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Sunday, May 08, 2005

Língua, censura e poder-CHICO ALENCAR



O livreto "Politicamente Correto e Direitos Humanos" (edição de junho de 2004 da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, 87 páginas, distribuição gratuita), com 5 mil exemplares, foi dirigido a parlamentares, agentes e delegados de polícia, guardas de trânsito, jornalistas e professores.

O objetivo da publicação, segundo apresentação de Perly Cipriano, subsecretário de Direitos Humanos, é "incentivar o debate e fomentar a reflexão, sem querer promover discriminações às avessas". Trata-se de "obra em construção, com a colaboração de seus leitores". Qualquer um terá muitas, pois ali há expressões tidas como preconceituosas que, no português-brasileiro, "língua certa/fala errada" do povo, já foram incorporadas sem problemas pelas supostas "vítimas" da discriminação. É de se reconhecer, porém, que há expressões de uso comum ofensivas e preconceituosas, e questioná-las é oportuno.

Claro que a linguagem não precisa de polícia; mas necessitará sempre de debate, de troca pedagógica, pois é, muitas vezes, expressão de dominação, opressão, desqualificação do outro.

É positivo implementar políticas que reforcem a ainda débil cultura dos direitos em nosso país. O glossário, muito imperfeito, contribui, quando nada, pelo debate que está gerando. No princípio era o verbo! A língua, essa divina forma de relação humana, jamais será aprisionada. Cada ser humano tem o direito irrevogável de dizer sua palavra. Mas a língua não tem dono e existe para que todos, até autoridades públicas, possam dizer que determinadas palavras, expressões e piadas contêm sutilezas racistas ou machistas.

Outro dia uma menininha se referiu a um colega de turma como "mongol" — problematizei o uso do termo com ela e creio que entendeu. Quando o meu Flamengo toma gol e a galera adversária grita "ela, ela, ela, silêncio na favela" ou "urubu, vai tomar no *", fico duplamente chateado, pois o tom da multidão é evidentemente discriminatório. Alertar e questionar não é proibir nem censurar.

Sim, a cartilha, agora recolhida, tem muitas expressões consideradas ofensivas que, na verdade, não o são, na atual conjuntura. O verbete "comunista", que está entre os selecionados, só tem o mérito de explicar a origem da perseguição aos "subversivos". Nos regimes totalitários de direita chamar de comunista é mais que ofender: produz perseguição, prisão e tortura, como dolorosamente aprendemos.

Vários setores dos movimentos negros pedem para que designemos coisas e objetos como preta(o)s e só a raça como negra. É uma precisão, em muitos casos, exagerada ("vala negra", por exemplo, precisa virar "esgoto a céu aberto"...). Mas a cartilha — que poucos leram e muitos condenaram —- também diz que "em certas situações", tanto negro quanto preto podem ser altamente ofensivos. Em outras, podem denotar carinho, como nos diminutivos "neguinho", "minha preta" etc."

As palavras são a matéria-prima da liberdade, do amor, da humanização do bicho-homem. A suprema arrogância dos ditadores de todos os tempos é silenciá-la. Nunca conseguirão isso de forma definitiva. Esse "desejo secreto" não mora em quem fez a cartilha. Não é comum quem lutou contra a censura depois de liberto querer censurar...

Só regrediremos mesmo se permitirmos que o preconceito e a discriminação de classe, de gênero, de orientação sexual, de religião ou de raça se cristalizem em nosso país, e a linguagem também pode ser veículo para isso. Há várias outras publicações da mesma Secretaria Especial de Direitos Humanos, como "Brasil Sem Homofobia", "Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos", "Manual de Abordagem Policial", "Diversidade Religiosa e Direitos Humanos": todas ajudam a combater o preconceito nosso de cada dia e a construir um Brasil mais cidadão.
CHICO ALENCAR é deputado federal (PT/RJ).
O GLOBO

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