vida, os amigos, e este mundo injusto que devemos modificar". Ainda dá para modificar?

Niemeyer - Minha vida vai seguindo alguns pensamentos: procuro sempre ser útil para as pessoas. O mais importante é ler. O comunismo é o caminho. O homem precisa arriscar. Lênin disse que é preciso sonhar senão as coisas não acontecem. Gosto de ver, por exemplo, Chávez sonhando que vai mudar a América Latina para que seja mais justa.

Ivan Alves- Você já começou a entrevista citando um amigo. Você sempre viveu cercado de amigos, de intelectuais e artistas de todas as tendências, de políticos que iam de JK a Prestes. A amizade, mais do que o trabalho, é o motor da tua vida?

Niemeyer - A amizade, os bons livros, as poesias do Gullar... Tenho a consciência de que a vida é um minuto e o que vale é a solidariedade. Acho importante não olhar para os outros como se fossem inimigos, descobrindo seus defeitos. Lênin dizia que se um homem tem 10% de qualidades isso já basta. O mundo é cheio de gente boa. Todo mundo tem um lado bom.

Pimentel - Na média, as pessoas com quem o senhor conviveu atingiram esses 10% de qualidades?

Niemeyer - Bom, na vida tem de tudo, né. É importante ser modesto. O sujeito inteligente, quando olha para o céu, sente como é infinito o universo. Tem um físico e filósofo que vem aqui toda terça para conversar sobre o cosmos. A gente se sente tão pequeninho!

Ricky Goodwin - À medida que o senhor vai se sentindo pequeno em relação ao cosmo, esse vazio não vai sendo preenchido por um espírito maior? Mesmo que não tenha um nome de deus? Niemeyer - É claro que alguns procuram uma explicação. A idéia de Deus parece  um momento de devaneio que a ciência logo desfaz. Paula Sack - Você acredita em Deus?

Niemeyer - Acredito em Shopenhauer.

Ivan - Dr. Oscar, o senhor construiu a Igreja da Pampulha e a Catedral de Brasília. Quando as pessoas entram naqueles espaços dizem sentir o espírito de Deus.

Niemeyer - Procurei ser útil para essas pessoas. Quando faço igrejas, as entradas são escuras para quando o sujeito passar para a nave sentir o impacto do contraste de luz. Na catedral fiz uma abertura de modo que a pessoa possa ver o céu e imaginar que o Senhor esteja lá esperando por ele.

Ivan - Além da amizade e do trabalho, que citamos, outro valor que move a sua vida é a coragem. Você tem uma grande admiração pelas pessoas corajosas, Me lembro de você contando do Agildo Barata sendo preso em 1935. Um tenente chegou: "Quem é o FDP do Agildo Barata"? E ele, com as mãos amarradas para trás, falou: "O Agildo Barata sou eu. O FDP é você".

Niemeyer - Quando estava clandestino, Agildo passava aqui e me chamava para almoçar. Ele colocava um chapéu e achava que estava disfarçado. Admiro muito o Agildo, Marighella, teve muita gente boa, pessoal que foi torturada e continuou firme, querendo brigar para mudar as coisas.

Paula - Como você se envolveu com o comunismo?

Niemeyer - Sabe que eu era de família muito católica? Eu morava com meu avô, Ribeiro de Almeida, que era ministro do Supremo Tribunal. A sala de jantar era enorme, com cinco janelas, e uma delas era o oratório que aos domingos minha avó abria e a missa era celebrada em casa. Eu geralmente era expulso da missa, achava graça, começava a dar risada... De modo que fui criado num ambiente de muitos preconceitos mas quando saí de casa e vi como a vida era injusta entrei para o Socorro Vermelho. A gente arranjava roupas e coisas para auxiliar os mais pobres. Depois veio Prestes, o Partido Comunista, a luta que interessa.

Pimentel - O senhor continua achando que as pessoas mais interessantes que conheceu foram as ligadas ao Partido?

Niemeyer - Sim, foi onde conheci as pessoas mais generosas, fraternais, querendo só que o mundo melhore. Tanto aqui quanto no Partido francês. No PC francês aconteceu algo único em minha vida. Quando a sede ficou pronta, o secretário do partido, Jacques Duclos, me chamou: "Está muito bonito, mas eu queria te pedir um favor. Caso o senhor permita, eu colocaria em meu gabinete uma mesa muito antiga que me acompanha a vida inteira". Foi um gesto de respeito pelo trabalho humano.

Zezé Sack - O senhor acompanhou essa história da mala que teria vindo de Cuba cheia de dinheiro?

Niemeyer - Cansei de ouvir essas coisas... É tudo tão ridículo. Vejam essas discussões na Câmera, acabo ficando sempre do lado de quem está sendo interrogado, pois é uma grosseria, uma mania de querer aparecer na televisão, uma m(*).

Dermeval - E Fidel Castro?

Niemeyer - Uma grande figura, com a coragem de tentar melhorar as coisas. Uma vez ele veio aqui, falamos durante horas, e quando ia embora o elevador enguiçou. Tivemos que bater à porta de um apartamento para pedir que ele passasse por ali. Quando o sujeito abriu a porta e deu de cara com Fidel... que susto!

Ivan - "A revolução chegou!"

Niemeyer - Depois ficou todo orgulhoso de ter recebido Fidel Castro em sua casa.

Pimentel - Cuba sobreviverá bem sem ele?

Niemeyer - Cuba está ótima. Os cubanos estão todos nas escolas, onde aprendem não só uma profissão mas a serem decentes, gostarem do país e dos amigos. Um cubano formado é uma pessoa com respeito cívico. A pessoa que sai da escola preocupado em ganhar dinheiro, vencer na vida, vai ser uma m(*). Também, essa pessoa passa pela escola sem ler um livro que não seja os da sua profissão, vai ser o que? Como vai lutar contra esse mundo perverso em que vivemos? Como vai defender o seu país?

Maria Lúcia Dahl - O que vai acontecer depois do Lula?

Niemeyer - É difícil adivinhar. Lula quer melhorar o capitalismo, o que para mim é impossível. O importante agora é lutarmos contra o império de Bush e nos unirmos na defesa da América Latina. Nada de concessões.

Regina Zappa - Daqui a pouco o senhor está fazendo cem anos.

Niemeyer - Ah, ainda falta muito...

Regina - Já viveu tanta coisa, conheceu tanta gente, passou por tantos pensamentos. Quem está pensando direito no Brasil?

Niemeyer - Os que compreendem que enquanto a violência e a miséria estiverem aí o Brasil será ruim. Cidades feito o Rio estão divididas entre pobres e ricos. A burguesia fica olhando os garotinhos negros das favelas como futuros inimigos e assim surge um pensamento racista. Isso tem que acabar. Não vai ser como o Lula está fazendo, só vai acabar quando fizerem como Chávez: brigando. Não é que a gente queira fazer a revolução de hoje para amanhã, mas temos que pensar em como resolver esses problemas. Temos que sonhar com soluções senão nada acontece. Agora, não vai dar para resolver o ser humano. Esse está ferrado.

