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Monday, May 23, 2005

Eric Nepomuceno: A solidão de uma vida inacabada

Eric Nepomuceno: A solidão de uma vida inacabada


Carson McCullers morreu em 1967. Deixou uma autobiografia a meio escrever. Em tudo na sua história densa e agoniada, há uma coerência tremenda: como sua vida, a autobiografia ficou inacabada. As coisas sempre acontecendo fora de hora, muito antes ou muito depois. Do quê? Ela nunca soube. Só soube dos desencontros do tempo.

Foi uma das mais inquietantes escritoras norte-americanas. Sua literatura está coberta de dor, recheada de injustiças, violência e doses maciças de crueldade. Pouca gente tratou, como ela, da solidão e do grotesco da condição humana. Uma prosa voraz, lírica e afiada feito navalha que rasga a madrugada. O grito dos solitários sem saída.

Viveu 50 anos, mais da metade deles abalada por doenças misteriosas e dolorosas, operações delicadas e complexas, períodos negros de convalescença desesperançada. Desde seus 15 anos, escrever e suportar as agruras de um corpo minguado e maltratado andaram lado a lado. Ela ainda se chamava Lula Carson Smith quando ganhou sua primeira máquina de escrever. Uma espécie de consolo para a moça que queria viver de música e teve uma grave pneumonia. No ano seguinte escreveu seu primeiro conto, conheceu o primeiro grande amor e descobriu o prazer fulgurante dos exageros. Era precoce em tudo: aos 19 anos fumava três maços de cigarro por dia, tinha um marido chamado Reeves McCullers que bebia bem parar - ''o único homem que beijei na vida'', dizia ela -, e os médicos diagnosticaram uma tuberculose aguda em seu corpo de palha.

Naquela altura de sua vida breve, a moça frágil e miúda padecia de uma artrite crônica e perversa, que iria paralisar metade de seu corpo e consumi-la até o fim.

E foi assim, doente, que escreveu o primeiro livro, publicado em 1940: O coração é um caçador solitário. O título veio de um poema de William Sharp, que trazia o verso contundente: ''Mas meu coração é um caçador solitário/ que caça em uma colina solitária''. Provocou um impacto enorme. Os leitores foram aos limites da emoção e os críticos apressaram-se em dizer que surgia, no mais profundo Sul do país, uma autora capaz de instalar-se no mesmo patamar destinado a ícones como William Faulkner.

Depois dos desastres do amor, Carson McCullers estava morando em Nova York, separada do marido, e loucamente apaixonada por uma suíça bela e fugaz chamada Annemarie Clarc-Schwarzenbach. Sua vida era uma turbulência desenfreada que haveria de acompanhá-la até o fim. O caso com a suíça durou pouco. As lembranças e as marcas ficaram para sempre. Elas nunca mais se encontraram.

Vieram depois os contos de Reflexos em um olho dourado. O livro foi lançado no dia 14 de fevereiro de 1941 - que, nos Estados Unidos, é o Dia dos Namorados. Estava dedicado a Annemarie. E então, aos 24 anos, Carson McCullers adoeceu outra vez. Enfrentava tremendas dores de cabeça e, volta e meia, perdia a visão.

Escreveu até o fim. E, até o fim, viveu a angústia que confessou a uma psiquiatra, em certo dia de exaustão e melancolia do final de 1958:

- Doutora, perdi a minha alma.

A resposta foi suave: ''Acho que não perdeu não. Acho que ela está apenas extraviada''. Era preciso encontrá-la de novo.

A busca durou até 19 de setembro de 1967, o último dos dias de Carson McCullers. Sabia que jamais encontraria a alma extraviada. Sabia que estava perdida para sempre, e que no peito carregava um coração fatigado, um caçador solitário em sua caçada sem fim.

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