Tendo agido mais como chefe de governo e de partido, Lula passa também a atuar, com a mesma preocupação, como Chefe de Estado no cenário interno. Por essa razão, marcou-se o encontro de quarta-feira com os líderes de todos os partidos na Câmara e os membros da Mesa Diretora. É preciso distinguir os dois papéis. Chefe de governo é o que cuida da máquina administrativa. O de Estado cuida da alta política, dentro daquela necessária constatação de que o governo é efêmero, mas o Estado, imanente à Nação, carrega o projeto de eternidade. O que mantém os Estados é a razão política, na doma incansável dos conflitos de cada dia.
Essa dupla responsabilidade, em nosso sistema, reclama do presidente da República delicado autocontrole intelectual e ético, para não permitir que o chefe de partido e de governo prevaleça sobre o Chefe de Estado. O governo pode ser substituído, mas o Estado, não. Os Estados só se substituem com a violência das armas, nas guerras externas ou nas rebeliões domésticas, embora possam ser reformados pela sociedade. Mas podem se perder no descuido de um segundo, conforme adverte Richelieu.
O grave erro dos governos chefiados pelos presidentes Fernando Collor e Fernando Henrique foi o de violar sistematicamente essa regra. O primeiro, tendo sido ''escancaradamente'' corrupto (para incluir, no léxico político, o advérbio do ministro Marco Aurélio) foi interrompido pelo impeachment. O segundo - mercê da ''habilidade'' com que amealhou votos parlamentares, engambelou a opinião pública, obteve a reeleição, e emendou a Constituição para desnacionalizar a economia, reforçar o predomínio do poder financeiro, impor a ditadura orçamentária do Banco Central e da Secretaria do Tesouro - conseguiu erodir o poder do Estado federativo como guardião da soberania e permanência histórica da Nação.
Lula, como sabem todos, é hábil negociador. Coube-lhe chefiar a complexa aliança partidária que lhe garantiu a vitória. O PT deu-lhe o entusiasmo dos militantes, mas não teria sido capaz de reunir, por si só, os votos da maioria. Eles vieram de sua liderança popular e do apoio instrumental dos partidos aliados. Tratou-se, portanto, da vitória de uma coalizão. O presidente, diante da pressão dos banqueiros e dos economistas, foi obrigado a aceitar, para presidir o Banco Central, o adversário político Henrique Meireles. Essa foi a primeira infiltração dos vencidos no governo. Outras, disfarçadas de neutralidade, vieram mais tarde.
A conjuntura política internacional e a conspiração permanente de setores da oposição estão conduzindo o país a eventual crise das instituições, conforme, com o sorriso habitual e revelador de ambiciosa alegria, apontou o ex-presidente Fernando Henrique. Ele, ao sair, deixou minas bem camufladas nas gavetas do poder, e sabe que, se não forem desarmadas, poderão detonar e tornar o país ingovernável. É hora, portanto, para Lula dar um dia de descanso ao Chefe de Governo e ir, como Chefe de Estado, falar com a liderança do Parlamento, e de tornar habituais os encontros. O Poder Judiciário, pela própria natureza, não pode imiscuir-se nas discussões políticas. Ao contrário do que pretendem alguns, deve manter-se sobranceiro, a serviço da Justiça e na defesa do Estado.
Os representantes mais responsáveis da oposição também meditam sobre a situação interna e externa. Sem renunciar ao dever de fiscalizar e denunciar, sempre que houver razões para isso, os líderes da oposição sabem que não podem colocar em risco o Estado e as instituições, em nome do projeto político pessoal de qualquer um. E Lula já tratou com empresários muito mais intransigentes do que os políticos da oposição.
O presidente irá, naturalmente, conversar também com os governadores, cujo poder real Lula sabe que não pode ser menosprezado -- já que os dissídios da União com os entes federados são ainda mais graves. Talvez opte por encontros de caráter regional, mais produtivos.
Antes que alguém comece a gritar, é hora de conversar.
JB
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