O mal dos escândalos esporádicos de corrupção, a exemplo desse extraído dos Correios por mais uma gravação imprevista, é deixarem a impressão de casos circunscritos a si mesmos, isolados e ocasionais, tão chocantes para os integrantes de governos e para os parlamentares quanto para os cidadãos em geral. A corrupção, no entanto, tornou-se um sistema. A administração pública no Brasil está carcomida pela corrupção como a madeira por cupins. A corrupção passou a ser uma das instituições que compõem a alma e a forma do regime político brasileiro. Nasce em palácios e no Congresso, nas assembléias estaduais e nas câmaras municipais, e invade a administração. Seu instrumento é o processo das nomeações para cargos públicos.
Quem cobra cargos e quem os dá sabem, ambos igualmente, para que servem esses cargos.
Quem cobra cargos e quem os dá sabem, ambos igualmente, que a cobrança e a nomeação não visam, nem remotamente, o interesse público.
No melhor dos casos, e melhor aí exprime também pequena minoria, os nomeados valem-se dos cargos para ampliar bases eleitorais em benefício do padrinho ou benefício próprio. Fazem-no por meio de empregos, contratações, serviços direcionados e outros favorecimentos. Ou seja, beneficiam-se e aos padrinhos politicamente à custa de recursos da administração pública. Corrupção eleitoral e política, portanto. Executada pela parte beneficiada com a nomeação e patrocinada pela parte autora da nomeação (ou ordem para nomear, que dá no mesmo).
Para quê congressistas, deputados estaduais e vereadores desejam, insaciáveis, tantos cargos sempre ligados, ainda que indiretamente, a compras, vendas, concorrências e contratações? A pergunta dispensa resposta. Que tanto está na intuição de qualquer de nós, como nos patrimônios materiais que circundam políticos, em acúmulos fáceis e rápidos, com a desfaçatez do próprio nome ou com os inúmeros truques facilitados pela omissão das várias fiscalizações possíveis, mas nunca voltadas para políticos.
Sempre houve corrupção eleitoral e política, como sempre houve todos os males de que o homem é capaz. De duas décadas para cá, porém, instalou-se no Brasil um processo extensivo de corrupção descarada e generalizante nas administrações públicas. Só repelida, e em termos, quando o justificável excesso de confiança na liberdade da corrupção permite um flagrante embaraçoso. Diz-se que as polícias estão minadas pela corrupção: é que policiais corruptos estão forçosamente mais expostos, ao passo que o recesso de gabinetes administrativos e parlamentares oferece ambiente propício. Mas na dimensão dos favorecimentos e montantes obtidos por corrupção, os gabinetes nem se rebaixariam a uma comparação com as polícias.
A degeneração das duas décadas teve um momento exponencial na sua primeira fase, com a concessão a granel de canais de rádio e de TV, feita pelo então ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, a parlamentares em troca de determinados apoios ao governo Sarney no Congresso e na Constituinte. A aceleração do processo degenerador deu-se no governo Fernando Henrique. Necessitado de votos para aprovar medidas que a maioria (do Congresso e do país) não apoiava, Fernando Henrique adotou o método de comprar os de convicções corrompíveis, com cargos utilitários e favorecimentos variados.
Lula, que não poderia vender as telefônicas e energéticas já vendidas, adotou o método de aquisição de apoios parlamentares por falta de coragem, além de outras faltas, para iniciar um processo de moralização, tanto da Presidência como da vida parlamentar, pela discussão das inovações e mudanças que o eleitorado dele esperou. Apoio da sociedade para fazê-lo não lhe faltariam, na medida mesma em que não lhe faltaram votos para as inovações prometidas.
Muito mais ilustrativo do processo de degradação, mais do que o caso dos Correios e todos os Waldomiros juntos, é o recente episódio em torno de um cargo na direção da Petrobras: diretor de Exploração e Produção. Assim foi a insistência de um interlocutor da ministra das Minas e Energia, Dilma Roussef, que lhe propunha um cargo alternativo para o seu apadrinhado: "Eu quero o cargo que o presidente me ofereceu durante a viagem a Roma".
O interlocutor de Dilma Roussef era Severino Cavalcanti. A respeito de Lula, é suficiente realçar a expressão ME OFERECEU. O que foi oferecido é um cargo técnico que transaciona com dezenas de bilhões da maior empresa brasileira.
É impossível oferecer o cargo sem as dezenas de bilhões que o fazem existir e ser grande responsável pelo êxito assombroso da Petrobras (salva por pouco no governo passado). Na ótica administrativa e ética de Lula, esse cargo e seus bilhões são apenas moedas para aplacar as chateações que Severino Cavalcanti lhe vem criando, menos do que diz o noticiário alardeante e mais do que o governo patético sabe evitar por meios hábeis e limpos.
Por que e para quê o presidente da Câmara há de tutelar um cargo técnico dotado de dezenas de bilhões em empresa administrada pelo Executivo? Por que e para quê o presidente da República põe no balcão da politicagem o cargo e os bilhões?
Não fosse a divulgação da frase de Severino Cavalcanti, a transação com aquela diretoria seria ignorada cá fora. Pois é sob esse desconhecimento que a administração pública está carcomida de fora a fora. A moralidade administrativa é uma farsa.
folha de s paulo
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Sunday, May 22, 2005
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