Exercício de cinismo
Era só o que faltava.
Virou deboche.
Derivou para o corrosivo caminho do escárnio.
Sabe o que traz de capa a revista IstoÉ Dinheiro?
Entrevista exclusiva do ex-presidente Fernando Collor de Melo concedida a Leonardo Attuch cujo título, numa referência à agruras enfrentadas por Lula, é: "Não repita os meus erros".
"Não repita os meus erros"
Fernando Collor, único mandatário a sofrer impeachment na história do País, analisa o novo cenário de crise e alerta o presidente Lula para traições na aliança que apóia o governo
Por leonardo attuch
Na última semana, o terremoto provocado pelas denúncias de que o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, pagaria uma mesada de R$ 30 mil a vários parlamentares em troca de apoio no Congresso, abalou o País e retirou do baú a expressão impeachment, uma palavra que voltou a ser pronunciada sem pudor no meio político. Anthony Garotinho, um dos pré-candidatos às eleições de 2006, mesmo sem defender abertamente o afastamento do presidente Lula, afirmou que Fernando Collor de Mello, que governou o Brasil entre 1990 e 1992, "caiu por muito menos". Aécio Neves, outro possível candidato, discursou na direção oposta. Disse que "Lula não é Collor". Além deles, o também pré-candidato Roberto Mangabeira Unger, professor em Harvard, nos Estados Unidos, afirmou que o Brasil pode estar entrando no mesmo clima de vale-tudo moral que teria vigorado na era Collor, um tempo em que supostas relações promíscuas entre um governo e um tesoureiro – no caso, Paulo César Farias – serviram para derrubar um presidente. Todo esse debate trouxe de volta aos holofotes a figura do ex-presidente Fernando Collor de Mello, que hoje vive em Maceió, capital alagoana, onde administra as Organizações Arnon de Mello e finaliza o livro "Crônica de um Golpe", sobre seu próprio impeachment. Diante da crise agora vivida por Lula, Collor decidiu falar e concedeu uma entrevista exclusiva à DINHEIRO.
Roberto Castro |
Lula: "Ele não pode cair na tentação de fazer um governo de salvação nacional. Isso não existe" |
Sem demonstrar rancor com o PT, o partido mais atuante na CPI que redundou em sua queda, Collor criticou o possível impeachment de Lula. "Seria golpear a vontade popular". Por outro lado, o ex-presidente afirmou que a atuação de Delúbio Soares nos meandros do poder é muito mais abrangente do que a de seu ex-tesoureiro PC Farias. E, entre muitos conselhos, recomendou ao presidente Lula não repetir os erros que ele, Collor, cometeu no passado. "O maior equívoco seria aceitar a sugestão de um governo de coalizão nacional", disse à DINHEIRO. "Lula plantaria em seu ministério as sementes da traição". A seguir, os principais trechos da sua entrevista.
DINHEIRO – O presidente Lula está sendo vítima de problemas semelhantes aos que o senhor enfrentou 13 anos atrás, na época do impeachment?
FERNANDO COLLOR – Não há a menor dúvida. Os problemas são os mesmos, porque a estrutura política é a mesma. Mudaram os atores, mas o script da peça é idêntico. Como as regras do jogo político não mudaram, e são totalmente inadequadas, o resultado do jogo é sempre ruim.
Delúbio Soares atua no papel de Paulo César Farias?
Claro.
A história poderá então se repetir?
O que está acontecendo é uma repetição, ou uma reedição do filme, mas com cores ainda mais trágicas. É impossível prever o desfecho, mas se não houver por parte do Lula e do seu pessoal um cuidado muito grande, o risco de ocorrer um impeachment é grande. E isso é algo que devemos evitar, porque não faz bem às instituições. Mas também não convém abafar as denúncias.
O deputado Roberto Jefferson, autor das denúncias de que o PT, através de seu tesoureiro, daria mesadas aos deputados, foi muito próximo ao senhor, líder da chamada "tropa de choque collorida". O que ele diz lhe parece verdade?
O que eu posso dizer do Roberto Jefferson é que ele é um homem leal, correto e de coragem cívica. Não tenho nenhum motivo para descrer de uma vírgula que o Roberto Jefferson tenha dito.
E qual seria a motivação do deputado Jefferson ao fazer acusações tão graves?
Só ele pode dizer. Mas ele não diria o que disse sem provas. Não diria sem que tivesse participado, presenciado ou ouvido. Ele não é leviano.
Lula construiu sua imagem em torno da ética na política. Não lhe choca que ele também esteja vivendo uma crise em razão das supostas ações de seu tesoureiro?
Uma das características do governo Lula foi a renúncia explícita e clara a todos os pressupostos que os petistas defenderam ao longo de sua existência.
Na sua avaliação, o presidente Lula merece sofrer um processo de impeachment?
Sou contra o impeachment ou qualquer iniciativa no sentido de impedir o presidente Lula de cumprir o seu mandato. Ele foi eleito por mais de 50 milhões de eleitores e este Congresso não é exatamente um reduto de anjos e querubins. Com que autoridade o Congresso irá julgar o presidente Lula? Impeachment é golpismo barato e rasteiro. Equivale a golpear a vontade popular.