Regina - Está faltando pensamento no Brasil?

Niemeyer - Quando converso com estudantes, eu lembro sempre que não basta sair da escola como um bom profissional. É preciso ler mais, conhecer os grandes escritores, estrangeiros inclusive, como Dostoievski, Proust, Camus, ter uma noção dos movimentos intelectuais que vêm surgindo... o iluminismo, o surrealismo, o existencialismo de Sartre.  Ouvi duas estudantes conversando e uma perguntou: "Você já leu Eça de Queiroz"? A outra disse: "É filho da Raquel de Queiroz"? Aí não dá, né.

Ricky - O senhor deu sorte de encontrar quem conhecesse Raquel de Queiroz.

Pimentel - O senhor conviveu muito com Sartre na França?

Niemeyer - Estive na casa dele e de Simone de Beauvoir. Haviam divergências entre ele e o Partido, mas era respeitado por ser muito inteligente. Mas quem exerceu a maior influencia intelectual sobre mim foi Rodrigo de Mello Franco. Outra pessoa de quem me lembro com entusiasmo é Gustavo Capanema. Que sujeito fantástico! Chamou Drummond, Portinari... foi quem me levou para Brasília. Me indicou para fazer a Pampulha, que foi o começo de Brasília.

Zezé - Foi o seu marco inicial na Arquitetura?

Niemeyer - Foi meu primeiro grande projeto, a primeira grande obra de JK, e o primeiro trabalho do engenheiro Marco Paulo Rabelo. Foi uma Brasília em escala menor: a mesma correria, a mesma paixão, a mesma preocupação com o dinheiro acabar antes do término da obra... Quando ficou pronta, foi minha primeira oportunidade de mostrar uma arquitetura diferente, baseada no concreto, usando as curvas. Tendo um espaço grande para cobrir, a curva é a solução. Sempre digo: você pode ir ao passado, ver a primeira viga, o primeiro arco, a primeira cúpula, as grandes catedrais... mas o concreto armado é tão importante que tudo isso não tem mais significado. Pampulha mostrou o caminho para a arquitetura de hoje.

Dermeval - Mas o cardeal não quis consagrar a Igreja de São Francisco porque as curvas seriam profanas.

Niemeyer - Que bobagem... A Igreja ficou parada por cinco anos até que apareceu um bispo de São Paulo que era mais inteligente. Hoje tem igreja de tudo quanto é jeito.

Ivan - O que impressiona no JK é ele ser de uma cidade histórica, Diamantina, de um passado colonial, mas ele ter apostado na modernização da arquitetura.

Niemeyer - O cassino que Benedito Valladares queria fazer era totalmente tradicional. JK era homem inteligente, sensível, cercou-se dos melhores nomes possíveis, e, de tanto conversar conosco, passou a entender quando eu dizia que arquitetura era invenção, que a arquitetura tem que criar surpresas, que a arquitetura como qualquer obra de arte tem que ser diferente, senão vira repetição. Me apoiou muito. Brasília foi feita sem nenhum programa. Nunca me disseram qual o número de deputados e senadores que haveria no novo Congresso. Quando veio o parlamentarismo, de um dia para o outro, o Congresso se encheu de divisões de madeira, criando novas salas que o regime exigiria. Para não quebrar então a arquitetura, fiz uma coisa que ninguém percebeu: alarguei o prédio em 15 cm. Se olhar de cima verá que as cúpulas fugiram do eixo. Fico espantado com Brasília! Considerando o tempo curto que tínhamos, o normal seria fazer algo mais simples, com colunas em retângulos, mas o Alvorada, por exemplo, eu fiz da forma mais complicada possível. A Catedral, as cúpulas do Congresso, a gente queria fazer coisas novas. Quando subimos a rampa do Congress, JK disse: "Aqui tem invenção". Vejam os palácios de Brasília; como são diferentes de tudo que se fazia até àquela época! E as colunas do Alvorada... até na Líbia as vi repetidas num prédio junto à praia.

Paula - Sua militância comunista teve influência sobre Brasília?

Niemeyer - Não, a única influência foi eu ter chamado outras pessoas de esquerda para trabalhar comigo.

Ricky - Mas existem estudiosos que lêem no resultado final da sua arquitetura influências do ideário comunista.

Niemeyer - Isso é frescura. Quem sabe faz, quem não sabe começa a imaginar coisas. Minha única preocupação era a de fazer coisas diferentes. Vejam a colunata do Edifício Mondadori, na Itália: cada vão é diferente. Tem um de 15, um de seis, um de nove, criando assim um ritmo musical diferente. Não só as colunas são diferentes como também as vigas longitudinais que sustentam cinco andares. Foi uma ginástica estrutural. Nunca se viu um prédio assim.

Ivan - Parece que o prédio flutua!

Ricky - O senhor tem uma obsessão pela leveza e pela contradição entre o concreto que é pesado mas parece flutuar.

Niemeyer - Gosto das coisas soltas. Mais simples. Por isso procuro reduzir ao máximo os apoios. Fiz um prédio agora em Belo Horizonte que é um exemplo da utilização da técnica em toda a sua plenitude: em 150 metros só há quatro colunas.

Ricky - Como o senhor concebe um projeto arquitetônico? Vem a forma toda de uma vez, ou o senhor começa pelos detalhes?

Niemeyer - Sento e penso, penso, penso... Imagino o prédio, o terreno, como posso fazer... A Arquitetura está toda na cabeça. A mão é o veículo. O interessante é que quando penso num projeto vejo a coisa como se estivesse pronta. Penso em todo o ambiente: os móveis, a luz.... Penso, penso, quando estou cheio de idéias começo a desenhar. Quando a idéia se fixa no papel, me preocupo em fazer o texto explicativo. Descrevo como se fosse uma pessoa chegando no prédio pela primeira vez, vendo como vai ser... O texto explicativo é que decide a aceitação do projeto. Quem vai ler esse texto não entende de arquitetura. Por exemplo: na entrada do Itamarati, para a arquitetura ficar mais leve, introduzi uma viga fininha na sobreloja - algo que deu muito trabalho - mas ninguém percebeu. Realmente, aquilo é muito fino! Tive que somar uma série de princípios para conseguir fazer aquilo tão leve. Foi assim que fui criando a minha arquitetura diferente.

Dermeval - O senhor é incensado por intelectuais em todo o mundo. André Malraux escreveu que depois das colunas gregas, só as colunas do Niemeyer. Como o senhor se sente diante da tantas homenagens?

Niemeyer - Tive a oportunidade de fazer as coisas... A vida é feita de chances. Se Pampulha tivesse saído como algo sem expressão eu teria perdido a minha chance. Não tenho do que me queixar.

Ricky - Existe algum arquiteto moderno que o senhor admire?

