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Saturday, May 07, 2005

O escritor Rubem Fonseca chega a oito décadas de idade querendo ser um "José comum"

LUIZ FERNANDO VIANNA- DA SUCURSAL DO RIO

São cinco da manhã. Talvez menos. Depois de umas quatro horas de sono, José se levanta e abre a internet para olhar as principais notícias de alguns jornais. Pega um dos bonés de sua vasta coleção e desce de seu apartamento, que fica em um andar alto de um prédio alto da rua General Urquiza, no Leblon, zona sul do Rio, onde mora há 35 anos. Segue rumo à praia, onde verá o sol nascer caminhando no calçadão. Poderá, também, sentar-se em um banco da praça Antero de Quental e ficar observando os mendigos, os velhos e os floristas, gente que conhece bem. Ou pensar em algo que deseja escrever daqui a pouco. Depois é a hora do café da manhã no Talho Capixaba, um misto de açougue, lanchonete e delicatessen. Lanchado e com um pão italiano embaixo do braço, volta para o seu apartamento. Nesse dia, lerá pelo menos um livro, verá entre um e três filmes em vídeo ou DVD e escreverá dezenas de palavras, literárias ou não, no computador. Levando-se em conta que José mora sozinho e tem manias como a de não tomar água e beber Coca-Cola quente, sua rotina assim descrita insinua um homem fechado, soturno, calado, até triste. Mas não é. Gastará algumas horas do dia conversando por telefone ou ao vivo com seus três filhos; colhendo notícias de seus cinco netos; trocando e-mails com seus muitos amigos; saindo para ir ao cinema ou almoçar com alguém; e fazendo planos, já que, mesmo consagrado como um dos maiores autores brasileiros, ainda tem vários livros para escrever. Na próxima quarta-feira, José completará 80 anos. Chamar Rubem Fonseca de José não é um recurso estilístico pífio. Ou é, mas com álibis. O primeiro é que esse é o nome do personagem de;José - Uma História em Cinco Capítulos, narrativa autobiográfica (embora escrita em terceira pessoa) que consta do site do escritor, parte do Portal Literal (www.literal.com.br)Ainda que só cubra da infância ao início da juventude, é a mais explícita abertura de sua vida feita por José Rubem Fonseca. Mais, só decifrando trechos de seus contos e romances. O segundo álibi é que, embora haja inevitáveis semelhanças, o Rubem Fonseca que está estampado em capas de livros e se nega a dar entrevistas e aparecer em público é um; o Zé Rubem do convívio informal e das conversas fartas e bem-humoradas é outro bem diferente. O das capas de livro é respeitabilíssimo. Mas há um outro que fica zanzando pelo Leblon de boné. Esse é engraçadíssimo;, diz a amiga e quase vizinha Heloisa Buarque de Hollanda. Já ficou famoso, entre seus amigos, um diálogo que teve com Toni Vanzolini, amigo de seu filho José Henrique. Rubem, que só vê filmes bem de perto, estava na terceira fila do cinema quando ouviu uma voz interrogativa: - Zé Rubem? A resposta para Vanzolini, que não reconhecera no escuro, foi tão rápida quanto imprecisa: - Depende. No último texto que escreveu para seu site, ele atribui a um;conhecido dermatologista; uma brincadeira que, se não é sua, já lhe serviu em mais de uma ocasião para divertir meninas do Leblon que o olham com cara de quem não estão ligando o boné à pessoa. ;Vem aqui que quero te mostrar o meu sócio;, diz, depois de se apresentar como dermatologista e conduzindo a bela para ver o sol. ;Ele estraga a pele de vocês, e eu conserto. Mas cobro caro.; Para demonstrar por que não quer ser uma pessoa conhecida, contou ao amigo Zuenir Ventura que, certa vez, ao sofrer uma queda de pressão e se sentar na beira de um canteiro, ouviu uma daquelas temidas interrogações, vinda de uma voz feminina: ;Você não é o Rubem Fonseca?;. O susto o pôs de pé e em movimento de fuga, apesar da tontura. ;Ela chegou em casa e deve ter dito: ;Encontrei Rubem Fonseca bêbado, na sarjeta, saiu cambaleando;. Isso é que é chato;, disse, rindo, a Zuenir, que registrou o causo em ;Minhas Histórias dos Outros;. Entre seus fãs, há muitos artistas, que Rubem gosta de estimular a escrever. No fim de um almoço com a atriz Bruna Lombardi, ordenou: ;Você vai para casa agora e vai começar a escrever um romance;. Ela disse