O que deve ser feito?
A apuração total das denúncias. Lula deve mostrar à sociedade que é o maior interessado na busca da verdade. Daí a se promover o impeachment, há uma grande distância.
E como o sr. avalia a atuação do tesoureiro Delúbio Soares?
É a repetição do que se falava treze anos atrás. O Brasil vive uma grande hipocrisia, como o próprio Paulo César Farias disse na CPI de 1992. As regras do jogo são essas. Com elas, os tesoureiros serão sempre um problema. Veja o caso do Fernando Henrique Cardoso. Seu tesoureiro era o Sérgio Motta, que foi até ministro. Depois do Serjão, vieram seus sucedâneos que foram vários. A célebre briga entre o Pimenta da Veiga e o Sérgio Motta ocorreu porque o Serjão não abria mão de administrar as sobras de campanha. O PT também tem seus tesoureiros. O Delúbio tem que sair mas ele não é o único tesoureiro.
A desenvoltura com a qual eles agem à sombra do poder não constitui um crime?
No meu caso, o Paulo César Farias nunca ocupou nenhum cargo público. Nunca fez parte da estrutura do governo. A relação do Executivo com o Legislativo era absolutamente institucional. A desenvoltura dos tesoureiros no poder começou a mudar com os tucanos.
Como assim?
Depois de mim, os tesoureiros passaram a ter muito mais espaço, ocupando até ministérios, e isso não foi nem escamoteado. O Sérgio Motta foi ministro das Comunicações. O Ricardo Sérgio de Oliveira foi uma figura importante nas privatizações da era tucana. Com o PT, o Delúbio entra e sai do Planalto toda hora.
A atuação do Delúbio é mais abrangente do que a do PC Farias?
Não há nem comparação. A performance dele e a desenvoltura com a qual ele trafega pelo Planalto e pelo Congresso é algo que só o Sérgio Motta teve. Se é verdade o que dizem, o Delúbio faz coisas com as quais o PC jamais sonhava. E isso sem precisar ter nenhum cargo no governo.
Como Lula deve agir numa situação em que a oposição tenta emparedá-lo?
O mais importante é fortalecer a sua trincheira e não abdicar dos velhos companheiros. Lula não pode cair na tentação de fazer um governo de salvação nacional. Isso não existe. Se o regime é presidencialista, o presidente deve ter a caneta e o poder de conduzir o processo, sendo o guardião das instituições, como o Lula mesmo disse. Para ser esse guardião, é preciso estar fortalecido em sua trincheira, sem permitir a infiltração de pessoas que não sejam da sua absoluta confiança. Lula não pode repetir os meus erros.
No passado, o senhor fez um ministério de notáveis, o chamado "ministério ético". Foi um erro?
Aquilo faz parte da série de equívocos que eu cometi. O ministério dos notáveis foi o ministério da traição. Serviu apenas para que eu desse as costas aos punhais. Trouxe para a minha trincheira conspiradores de elite. Conspiradores profissionais.
Um deles foi o senador Jorge Bornhausen?
Não vou citar nomes. São notórios. O que eles fizeram foi aprofundar o fosso que me separava da classe política e que redundou no impeachment. Contribui para isso o fato de eu não ter trabalhado para abafar a CPI.
O sr. se arrepende disso?
Eu poderia ter abafado a CPI, mas depois disso eu não seria a mesma pessoa no exercício da presidência.
Por quê? Haveria uma mancha moral?
Eu me sentiria desmerecedor do cargo. Por isso, achei melhor enfrentar a crise da forma como eu enfrentei. Eu sempre resisti ao fisiologismo. Os próprios golpistas, que me derrubaram, hoje dizem que o Collor caiu porque não soube agradar o Congresso.
Lula decidiu agora apoiar a CPI. Não é um risco?
Para que ele atravesse esse vale de lágrimas, o primeiro ponto fundamental é não entrar em pânico. O segundo é cercar-se dos amigos mais fiéis. O terceiro é não cair na tentação de fazer governo de coalizão. O regime é presidencialista e o governo é dele.
Os tucanos têm falado em governo de salvação nacional. Seriam eles golpistas?
Os tucanos são a reedição da velha UDN. São as vivandeiras. Fernando Henrique já fez o governo dele e tem que ficar lá no seu instituto. Hoje, o PSDB é portador de um viés golpista. O DNA do PSDB é a velha e combativa União Democrática Nacional de 1945.
Quando o sr. recebeu a sugestão de abafar a sua CPI, de que forma isso seria feito? Comprando votos no Congresso?
Não, porque a compra de votos aconteceu na direção contrária. Houve mensalão para que o impeachment acontecesse. Isso está no meu livro, mas só será
revelado aos pósteros.
Prensa Três |
" O Congresso não é exatamente um reduto de anjos e querubins. Com que autoridade vão julgar Lula?" |
Alguém lhe sugeriu "comprar" parlamentares?