Niemeyer - Não existe arquitetura clássica ou moderna: existe a boa e a má arquitetura. Há prédios antigos com uma concepção ousada e fantástica. Não existe uma arquitetura ideal: seria a monotonia, a repetição. Cada arquiteto é que cria sua própria arquitetura. Eu não discuto a arquitetura dos outros. Nunca critiquei uma obra de outro arquiteto. Nem adianta me perguntar. Cada um deve saber defender a sua arquitetura. Eu defendo a minha e por isso faço absolutamente o que eu quero. Me chamaram para fazer uma praça em Le Havre, na França. Olhei o local, olhei o mar, vi que era um lugar muito frio, que o vento correria pela praça, então disse: "Quero abaixar a praça quatro metros". Já viram algum arquiteto chegar num lugar e pedir para abaixar uma praça quatro metros? Sairia de lá esculhambado! Le Havre tem a única praça rebaixada do mundo, com umas rampas descendo das calçadas para a praça. Tem um crítico de arte italiano que é o maior crítico mundial da arquitetura moderna, mas ele coloca a praça de Le Havre entre as dez melhores obras da arquitetura contemporânea. Então o importante é o arquiteto se impor, e, quando possível, por sorte ou outro motivo, fazer algo diferente.

Ricky - Nesse caso o encomandante aceitou suas exigências, mas no decorrer da sua vida deve ter sido frustrante, para o seu gênio, com sua ousadia, lidar com os burocratas das obras.

Niemeyer - Não, quando me chamam é porque esperam algo diferente. Aécio Neves me pediu um projeto que transformasse uma praça num centro administrativo. Eu teria que fazer 23 prédios correspondentes às 23 secretarias do Estado. Projetei sete. A construção ficou mais fácil e o terreno mais bonito. Na Universidade da Argélia queriam um prédio para cada faculdade. Fiz apenas dois prédios, enormes, um para os laboratórios e outro para as salas de aula. Quis seguir Darcy Ribeiro, que reclamava maior intercâmbio entre os alunos das diversas áreas. O sujeito especializado é uma m(*). Não dá para conversar com uma pessoa que só sabe de Arquitetura. Ou com outro que só sabe de Literatura.

Paula - Os Cieps foram outro projeto seu com Darcy que visava integrar os alunos na comunidade.

Antonia Leite Barbosa - Por que na sua arquitetura a natureza é secundária?

Niemeyer - Essa é a pergunta mais estranha que já me fizeram! Pelo contrário, o espaço sempre faz parte do meu projeto. O desenho do MAC surgiu pelo fato de ser num platô, de ter o mar, a vista para as montanhas do Rio, coisas que tinham que ser preservadas em sua plenitude.

Ricky - Há os que dizem que suas obras são muito bonitas e pouco práticas. Que o ser humano fica esmagado pela grandiosidade de sua arquitetura.

Niemeyer - Dou um exemplo. Quando terminou a construção da sede da Editora Mondadori em Milão, eles me pediram outro projeto no centro da cidade. Se o prédio construído não fosse funcional, não teriam me procurado outra vez. O mesmo ocorreu no caso da sede do Partido Comunista Francês em Paris e em outras ocasiões, que não vou perder tempo em citar.

Maria Lúcia - E como se pode impedir a deturpação de seus projetos? Lúcio Costa projetou algo maravilhoso para a Barra que hoje virou uma terra de ninguém.

Niemeyer - Temos que brigar, reclamar... Agora estou com uma briga em SP por causa de uma marquise do Ibirapuera. Uma marquise que projetei e tenho o direito de modificar. Mas essa é uma questão tão ridícula que espero será resolvida favoravelmente.

Pimentel - Mas tem como o arquiteto ficar controlando depois que a obra ficou pronta?

Zezé - Quiseram fazer uma modificação no Sambódromo.

Niemeyer - Darcy me falou: "Você tem que fazer algum detalhe que marque o Sambódromo". Então fiz aquele arco enorme na Praça da Apoteose. César Maia não levou em conta que existe um autor para aquele projeto, que deve ser respeitado, que aquilo é uma obra importante, e que ao mexer com o Sambódromo está mexendo com Darcy Ribeiro e com Brizola. Colocou um anúncio lá e não quer tirar. Falei com o Patrimônio, que escreveu para ele dizendo que eu tinha razão, e até hoje ele não tirou. O IAB protestou, o Clube de Engenharia protestou, mas ele está inflexível. Por que colocar um anúncio logo no fecho do Sambódromo?

Ivan - Brasília está sendo bem cuidada?

Niemeyer - No momento só posso bater palmas. Faltava fazer o museu, a biblioteca, a zona esportiva e de lazer, e isso o Roriz está fazendo agora, seguindo o meu projeto. O museu é uma coisa fantástica, a cúpula tem 80 metros de vão, parece que você está sob o céu. O emblema da praça em frente é uma escultura sobre a paz.

Regina - Você continua apaixonado pelas esculturas?

Niemeyer - As esculturas que faço são como croquis no ar. (traceja uma forma no ar com os dedos) Fiz uma agora para Cuba e outra para Paris. A de Paris tem oito metros e é uma mão com uma flor. A gente se diverte, né. Gosto de desenhar linhas que vem, sobem, descem e tal e se transformam numa mulher.

Ricky - E, inspirado nas mulheres, o senhor é obcecado pelas curvas.

Niemeyer - A mulher é fundamental, mas quando faço algo não me inspiro numa coisa só. Malraux dizia que guarda dentro de si tudo o que amou. O que sei é que quanto maior o espaço, mais as curvas estão presentes. Minha preocupação é reduzir as colunas de apoio, de modo que a arquitetura fique mais audaciosa. A construção fica mais fácil de fazer, não tem tanta fundação, mas tem que ter um bom calculista, alguém que compreenda que o sentido da arquitetura é fazer algo mais bonito e mais solto.

Ricky - Já criou um projeto tão ousado que seria fisicamente impossível de executar?

Niemeyer - Quando faço uma coisa saliente assim não penso se a técnica vai permitir. Penso no que vai ficar bonito. Tenho que pensar no espetáculo da arquitetura. A técnica depois corrige. Com tantos trabalhos feitos, a gente sabe o que é possível. Agora, eu ouso cada vez mais e sempre acabam conseguindo executar os projetos. Nesse museu em Brasília tem uma rampa que vem de dentro da cúpula de 80 metros, sai no ar, e entra no andar de cima. Tem um vão de 30 metros solto no ar. O engenheiro é da maior eficiência. No dia em que estiver pronto o pessoal vai ficar espantado. Para conseguir isso a base da rampa entrou para dentro do prédio. Isso é a arquitetura criando espanto. O sujeito não pode usar a arquitetura para mudar a vida da maioria das pessoas, mas pode pelo menos fazer com elas parem e tenham um momento de emoção.

Paula - Você tem alguma obra predileta?

Niemeyer - Gosto das obras que apresentam grandes desafios, como a praça em Le Havre. Mas a obra de que goste mais talvez seja a Universidade da Argélia.

Ivan - Suas obras na Argélia são quase que uma extensão de Brasília.

Zezé - Você criou há pouco um projeto para o MST.

Niemeyer - Um auditório para mil pessoas. O MST é muito mais importante do que as pessoas conhecem, está educando pessoas, mandando gente para o exterior, criando equipes técnicas. Quando as pessoas me chateiam muito, eu ponho o boné que o Stédile me deu.