que não ia. Mas foi e começou a escrever ;Filmes Proibidos;. Ana Miranda, Patrícia Melo, Chico Buarque e Jô Soares foram outros que ganharam dele empurrões fundamentais. Marçal Aquino ainda era um autor inédito, morando em Amparo, interior paulista, quando teve a coragem de enviar contos para o ídolo no Rio. Recebeu cartas com comentários minuciosos sobre os textos e estímulos para escrever mais. Sérgio Sant'Anna enviou, de Belo Horizonte, seu primeiro livro, ;O Sobrevivente;. Recebeu uma carta de resposta e a confiança para, em outros momentos, pedir auxílio. Foi sempre atendido. CORAÇÃO LOTADO DE AMOREssa generosidade é resumida por Patrícia Melo: ;Rubem é um misantropo, porque se envolve demais com as pessoas, sofre com os problemas delas. Uma amiga nossa dizia que ele era o defensor dos cachorros de rua. E é verdade. Esses cachorros vira-latas, pulguentos, não podem ver o Rubem que começam a segui-lo. Um dia eu falei: ;Vou te dar um gato, você anda muito sozinho;. Ele me respondeu: ;Não me dá gato nenhum. Meu coração não tem mais espaço, está lotado;. É um homem com o coração lotado de amor;. Com os pais portugueses Alberto e Julieta -nomes que aparecem, por exemplo, no conto ;A Matéria do Sonho;, de 1967- e os irmãos Manoel e Carlos, Rubem viveu na mineira Juiz de Fora, onde nasceu, até os oito anos. Quando faliu a loja de Alberto, a Paris n'América, o casal retornou ao Rio, onde havia se conhecido. Alguns traços da personalidade de Rubem já estavam marcados. OBSESSÃO POR LIVROS E PALAVRAS O traço mais marcante é a obsessão pelos livros. Na infância, até se deitava no chão frio do banheiro para adoecer e poder ficar em casa lendo. Se tem interesse por um assunto, lê tudo o que pode sobre ele, na língua que for -inglês é o seu forte, mas conhece bem espanhol, francês, italiano e alemão. Foi assim, por exemplo, com charutos, vinhos e bichos que marcaram sua infância, como escorpiões, aranhas e joaninhas. Tem até hoje o costume de tropeçar nas palavras ao falar, como se não acompanhassem o ritmo do seu pensamento. No Rio, descobriu um paraíso chamado Biblioteca Nacional. Difícil passar um dia sem consultar seus livros e admirar suas estantes. Coincidentemente, a instituição é dirigida hoje por seu genro Pedro Corrêa do Lago, marido da editora Beatriz, 49, mãe de Antônio Pedro, 25, e Paulo Henrique, 23. Morar no centro o ajudou a se tornar especialista na história e nas histórias da região, cenário de seu célebre conto ;A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro;, cujo protagonista se chama Augusto, como seu pai, e é um andarilho, como o autor. Ele começou a trabalhar aos 12 anos, como entregador de uma oficina de produtos de couro. Estudava à noite na Moderna Associação Brasileira de Ensino, na rua do Riachuelo, na Lapa. No final dos anos 40, formou-se na Faculdade Nacional de Direito, mas os primeiros (e últimos) anos de advocacia foram um fracasso. Acuado pela falta de dinheiro, em 1950 ele prestou concurso para comissário de polícia. A passagem de Rubem pela polícia era um mito até 1995, quando o repórter Mario Cesar Carvalho, da Folha, reconstruiu os anos do comissário Fonseca. Em resumo, ele deu seu primeiro plantão em 31 de dezembro de 1952, deixou de ser policial de rua em 26 de junho de 54 e cumpriu funções administrativas até 6 de fevereiro de 58, quando foi exonerado. ;Não aceitaram que ele também trabalhasse na Light, e a polícia acabou perdendo um cara como ele;, conta o advogado e ex-delegado Ivan Vasques, amigo daquele tempo. ;Um cara como ele; significa um craque nos fatores psicológicos que envolvem os crimes. Mas Rubem nunca foi um exímio tira de rua e, pelo que se sabe, nunca baleou ninguém. Seus dotes foram mais bem aproveitados no setor de relações-públicas da polícia. Especializou-se no tema, dando aulas na Fundação Getúlio Vargas e tornando-se executivo da Light, onde trabalhou por 20 anos. Pouco antes do golpe militar de 1964, foi diretor do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), criado pelo general Golbery do Couto e Silva e apontado como um dos articuladores do golpe. ;Já ouvi que eu teria colaborado com o governo militar, o que é uma deslavada e