Recomenda-se a quem quiser entender o governo Fernando Henrique Cardoso, uma consulta ao livro "República do Catete" (Museu da República, 2001), uma coletânea de ensaios sobre a história da República, especialmente os capítulos referentes ao governo Campos Salles.
Logo após eleito, FHC anunciou que seria um novo Campos Salles. De fato, foi uma cópia perfeita de Campos Salles (1898-1902), com quase cem anos de atraso.
Campos Salles foi o criador de um modelo que assegurou a governabilidade à República Velha, até 1930, à custa do desenvolvimento nacional. A "Política dos Governadores" era um pacto liberal-oligárquico. Numa ponta, dava plena liberalização aos capitais e criava regulamentos e concessões que favoreciam os financistas -pessoas com noção de modernos modelos de negócios, capazes de reciclar a poupança brasileira guardada no exterior. Na outra ponta, articulava-se com as forças estaduais mais influentes e anacrônicas. Poucas vezes os financistas ganharam tanto; nunca os coronéis foram tão poderosos.
Outra afinidade foi na definição do ministério. Em ambos os casos, o ministério refletia as afinidades do presidente, mais do que composições partidárias. Campos Salles pôs Joaquim Murtinho na Fazenda, por concordar com sua ortodoxia. FHC pôs Malan, que se tornou ortodoxo para concordar com FHC. A família de Murtinho foi proprietária de um banco e de uma estrada de ferro constituída na volta final do "Encilhamento" (movimento especulativo que explodiu logo após a Proclamação da República). Os economistas de FHC se tornaram, todos eles, sócios ou altos funcionários de bancos de investimento beneficiados pela especulação dos anos 90. Todos tinham horror a políticas industriais.
A herança de Campos Salles pairou sobre FHC na visão rasa da inserção do Brasil na economia internacional, na emulação dos aspectos mais superficiais da economia norte-americana, no pacto de governadores, no profundo desprezo pelo povo, no esmagamento das finanças estaduais, no corte dos gastos de educação e saúde. O único credor considerado era o externo. Provavelmente porque esse capital era constituído de depósitos brasileiros em bancos londrinos.
Outra característica do comportamento político de ambos foi a ausência de lealdade partidária. FHC praticamente ignorou as alas majoritárias do PSDB, como Campos Salles ignorou as do PRF (Partido Republicano Federal).
Em ambos os casos, a imagem que foi vendida à população foi a de um "candidato desvinculado da entropia dos anos caóticos": no caso de Campos Salles, a herança de Deodoro, Floriano, Prudente de Morais, do "Encilhamento"; no de FHC, a herança de Sarney, Collor, Itamar, dos anos de superinflação.
Ao repetir Campos Salles, o erro fundamental de FHC foi não se dar conta de que o Brasil dos anos 90 não era mais o país quase selvagem do início do século. Já se tinha uma industrialização completada, que precisava ser exposta à competição externa. Havia agentes privados, PhDs, institutos de pesquisa, uma classe operária relativamente moderna, multinacionais de porte, um agronegócio promissor, novas regiões de colonização. No plano internacional, as grandes multinacionais começavam a realocar unidades pelo mundo, e o Brasil era um dos portos preferenciais graças ao potencial de consumo liberado nos primeiros meses do Real.
A Constituição de 1988 e o primeiro ano do governo Collor liberaram energias que, nos anos seguintes, ajudariam a segurar as pontas do país. Foi o que restou no final da década, depois do vendaval especulativo resultante da apreciação do câmbio e das taxas de juros praticadas.
A história reconhecerá que FHC foi um "macunaímico" -para usar sua autodefinição. Campos Salles criou uma tecnologia de governabilidade que durou duas décadas. A de FHC provavelmente não resistirá ao seu sucessor.
Mas ambos se igualam no fato de terem desperdiçado as duas maiores oportunidades de desenvolvimento do século.
Folha de S Paulo
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Sunday, May 22, 2005
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