Dermeval - Eu queria que você falasse do MAC e do Caminho Niemeyer em Niterói.

Niemeyer - Niemeyer - Niemeyer - O MAC é um prédio que me agrada muito, pela importância que conferiu a Niterói. E o Caminho Niemeyer, ainda em construção, vai integrar esse conjunto, que o ex-prefeito Jorge Roberto Silveira iniciou e o prefeito atual, Godofredo Pinto, completa com o maior entusiasmo. O Caminho Niemeyer compreende uma grande praça, com um teatro e a Fundação Oscar Niemeyer do outro lado. E, como o palco do teatro abre para a praça, espetáculos populares de dança, música, etc, irão ter lugar. O mesmo eu fiz no auditório do Parque do Ibirapuera, há pouco inaugurado com muito sucesso. Outros edifícios farão parte do Caminho Niemeyer, como a Catedral e o centro de convenções. Gostei muito de fazer o teatro, com a fachada lateral em azulejos (desenha a forma do teatro no ar com os dedos). Eu queria algo feito a Igreja da Pampulha, que tem os desenhos do Portinari, mas não havia dinheiro e eu mesmo fiz os desenhos, com mulheres saltando, ficou bonito. Me deu prazer de mostrar que mesmo quando não existem condições a gente tenta aproximar a arquitetura das artes plásticas. Esse é o momento mais importante da arquitetura. Se os palácios de Veneza não tivessem tido a colaboração dos grandes pintores não seriam tão importantes. A arquitetura naquele tempo não era bom, havia sempre uma coluna grega na fachada, não conseguiam se libertar do passado. No palácio dos Doges é que tem início a arquitetura moderna. Antonio Rizzo pensava em criar espaços grandes para o salão e não queria as colunas. Projetou uma viga fantástica de madeira que permitiu conseguir isso. Para a fachada criou contrastes entre colunas trabalhadas e superfícies lisas. É por isso que a arquitetura tem que ser bonita, pois vendo as construções as pessoas podem se interessar pela arte. Quando um museu é bonito, como este de Niterói, provoca as pessoas a verem o que tem dentro do museu.

Ivan - Você viajou por grande parte do mundo. Qual a cidade mais bonita?

Niemeyer - O Rio de Janeiro é ótimo. Gosto dessa esculhambação. Gosto de ver as pessoas passando e indo para a praia. Gosto de entrar no Marimbás e sentir o tempo andando para trás, lembrar de há 40 anos, eu batendo papo com os amigos, pensando que a vida seria melhor....

Ricky - As mudanças que vão modificando as cidades são para o senhor tristezas ou a transformação é inexorável?

Niemeyer - Realmente, é triste, mas as cidades vão se degradando. Gente demais. Burrice ativa.

Ricky - Por falar em burrice, o senhor às vezes não pensa: "Puxa, em Brasília fiz uma obra tão revolucionária para ser ocupada por pessoas tão retrógradas"?

Niemeyer - Fico irritado. As pessoas que estão realmente fazendo algo pelo Brasil não estão no Congresso. Mas em toda a parte tem gente progressista e retrógrada. Esse é um problema social, para mim mais importante do que a arquitetura. 

Regina - Qual o conselho que o senhor daria hoje ao Brasil?

Niemeyer - O patriotismo anda esquecido e precisa ser recuperado. Temos que pensar no Brasil. Temos que pensar na Amazônia. Pensar principalmente no povo que é pobre. Temos que pensar na América Latina que está tão ameaçada. Pensar que não podemos ficar à margem da História.

Paula - Dos seus projetos que estão ainda no papel, tem algum que o senhor gostaria especialmente de ver realizado?

Niemeyer - O museu e auditório que estou fazendo para a Espanha, numa praça de Oviedo que tem 100 x 200 metros. Na Alemanha estou fazendo um conjunto de piscinas com algumas cúpulas. Tudo isso é bom porque divulga o trabalho brasileiro no exterior.

Pimentel - Está com algum projeto literário em andamento?

Niemeyer - Estou escrevendo algumas opiniões que possam ser úteis para os mais jovens, mas sem nenhuma pretensão literária. Gosto de escrever. Li muito na vida.

Regina - No momento, qual é a coisa que te dá mais prazer?

Niemeyer - Frequentar bons ambientes e sentir como as pessoas são fraternais. A gente quando vem para a vida tem que brincar, tem que se distrair... Há espetáculos bonitos - bons filmes, bons livros, boas músicas - que nos ajudam a viver. Sei que nada é importante. Tudo desaparece. A gente vem, escreve uma historinha, e vai. Por isso temos que viver bem cada momento. O sujeito nasce, cresce, faz seus planos, acontecem coisas que mudam tudo. O inesperado é que conduz o mundo.

Ricky - As pessoas desaparecem mas seus feitos continuam. Brasília vai ficar como as pirâmides do nosso tempo.

Niemeyer - Daqui a milhões de anos nada disso existirá mais.

Ivan - Apesar disso, o senhor continua acreditando no homem, né. Gramsci escreveu: "Ao pessimismo da razão devemos contrapor o otimismo da vontade".

Niemeyer - Vejo a vida da forma realista. Como tenho dito, a gente chega, cada um conta a sua historinha, que o tempo apaga, implacável. A principal qualidade do homem é a modéstia. Mas é preciso viver, lutar contra a miséria, dar à nossa existência um sentido mais digno - todos iguais, sem discriminação.



---------- Forwarded message ----------
From: Roberto Ricardo <robertoricardo@superig.com.br>
Date: Dec 11, 2005 3:49 PM
Subject: ENC: 'A gente vem, escreve uma história e vai...'
To: robertoricardo@superig.com.br

SEI QUE MUITOS NÃO LERÃO (O TEXTO É LONGO, FALTA TEMPO, FALTA SACO, ETC), MAS NÃO POSSO DEIXAR DE TENTAR COMPARTILHAR ESTA ENTREVISTA DO OSCAR NIEMEYER, UMA DAS PESSOAS MAIS GENIAIS, LÚCIDAS E INTERESSANTES DO NOSSO TEMPO.

 

Roberto Ricardo

 

 

(Íntegra da entrevista abaixo)


JB Online - Caderno B

  [11/12/2005]

 

'A gente vem, escreve uma história e vai...'