Chegava idéia de todo tipo. O Lula não pode permitir que seu ouvido sirva de pinico para idéias malucas e escalafobéticas que virão de aliados e de outros não tão aliados. Aliás, ele já deve estar recebendo idéias miraculosas e extraordinárias, que não passam de sugestões malucas.
Dê um exemplo do que aconteceu com o senhor.
Uma pessoa, que não vou citar o nome, sugeriu que explodíssemos uma bomba num dos banheiros do Congresso Nacional no dia da sessão do impeachment, tomando cuidado para que ninguém fosse ferido. Com isso, não haveria sessão. Só o susto que me deu ao ouvir essa proposta já foi grande demais. E a idéia partiu de uma mulher.
Como Lula deve reagir à crise?
Lula deve seguir sua consciência e obedecer a Constituição. Seu discurso, em que admite cortar na própria carne, foi correto. O que ele deve fazer é dar conseqüência ao que disse.
Partir do discurso para a prática?
Claro.
Isso significa fazer o quê com o Delúbio Soares?
O alvo de uma suspeita deve ser afastado até que se conclua o devido inquérito. Se ele ocupa um cargo de tamanha projeção no PT e há suspeita de que ele esteja fazendo uso desse cargo para cometer os desatinos que lhe são atribuídos, o afastamento dele seria salutar e urgente.
Não seria uma mera formalidade? Delúbio não teria de ser investigado também pela Polícia Federal?
O afastamento do cargo, que teria de ser pedido por ele, seria uma formalidade, acompanhada de ações como essa que você mencionou. Mas ele agiu bem ao autorizar a quebra dos seus sigilos bancário, fiscal e telefônico.
Não seria o caso de se fazer uma auditoria nas contas do PT, que administra um orçamento de quase R$ 50 milhões?
Isso seria colocar o carro na frente dos bois. Pode até ser uma conseqüência. Uma CPI tem um único objetivo, mas pode ter milhares de conseqüências. É como um cavalo bravio e fogoso que está há muito tempo no curral e que começa a galopar, sem que ninguém tenha qualquer controle sobre ele. Quando abrirem a cancela, o cavalo sairá desembestado.
O ministro Aldo Rebelo disse que a crise é um problema de um partido, o PT, e não do governo. Essa justificativa convence?
No momento em que ele disse isso, a afirmação era completamente verdadeira. É uma coisa lógica. O alvo da acusação não é membro do governo, é membro de um partido. Mas no momento seguinte pode-se chegar à conclusão de que essa pessoa é de um partido que tem 19 ministérios.
Assim como o senhor, o presidente Lula tem um vice mineiro. Numa crise como a atual, o vice joga com ou contra o presidente?
Eu tenho uma regra em relação a vices, que deixo como sugestão. É melhor não sê-lo, não tê-lo e se possível nem vê-lo. Agora, no caso do Lula, ele tem sorte. Embora nossos dois vices sejam mineiros, eles se diferenciam no caráter. Não acredito que o José Alencar seja capaz de participar de um golpe como fez o Itamar Franco.
Como assim?
O plano inicial das pessoas que articularam o meu impeachment era colocar o Ulysses Guimarães no poder. Os parlamentares achavam que o Itamar também renunciaria. Como ele não renunciou, o plano fracassou.
Esse caso pode redimir sua biografia?
Isso não me importa. Não estou preocupado com isso. Estou preocupado com a estabilidade do País e com o fortalecimento das instituições. Não me importa se vai ser com o PT ou com PQP.
Seu livro não busca reparar sua imagem?
Tanto não busca reparar isso no presente que eu ainda não penso em lançá-lo. E cada vez mais me convenço a deixar isso para os pósteros. Estou fora da política, mas continuo como observador atento da cena nacional.
Como o sr. avalia a declaração do candidato Anthony Garotinho, que disse que "Collor caiu por menos"?
Não concordo nem discordo. Isso é opinião dele.
E quanto à declaração do governador Aécio Neves, que disse que "Lula não é Collor"?
Ele devia estar em êxtase, depois do seu habitual proselitismo lisérgico.
Que lições o Brasil tira desse episódio?
O cenário político atual suscita uma nova discussão, que é a absoluta necessidade de uma reforma política. Quando nós decidirmos realizar uma reforma de fundo, esses problemas deixarão de existir.
Como seria essa reforma?
O Brasil precisa de um parlamentarismo, de uma melhor representação popular pela via do voto distrital, da fidelidade partidária e de uma burocracia profissionalizada, que não venha a ser mexida em cada mudança de governo.
O governo dispõe de 20 mil cargos para distribuir.
Isso é um absurdo e é uma das raízes da crise.
A questão dos cargos não irá afetar o Sílvio Pereira, do PT, e o ministro José Dirceu?
Não importa o Sílvio Pereira, o José Dirceu, o Zé dos Grudes ou o Manoel da Granja. Eles estão apenas dando conseqüências às regras estabelecidas, que foram consensualmente aceitas por esse nosso sistema de governo anacrônico. Os cargos estão aí para serem distribuídos. E eles estão fazendo o que as regras do jogo determinam. As regras é que estão erradas. A corrupção só acaba quando você fecha as torneiras por onde a corrupção pode vazar.
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