Previdência chilena é conversa fiada
19.05.2005 | A previdência social é o suspeito de sempre quando as teorias neoliberais aplicadas à economia começam a desandar. Tem sido assim, em todas as partes do mundo, nos últimos 25 anos. Se nem a poderosa economia americana escapa da regra, o que dizer da brasileira, coitadinha, onde ainda há o agravante das fraudes bilionárias.
Encarada não como uma questão social, mas como mero problema fiscal, a previdência garantida pelo Estado tem sido mais e mais desossada toda vez que a política monetária (leia-se juros altos) falha no controle da demanda e, em conseqüência, da inflação. Constatada a falha, os dedos acusadores se voltam, pavlovianamente, para o lado fiscal da economia.
Claro, há um problema fiscal no meio do caminho. É um problema agravado pela própria política de juros, por uma confusão, nem sempre inocente, entre gasto público e gastança e, sim, por desperdícios. Mas por que não passa pela cabeça dessa gente iluminada que a economia também tem um lado de oferta – movida a investimentos que, igualmente por conta dos juros altos, não se realizam ou ficam aquém das necessidades?
A corda, então, estoura do lado mais fraco – dos pobres, dos velhos e, pior de tudo, dos velhos pobres. E lá vai a previdência pública para o banco dos réus pagar uma conta que não é dela. Até porque, no Brasil, a rubrica "previdência social" mistura a previdência propriamente dita com uma larga faixa de assistência social e redistribuição direta de renda, alcançando brasileiros que não contribuíram ou contribuem para a formação do bolo. A prova é que, separados os benefícios e contribuições de quem recebe mais de um salário mínimo, a Previdência registra superávit corrente.
Ainda assim, os acusadores sempre têm uma "solução" no bolso do colete: o modelo da previdência chilena. Posso adiantar de que se trata de conversa fiada. No Chile, há quase 25 anos, sob a ditadura Pinochet, foi feita uma grande e ousada reforma previdenciária, cuja essência povoa os sonhos de consumo neoliberal. Lá sob as botas dos militares foi feita a substituição do sistema de repartição pelo de capitalização. Traduzindo: em lugar de um sistema no qual as contribuições de todos formam um bolo que depois é distribuído, como ainda é, por exemplo o que se faz no Brasil, adotou-se a norma de que, mesmo na previdência pública, cada cidadão formaria sua própria poupança individual, à maneira dos fundos de previdência privados.
O caso da previdência chilena virou um ícone neoliberal. Pena que ela seja tão ou mais elogiada quanto desconhecida. A informação que nunca aparece, senhores, é que a previdência chilena, apenas duas décadas e meia depois de implantada, está fazendo água. E as projeções indicam que, sem reformas, exatamente como as outras, pode quebrar. E agora?
Já chega a 6% do PIB o volume de recursos públicos absorvidos, anualmente, pela previdência chilena. Mais do que o governo chileno destina à saúde e à educação. Se ainda é metade do que o Brasil gasta em previdência e assistência, segundo um cálculo recente, é bom saber que, em 1981, quando o sistema foi criado, não consumia mais de 2% do PIB e estava projetado para se estabilizar em 3% a 4% do PIB, a cada ano.
Tem mais: 85% dos participantes, na época de implantação do sistema, conseguiam manter seus depósitos como contratado, mas hoje não mais de 50% dos participantes honram as cotas definidas no plano pessoal de capitalização. É, sem tirar nem pôr, uma bomba relógio, à semelhança da previdência brasileira. E mais ainda: há evidências de que pelo menos 30% da população, em razão da sua baixa renda, não conseguiriam juntar o valor mínimo necessário para formar poupança mínima capaz de assegurar-lhes pensão maior do que a base de US$ 80 mensais garantida pelo Estado até mesmo às donas-de-casa.
Essas e outras informações, num detalhado raio-X da previdência chilena, podem ser encontradas no trabalho da jornalista Soraia Duarte para a revista que dirijo, Foco – Economia e Negócios, realizado há exatamente um ano. "O modelo original era vendido como milagroso, pois prometia aumentar os postos de trabalho, aumentar a renda e baixar a informalidade", lembra um dos entrevistados, o economista Andras Uthoff, coordenador do Departamento de Estudos Especiais da Cepal, em Santiago.
Adivinhem qual é a "solução" em debate no Chile para cobrir o "rombo"? Obviamente duas: reduzir o benefício mínimo garantido ou ampliar os requisitos para recebê-lo. Agora, adivinhem a explicação para o desarranjo chileno? Baixo crescimento econômico, empregos insuficientes, informalidade. Qualquer semelhança com as verdadeiras causas da bomba relógio previdenciária brasileira, como se vê, não é mera coincidência.
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