Entrevista: Oscar Niemeyer

 

Estamos no estúdio de Oscar Niemeyer, num edifício niemeyeriano, com a fachada em curvas. Esta sinuosidade permite que a varanda onde estou se transforme num posto de observação suspenso sobre a Avenida Atlântica, descortinando-se abaixo de mim a curva amarela da praia e para adiante o mar de um azul profundo. A janela envidraçada tem 180 graus de visão. Copacabana em curva parece um traço esboçado por Oscar Niemeyer. As paredes brancas de todo o estúdio atrás de mim estão cobertas destes traços em preto, são mulheres, frases, mais curvas, fachadas, traços finos, velozes, deslizantes... Acabamos de fazer esta entrevista com Niemeyer e penso em como escreverei a sua abertura. Como passar em palavras o sabor desta conversa agradável com um dos maiores gênios brasileiros. Como traduzir em texto a sua arte, arquitetar com o concreto armado dos vocábulos pesados um arco imenso entre o jornal e os leitores, sustentando as vigas do raciocínio, porém tão leve e solto e belo como uma cúpula de Niemeyer, para que a abertura pareça flutuar como um prédio de Niemeyer... Não há uma nuvem no céu de primavera. Desisto e desfio mentalmente o lugar-comum em que pensam aqueles que conversam com o arquiteto: quando crescer quero ser como Niemeyer, quero chegar aos 98 anos, com esta saúde e esta lucidez espantosa, com uma vida plena de realizações, saboreando a fraternidade dos amigos, e consciente de como os seres são pequenos diante do cosmos porém cada um é uma pedra fundamental no projeto do universo. (Ricky Goodwin)

Luís Pimentel - O Festival de Brasília abriu com um documentário sobre sua vida chamado "A Vida é um Sopro". O cineasta disse que o título é em cima de uma frase sua onde diz que a vida é curta e deve ser vivida com alegria.

Oscar Niemeyer - A vida é uma mulher do lado e seja o que Deus quiser! Me lembro de João Saldanha, que dizia sempre: "A gente não pode fazer plano nenhum. Tem sempre alguma coisa que ocorre".

Pimentel - Por isso é que sempre encerrava suas crônicas com "Vida que segue".

Niemeyer - A vida é pouca coisa. A pessoa vem, cada um escreve sua histórinha, e o tempo apaga. Por isso é que digo que a arquitetura não tem importância.

Dermeval Netto - Tem uma frase sua escrita ali na parede: "O mais importante não é a Arquitetura, mas a vida, os amigos, e este mundo injusto que devemos modificar". Ainda dá para modificar?

Niemeyer - Minha vida vai seguindo alguns pensamentos: procuro sempre ser útil para as pessoas. O mais importante é ler. O comunismo é o caminho. O homem precisa arriscar. Lênin disse que é preciso sonhar senão as coisas não acontecem. Gosto de ver, por exemplo, Chávez sonhando que vai mudar a América Latina para que seja mais justa.

Ivan Alves- Você já começou a entrevista citando um amigo. Você sempre viveu cercado de amigos, de intelectuais e artistas de todas as tendências, de políticos que iam de JK a Prestes. A amizade, mais do que o trabalho, é o motor da tua vida?

Niemeyer - A amizade, os bons livros, as poesias do Gullar... Tenho a consciência de que a vida é um minuto e o que vale é a solidariedade. Acho importante não olhar para os outros como se fossem inimigos, descobrindo seus defeitos. Lênin dizia que se um homem tem 10% de qualidades isso já basta. O mundo é cheio de gente boa. Todo mundo tem um lado bom.

Pimentel - Na média, as pessoas com quem o senhor conviveu atingiram esses 10% de qualidades?

Niemeyer - Bom, na vida tem de tudo, né. É importante ser modesto. O sujeito inteligente, quando olha para o céu, sente como é infinito o universo. Tem um físico e filósofo que vem aqui toda terça para conversar sobre o cosmos. A gente se sente tão pequeninho!

Ricky Goodwin - À medida que o senhor vai se sentindo pequeno em relação ao cosmo, esse vazio não vai sendo preenchido por um espírito maior? Mesmo que não tenha um nome de deus? Niemeyer - É claro que alguns procuram uma explicação. A idéia de Deus parece  um momento de devaneio que a ciência logo desfaz. Paula Sack - Você acredita em Deus?

Niemeyer - Acredito em Shopenhauer.

Ivan - Dr. Oscar, o senhor construiu a Igreja da Pampulha e a Catedral de Brasília. Quando as pessoas entram naqueles espaços dizem sentir o espírito de Deus.

Niemeyer - Procurei ser útil para essas pessoas. Quando faço igrejas, as entradas são escuras para quando o sujeito passar para a nave sentir o impacto do contraste de luz. Na catedral fiz uma abertura de modo que a pessoa possa ver o céu e imaginar que o Senhor esteja lá esperando por ele.

Ivan - Além da amizade e do trabalho, que citamos, outro valor que move a sua vida é a coragem. Você tem uma grande admiração pelas pessoas corajosas, Me lembro de você contando do Agildo Barata sendo preso em 1935. Um tenente chegou: "Quem é o FDP do Agildo Barata"? E ele, com as mãos amarradas para trás, falou: "O Agildo Barata sou eu. O FDP é você".

Niemeyer - Quando estava clandestino, Agildo passava aqui e me chamava para almoçar. Ele colocava um chapéu e achava que estava disfarçado. Admiro muito o Agildo, Marighella, teve muita gente boa, pessoal que foi torturada e continuou firme, querendo brigar para mudar as coisas.

Paula - Como você se envolveu com o comunismo?

Niemeyer - Sabe que eu era de família muito católica? Eu morava com meu avô, Ribeiro de Almeida, que era ministro do Supremo Tribunal. A sala de jantar era enorme, com cinco janelas, e uma delas era o oratório que aos domingos minha avó abria e a missa era celebrada em casa. Eu geralmente era expulso da missa, achava graça, começava a dar risada... De modo que fui criado num ambiente de muitos preconceitos mas quando saí de casa e vi como a vida era injusta entrei para o Socorro Vermelho. A gente arranjava roupas e coisas para auxiliar os mais pobres. Depois veio Prestes, o Partido Comunista, a luta que interessa.

Pimentel - O senhor continua achando que as pessoas mais interessantes que conheceu foram as ligadas ao Partido?

Niemeyer - Sim, foi onde conheci as pessoas mais generosas, fraternais, querendo só que o mundo melhore. Tanto aqui quanto no Partido francês. No PC francês aconteceu algo único em minha vida. Quando a sede ficou pronta, o secretário do partido, Jacques Duclos, me chamou: "Está muito bonito, mas eu queria te pedir um favor. Caso o senhor permita, eu colocaria em meu gabinete uma mesa muito antiga que me acompanha a vida inteira". Foi um gesto de respeito pelo trabalho humano.

Zezé Sack - O senhor acompanhou essa história da mala que teria vindo de Cuba cheia de dinheiro?

Niemeyer - Cansei de ouvir essas coisas... É tudo tão ridículo. Vejam essas discussões na Câmera, acabo ficando sempre do lado de quem está sendo interrogado, pois é uma grosseria, uma mania de querer aparecer na televisão, uma m(*).

Dermeval - E Fidel Castro?

Niemeyer - Uma grande figura, com a coragem de tentar melhorar as coisas. Uma vez ele veio aqui, falamos durante horas, e quando ia embora o elevador enguiçou. Tivemos que bater à porta de um apartamento para pedir que ele passasse por ali. Quando o sujeito abriu a porta e deu de cara com Fidel... que susto!

Ivan - "A revolução chegou!"

Niemeyer - Depois ficou todo orgulhoso de ter recebido Fidel Castro em sua casa.

Pimentel - Cuba sobreviverá bem sem ele?