estúpida falsidade. Se algum papel desempenhei durante a ditadura, foi o de vítima;, afirmou o escritor em 2001, em uma das poucas manifestações públicas: um fax enviado para o ;Fantástico;, da TV Globo. Rubem diz no fax ter deixado o Ipes logo depois do golpe, ;intervenção; que lhe ;parecia absurda e inaceitável;. Diz-se vítima do regime militar por ter sido demitido da Light assim que a empresa foi estatizada e por causa da proibição, em 76, de ;Feliz Ano Novo;. ;[A proibição] me deixou tão puto da vida que aí escrevi um outro conto ainda mais violento;, disse a Zuenir Ventura, referindo-se a ;O Cobrador;, seu livro seguinte. Simpatizante do socialismo nos anos 40 e 50, Rubem estreou na literatura graças à sua atuação entre os supostos conservadores. Gumercindo Rocha Dórea, ex-integralista e editor de livros integralistas, recebeu da secretária de Rubem no Ipes dez contos que estavam na gaveta do chefe. Dórea ficou impressionado e mandou rodar o livro. Com as provas na mão, voltou a Rubem: ;Tenho um presente para você;. A recepção não foi em clima natalino. ;Ele se destemperou e pôs para fora toda a linguagem que usava nos contos;, lembra Dórea, 81. Só oito dias depois o ;presente; foi aceito, em um diálogo bem ao estilo José Rubem. - Topo, mas a capa tem de ser do meu filho. - Tudo bem, respondeu ele. - Mas ele só tem cinco anos. O desenho foi a estréia de José Antônio no mundo artístico. O fotógrafo Zeca Fonseca tem hoje 47 anos. É pai de outro José Antônio, 23, e de Ana, 13. O CONTO ANTES E DEPOIS DE RUBEM FONSECAO sucesso de crítica de ;Os Prisioneiros;, lançado em 63, foi o início da carreira de um contista fora do comum. ;O conto brasileiro se divide em antes e depois de Rubem Fonseca;, diz o escritor Luiz Ruffato. ;Ele fazia literatura urbana antes de o Brasil ser essencialmente urbano e usava a violência na literatura antes de o Brasil ser essencialmente violento.; Pelo cinema, a paixão é igual ou maior à que tem pela literatura. Foi, entre 11 de setembro e 11 de dezembro de 68, crítico da ;Veja;. Escrevia pequenos comentários sobre filmes, sem assinar. Rubem sabe que, no cinema, a última palavra é do diretor. Aceitou fazer todas as mudanças pedidas por Walter Salles no roteiro de ;A Grande Arte;, mesmo não concordando. Na transformação de ;O Matador; em ;O Homem do Ano;, dirigido por seu filho José Henrique, mexeu bastante no romance de Patrícia Melo, que às vezes protestava: - Mas no livro não é assim. - Que livro?, rebatia ele. ;Quando eu falei que ia filmar ;Mandrake; [série de oito episódios da HBO centrada no famoso personagem de Rubem], me perguntaram: ;Não é demais fazer outra coisa ligada a seu pai?;. Para mim, é uma honra, um patrimônio que eu tenho em casa;, diz José Henrique, 40, pai de Maria Maud, 4, e casado com a atriz Cláudia Abreu. A lealdade na família se mostra em vários aspectos, como na paixão unânime pelo Vasco. Quando Théa Maud ficou seriamente doente, Rubem decidiu cuidar ele mesmo da mulher, assumindo quase todas as funções. Tradutora e escritora (assinava Théa Fonseca), ela morreu em 97. Há dois anos, sua autonomia quase foi fatal. Portador de uma úlcera crônica -como o comissário Mattos (sobrenome de sua mãe) de ;Agosto;-, ele sofreu uma fortíssima hemorragia em casa. Com dificuldade, conseguiu ligar do celular para Zeca, que correu para salvá-lo. O número desse celular, aliás, só familiares e pessoas muito próximas têm. E algumas amigas. A VISÃO DE UMA MULHER EM MOVIMENTOEle é capaz de passar 40 minutos falando da superioridade das mulheres, buscando referências no Egito e na Grécia para comprovar sua tese. E, na mesma conversa, contar que já até namorou uma tuberculosa, pois ninguém a queria, e não resistiu a emprestar seu afeto a uma moça desamparada. Resume sua adoração em trecho da série;Não havia (e não há) nada mais agradável de se ver do que uma bela mulher em movimento;. Ser apenas um José nas ruas do Leblon é tudo o que Rubem Fonseca quer para colher histórias e imagens para seus contos e romances. Por trás de boa parte do que dele se lê, há um homem de boné enterrado na cabeça observando as pessoas e o mundo

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