Niemeyer - Cuba está ótima. Os cubanos estão todos nas escolas, onde aprendem não só uma profissão mas a serem decentes, gostarem do país e dos amigos. Um cubano formado é uma pessoa com respeito cívico. A pessoa que sai da escola preocupado em ganhar dinheiro, vencer na vida, vai ser uma m(*). Também, essa pessoa passa pela escola sem ler um livro que não seja os da sua profissão, vai ser o que? Como vai lutar contra esse mundo perverso em que vivemos? Como vai defender o seu país?

Maria Lúcia Dahl - O que vai acontecer depois do Lula?

Niemeyer - É difícil adivinhar. Lula quer melhorar o capitalismo, o que para mim é impossível. O importante agora é lutarmos contra o império de Bush e nos unirmos na defesa da América Latina. Nada de concessões.

Regina Zappa - Daqui a pouco o senhor está fazendo cem anos.

Niemeyer - Ah, ainda falta muito...

Regina - Já viveu tanta coisa, conheceu tanta gente, passou por tantos pensamentos. Quem está pensando direito no Brasil?

Niemeyer - Os que compreendem que enquanto a violência e a miséria estiverem aí o Brasil será ruim. Cidades feito o Rio estão divididas entre pobres e ricos. A burguesia fica olhando os garotinhos negros das favelas como futuros inimigos e assim surge um pensamento racista. Isso tem que acabar. Não vai ser como o Lula está fazendo, só vai acabar quando fizerem como Chávez: brigando. Não é que a gente queira fazer a revolução de hoje para amanhã, mas temos que pensar em como resolver esses problemas. Temos que sonhar com soluções senão nada acontece. Agora, não vai dar para resolver o ser humano. Esse está ferrado.

Regina - Está faltando pensamento no Brasil?

Niemeyer - Quando converso com estudantes, eu lembro sempre que não basta sair da escola como um bom profissional. É preciso ler mais, conhecer os grandes escritores, estrangeiros inclusive, como Dostoievski, Proust, Camus, ter uma noção dos movimentos intelectuais que vêm surgindo... o iluminismo, o surrealismo, o existencialismo de Sartre.  Ouvi duas estudantes conversando e uma perguntou: "Você já leu Eça de Queiroz"? A outra disse: "É filho da Raquel de Queiroz"? Aí não dá, né.

Ricky - O senhor deu sorte de encontrar quem conhecesse Raquel de Queiroz.

Pimentel - O senhor conviveu muito com Sartre na França?

Niemeyer - Estive na casa dele e de Simone de Beauvoir. Haviam divergências entre ele e o Partido, mas era respeitado por ser muito inteligente. Mas quem exerceu a maior influencia intelectual sobre mim foi Rodrigo de Mello Franco. Outra pessoa de quem me lembro com entusiasmo é Gustavo Capanema. Que sujeito fantástico! Chamou Drummond, Portinari... foi quem me levou para Brasília. Me indicou para fazer a Pampulha, que foi o começo de Brasília.

Zezé - Foi o seu marco inicial na Arquitetura?

Niemeyer - Foi meu primeiro grande projeto, a primeira grande obra de JK, e o primeiro trabalho do engenheiro Marco Paulo Rabelo. Foi uma Brasília em escala menor: a mesma correria, a mesma paixão, a mesma preocupação com o dinheiro acabar antes do término da obra... Quando ficou pronta, foi minha primeira oportunidade de mostrar uma arquitetura diferente, baseada no concreto, usando as curvas. Tendo um espaço grande para cobrir, a curva é a solução. Sempre digo: você pode ir ao passado, ver a primeira viga, o primeiro arco, a primeira cúpula, as grandes catedrais... mas o concreto armado é tão importante que tudo isso não tem mais significado. Pampulha mostrou o caminho para a arquitetura de hoje.

Dermeval - Mas o cardeal não quis consagrar a Igreja de São Francisco porque as curvas seriam profanas.

Niemeyer - Que bobagem... A Igreja ficou parada por cinco anos até que apareceu um bispo de São Paulo que era mais inteligente. Hoje tem igreja de tudo quanto é jeito.

Ivan - O que impressiona no JK é ele ser de uma cidade histórica, Diamantina, de um passado colonial, mas ele ter apostado na modernização da arquitetura.

Niemeyer - O cassino que Benedito Valladares queria fazer era totalmente tradicional. JK era homem inteligente, sensível, cercou-se dos melhores nomes possíveis, e, de tanto conversar conosco, passou a entender quando eu dizia que arquitetura era invenção, que a arquitetura tem que criar surpresas, que a arquitetura como qualquer obra de arte tem que ser diferente, senão vira repetição. Me apoiou muito. Brasília foi feita sem nenhum programa. Nunca me disseram qual o número de deputados e senadores que haveria no novo Congresso. Quando veio o parlamentarismo, de um dia para o outro, o Congresso se encheu de divisões de madeira, criando novas salas que o regime exigiria. Para não quebrar então a arquitetura, fiz uma coisa que ninguém percebeu: alarguei o prédio em 15 cm. Se olhar de cima verá que as cúpulas fugiram do eixo. Fico espantado com Brasília! Considerando o tempo curto que tínhamos, o normal seria fazer algo mais simples, com colunas em retângulos, mas o Alvorada, por exemplo, eu fiz da forma mais complicada possível. A Catedral, as cúpulas do Congresso, a gente queria fazer coisas novas. Quando subimos a rampa do Congress, JK disse: "Aqui tem invenção". Vejam os palácios de Brasília; como são diferentes de tudo que se fazia até àquela época! E as colunas do Alvorada... até na Líbia as vi repetidas num prédio junto à praia.

Paula - Sua militância comunista teve influência sobre Brasília?

Niemeyer - Não, a única influência foi eu ter chamado outras pessoas de esquerda para trabalhar comigo.

Ricky - Mas existem estudiosos que lêem no resultado final da sua arquitetura influências do ideário comunista.

Niemeyer - Isso é frescura. Quem sabe faz, quem não sabe começa a imaginar coisas. Minha única preocupação era a de fazer coisas diferentes. Vejam a colunata do Edifício Mondadori, na Itália: cada vão é diferente. Tem um de 15, um de seis, um de nove, criando assim um ritmo musical diferente. Não só as colunas são diferentes como também as vigas longitudinais que sustentam cinco andares. Foi uma ginástica estrutural. Nunca se viu um prédio assim.

Ivan - Parece que o prédio flutua!

Ricky - O senhor tem uma obsessão pela leveza e pela contradição entre o concreto que é pesado mas parece flutuar.

Niemeyer - Gosto das coisas soltas. Mais simples. Por isso procuro reduzir ao máximo os apoios. Fiz um prédio agora em Belo Horizonte que é um exemplo da utilização da técnica em toda a sua plenitude: em 150 metros só há quatro colunas.

Ricky - Como o senhor concebe um projeto arquitetônico? Vem a forma toda de uma vez, ou o senhor começa pelos detalhes?

Niemeyer - Sento e penso, penso, penso... Imagino o prédio, o terreno, como posso fazer... A Arquitetura está toda na cabeça. A mão é o veículo. O interessante é que quando penso num projeto vejo a coisa como se estivesse pronta. Penso em todo o ambiente: os móveis, a luz.... Penso, penso, quando estou cheio de idéias começo a desenhar. Quando a idéia se fixa no papel, me preocupo em fazer o texto explicativo. Descrevo como se fosse uma pessoa chegando no prédio pela primeira vez, vendo como vai ser... O texto explicativo é que decide a aceitação do projeto. Quem vai ler esse texto não entende de arquitetura. Por exemplo: na entrada do Itamarati, para a arquitetura ficar mais leve, introduzi uma viga fininha na sobreloja - algo que deu muito trabalho - mas ninguém percebeu. Realmente, aquilo é muito fino! Tive que somar uma série de princípios para conseguir fazer aquilo tão leve. Foi assim que fui criando a minha arquitetura diferente.

Dermeval - O senhor é incensado por intelectuais em todo o mundo. André Malraux escreveu que depois das colunas gregas, só as colunas do Niemeyer. Como o senhor se sente diante da tantas homenagens?

Niemeyer - Tive a oportunidade de fazer as coisas... A vida é feita de chances. Se Pampulha tivesse saído como algo sem expressão eu teria perdido a minha chance. Não tenho do que me queixar.

Ricky - Existe algum arquiteto moderno que o senhor admire?

Niemeyer - Não existe arquitetura clássica ou moderna: existe a boa e a má arquitetura. Há prédios antigos com uma concepção ousada e fantástica. Não existe uma arquitetura ideal: seria a monotonia, a repetição. Cada arquiteto é que cria sua própria arquitetura. Eu não discuto a arquitetura dos outros. Nunca critiquei uma obra de outro arquiteto. Nem adianta me perguntar. Cada um deve saber defender a sua arquitetura. Eu defendo a minha e por isso faço absolutamente o que eu quero. Me chamaram para fazer uma praça em Le Havre, na França. Olhei o local, olhei o mar, vi que era um lugar muito frio, que o vento correria pela praça, então disse: "Quero abaixar a praça quatro metros". Já viram algum arquiteto chegar num lugar e pedir para abaixar uma praça quatro metros? Sairia de lá esculhambado! Le Havre tem a única praça rebaixada do mundo, com umas rampas descendo das calçadas para a praça. Tem um crítico de arte italiano que é o maior crítico mundial da arquitetura moderna, mas ele coloca a praça de Le Havre entre as dez melhores obras da arquitetura contemporânea. Então o importante é o arquiteto se impor, e, quando possível, por sorte ou outro motivo, fazer algo diferente.

Ricky - Nesse caso o encomandante aceitou suas exigências, mas no decorrer da sua vida deve ter sido frustrante, para o seu gênio, com sua ousadia, lidar com os burocratas das obras.

Niemeyer - Não, quando me chamam é porque esperam algo diferente. Aécio Neves me pediu um projeto que transformasse uma praça num centro administrativo. Eu teria que fazer 23 prédios correspondentes às 23 secretarias do Estado. Projetei sete. A construção ficou mais fácil e o terreno mais bonito. Na Universidade da Argélia queriam um prédio para cada faculdade. Fiz apenas dois prédios, enormes, um para os laboratórios e outro para as salas de aula. Quis seguir Darcy Ribeiro, que reclamava maior intercâmbio entre os alunos das diversas áreas. O sujeito especializado é uma m(*). Não dá para conversar com uma pessoa que só sabe de Arquitetura. Ou com outro que só sabe de Literatura.

Paula - Os Cieps foram outro projeto seu com Darcy que visava integrar os alunos na comunidade.

Antonia Leite Barbosa - Por que na sua arquitetura a natureza é secundária?

Niemeyer - Essa é a pergunta mais estranha que já me fizeram! Pelo contrário, o espaço sempre faz parte do meu projeto. O desenho do MAC surgiu pelo fato de ser num platô, de ter o mar, a vista para as montanhas do Rio, coisas que tinham que ser preservadas em sua plenitude.

Ricky - Há os que dizem que suas obras são muito bonitas e pouco práticas. Que o ser humano fica esmagado pela grandiosidade de sua arquitetura.

Niemeyer - Dou um exemplo. Quando terminou a construção da sede da Editora Mondadori em Milão, eles me pediram outro projeto no centro da cidade. Se o prédio construído não fosse funcional, não teriam me procurado outra vez. O mesmo ocorreu no caso da sede do Partido Comunista Francês em Paris e em outras ocasiões, que não vou perder tempo em citar.

Maria Lúcia - E como se pode impedir a deturpação de seus projetos? Lúcio Costa projetou algo maravilhoso para a Barra que hoje virou uma terra de ninguém.

Niemeyer - Temos que brigar, reclamar... Agora estou com uma briga em SP por causa de uma marquise do Ibirapuera. Uma marquise que projetei e tenho o direito de modificar. Mas essa é uma questão tão ridícula que espero será resolvida favoravelmente.

Pimentel - Mas tem como o arquiteto ficar controlando depois que a obra ficou pronta?

Zezé - Quiseram fazer uma modificação no Sambódromo.

Niemeyer - Darcy me falou: "Você tem que fazer algum detalhe que marque o Sambódromo". Então fiz aquele arco enorme na Praça da Apoteose. César Maia não levou em conta que existe um autor para aquele projeto, que deve ser respeitado, que aquilo é uma obra importante, e que ao mexer com o Sambódromo está mexendo com Darcy Ribeiro e com Brizola. Colocou um anúncio lá e não quer tirar. Falei com o Patrimônio, que escreveu para ele dizendo que eu tinha razão, e até hoje ele não tirou. O IAB protestou, o Clube de Engenharia protestou, mas ele está inflexível. Por que colocar um anúncio logo no fecho do Sambódromo?

Ivan - Brasília está sendo bem cuidada?

Niemeyer - No momento só posso bater palmas. Faltava fazer o museu, a biblioteca, a zona esportiva e de lazer, e isso o Roriz está fazendo agora, seguindo o meu projeto. O museu é uma coisa fantástica, a cúpula tem 80 metros de vão, parece que você está sob o céu. O emblema da praça em frente é uma escultura sobre a paz.

Regina - Você continua apaixonado pelas esculturas?

Niemeyer - As esculturas que faço são como croquis no ar. (traceja uma forma no ar com os dedos) Fiz uma agora para Cuba e outra para Paris. A de Paris tem oito metros e é uma mão com uma flor. A gente se diverte, né. Gosto de desenhar linhas que vem, sobem, descem e tal e se transformam numa mulher.

Ricky - E, inspirado nas mulheres, o senhor é obcecado pelas curvas.

Niemeyer - A mulher é fundamental, mas quando faço algo não me inspiro numa coisa só. Malraux dizia que guarda dentro de si tudo o que amou. O que sei é que quanto maior o espaço, mais as curvas estão presentes. Minha preocupação é reduzir as colunas de apoio, de modo que a arquitetura fique mais audaciosa. A construção fica mais fácil de fazer, não tem tanta fundação, mas tem que ter um bom calculista, alguém que compreenda que o sentido da arquitetura é fazer algo mais bonito e mais solto.

Ricky - Já criou um projeto tão ousado que seria fisicamente impossível de executar?

Niemeyer - Quando faço uma coisa saliente assim não penso se a técnica vai permitir. Penso no que vai ficar bonito. Tenho que pensar no espetáculo da arquitetura. A técnica depois corrige. Com tantos trabalhos feitos, a gente sabe o que é possível. Agora, eu ouso cada vez mais e sempre acabam conseguindo executar os projetos. Nesse museu em Brasília tem uma rampa que vem de dentro da cúpula de 80 metros, sai no ar, e entra no andar de cima. Tem um vão de 30 metros solto no ar. O engenheiro é da maior eficiência. No dia em que estiver pronto o pessoal vai ficar espantado. Para conseguir isso a base da rampa entrou para dentro do prédio. Isso é a arquitetura criando espanto. O sujeito não pode usar a arquitetura para mudar a vida da maioria das pessoas, mas pode pelo menos fazer com elas parem e tenham um momento de emoção.

Paula - Você tem alguma obra predileta?

Niemeyer - Gosto das obras que apresentam grandes desafios, como a praça em Le Havre. Mas a obra de que goste mais talvez seja a Universidade da Argélia.

Ivan - Suas obras na Argélia são quase que uma extensão de Brasília.

Zezé - Você criou há pouco um projeto para o MST.

Niemeyer - Um auditório para mil pessoas. O MST é muito mais importante do que as pessoas conhecem, está educando pessoas, mandando gente para o exterior, criando equipes técnicas. Quando as pessoas me chateiam muito, eu ponho o boné que o Stédile me deu.

Dermeval - Eu queria que você falasse do MAC e do Caminho Niemeyer em Niterói.

Niemeyer - Niemeyer - Niemeyer - O MAC é um prédio que me agrada muito, pela importância que conferiu a Niterói. E o Caminho Niemeyer, ainda em construção, vai integrar esse conjunto, que o ex-prefeito Jorge Roberto Silveira iniciou e o prefeito atual, Godofredo Pinto, completa com o maior entusiasmo. O Caminho Niemeyer compreende uma grande praça, com um teatro e a Fundação Oscar Niemeyer do outro lado. E, como o palco do teatro abre para a praça, espetáculos populares de dança, música, etc, irão ter lugar. O mesmo eu fiz no auditório do Parque do Ibirapuera, há pouco inaugurado com muito sucesso. Outros edifícios farão parte do Caminho Niemeyer, como a Catedral e o centro de convenções. Gostei muito de fazer o teatro, com a fachada lateral em azulejos (desenha a forma do teatro no ar com os dedos). Eu queria algo feito a Igreja da Pampulha, que tem os desenhos do Portinari, mas não havia dinheiro e eu mesmo fiz os desenhos, com mulheres saltando, ficou bonito. Me deu prazer de mostrar que mesmo quando não existem condições a gente tenta aproximar a arquitetura das artes plásticas. Esse é o momento mais importante da arquitetura. Se os palácios de Veneza não tivessem tido a colaboração dos grandes pintores não seriam tão importantes. A arquitetura naquele tempo não era bom, havia sempre uma coluna grega na fachada, não conseguiam se libertar do passado. No palácio dos Doges é que tem início a arquitetura moderna. Antonio Rizzo pensava em criar espaços grandes para o salão e não queria as colunas. Projetou uma viga fantástica de madeira que permitiu conseguir isso. Para a fachada criou contrastes entre colunas trabalhadas e superfícies lisas. É por isso que a arquitetura tem que ser bonita, pois vendo as construções as pessoas podem se interessar pela arte. Quando um museu é bonito, como este de Niterói, provoca as pessoas a verem o que tem dentro do museu.

Ivan - Você viajou por grande parte do mundo. Qual a cidade mais bonita?

Niemeyer - O Rio de Janeiro é ótimo. Gosto dessa esculhambação. Gosto de ver as pessoas passando e indo para a praia. Gosto de entrar no Marimbás e sentir o tempo andando para trás, lembrar de há 40 anos, eu batendo papo com os amigos, pensando que a vida seria melhor....

Ricky - As mudanças que vão modificando as cidades são para o senhor tristezas ou a transformação é inexorável?

Niemeyer - Realmente, é triste, mas as cidades vão se degradando. Gente demais. Burrice ativa.

Ricky - Por falar em burrice, o senhor às vezes não pensa: "Puxa, em Brasília fiz uma obra tão revolucionária para ser ocupada por pessoas tão retrógradas"?

Niemeyer - Fico irritado. As pessoas que estão realmente fazendo algo pelo Brasil não estão no Congresso. Mas em toda a parte tem gente progressista e retrógrada. Esse é um problema social, para mim mais importante do que a arquitetura. 

Regina - Qual o conselho que o senhor daria hoje ao Brasil?

Niemeyer - O patriotismo anda esquecido e precisa ser recuperado. Temos que pensar no Brasil. Temos que pensar na Amazônia. Pensar principalmente no povo que é pobre. Temos que pensar na América Latina que está tão ameaçada. Pensar que não podemos ficar à margem da História.

Paula - Dos seus projetos que estão ainda no papel, tem algum que o senhor gostaria especialmente de ver realizado?

Niemeyer - O museu e auditório que estou fazendo para a Espanha, numa praça de Oviedo que tem 100 x 200 metros. Na Alemanha estou fazendo um conjunto de piscinas com algumas cúpulas. Tudo isso é bom porque divulga o trabalho brasileiro no exterior.

Pimentel - Está com algum projeto literário em andamento?

Niemeyer - Estou escrevendo algumas opiniões que possam ser úteis para os mais jovens, mas sem nenhuma pretensão literária. Gosto de escrever. Li muito na vida.

Regina - No momento, qual é a coisa que te dá mais prazer?

Niemeyer - Frequentar bons ambientes e sentir como as pessoas são fraternais. A gente quando vem para a vida tem que brincar, tem que se distrair... Há espetáculos bonitos - bons filmes, bons livros, boas músicas - que nos ajudam a viver. Sei que nada é importante. Tudo desaparece. A gente vem, escreve uma historinha, e vai. Por isso temos que viver bem cada momento. O sujeito nasce, cresce, faz seus planos, acontecem coisas que mudam tudo. O inesperado é que conduz o mundo.

Ricky - As pessoas desaparecem mas seus feitos continuam. Brasília vai ficar como as pirâmides do nosso tempo.

Niemeyer - Daqui a milhões de anos nada disso existirá mais.

Ivan - Apesar disso, o senhor continua acreditando no homem, né. Gramsci escreveu: "Ao pessimismo da razão devemos contrapor o otimismo da vontade".

Niemeyer - Vejo a vida da forma realista. Como tenho dito, a gente chega, cada um conta a sua historinha, que o tempo apaga, implacável. A principal qualidade do homem é a modéstia. Mas é preciso viver, lutar contra a miséria, dar à nossa existência um sentido mais digno - todos iguais, sem discriminação.



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