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Tuesday, July 19, 2005

A um petista de boa-fé: o 1989 do PT

A um petista de boa-fé: o 1989 do PT

Ana Maria Pacheco Lopes de Almeida (19/07/05 10:20)

Permitida a reprodução citando a fonte
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O PT como o conhecemos nos últimos 25 anos está morto, porque "a verdade é maior e prevalecerá." Esta máxima latina serve à reflexão dos petistas de boa-fé. São eles que dirão se um outro PT é possível. Para desmontar as versões pré-fabricadas que se sucedem a tentar explicar o inexplicável, talvez seja útil reler a história recente da esquerda no mundo. Há lições aproveitáveis. E algumas analogias.

Um historiador inglês, Timothy Garton Ash, escreveu um pequeno livro admirável, intitulado "Nós, o povo." Ele testemunhou – e narrou – o colapso do império soviético. Estava em Varsóvia, Budapeste, Berlim e Praga, quando aquele mundo desabava. Viu e compreendeu a história, no calor da hora. Abaixo, um trecho do último capítulo, que ele chamou de "O Ano da Verdade". À parte as devidas proporções, ajuda a pensar sobre a extensão do desastre em que nos metemos e sobre as saídas possíveis. Para o país e para o PT.
...
"Com certeza os dirigentes não acreditavam mais em uma palavra das tolices que declamavam, nem esperavam que seus súditos acreditassem nelas, e nem sequer tinham esperanças de que seus súditos acreditassem que eles, dirigentes, acreditavam nelas? Isso é provavelmente verdadeiro na maior parte dos casos, embora não se possa saber no que um velho como Erich Honecker [último líder da Alemanha Oriental], comunista desde o início de sua juventude, ainda acreditava genuinamente. (Não se deve nunca subestimar a capacidade humana para a auto-ilusão.)

No entanto, uma das coisas que essas revoluções mostraram, ex post facto, foi quão importantes ainda eram os resíduos de ideologia. Poucos dirigentes se contentam em dizer simplesmente: "Nós temos metralhadoras Gatling e vocês não!" , ou "Estamos no poder porque estamos no poder." A ideologia proporcionava uma legitimidade residual, e talvez permitisse também que os dirigentes, e seus servidores politburocráticos, se iludissem pelo menos parcialmente quanto à natureza do seu próprio domínio. Ao mesmo tempo, ela era vital para a ocupação semântica da esfera pública. A combinação de censura e um monopólio quase completo do Estado-Partido sobre os meios de comunicação constituía o exército de ocupação semântica. A ideologia, na sua forma rebaixada e rotinizada de novilíngua, era a munição. Por mais desprezadas e desacreditadas que estivessem essas estruturas de mentira organizada, elas continuavam a exercer uma tremenda ação bloqueadora. Já não mobilizavam ninguém, mas ainda impediam a articulação pública de aspirações compartilhadas e verdades comuns.

Além disso, ao exigir do cidadão comum os sinais semânticos aparentemente inócuos de conformidade exterior, o sistema conseguiu, de certo modo, implicá-lo nisso. É fácil agora esquecer que, praticamente até ontem, quase todos na Alemanha Oriental ou na Tchecoslováquia estavam vivendo uma vida dupla: dizendo sistematicamente uma coisa em público e outra em particular. Este foi um tema central da obra ensaística de Václav Havel na última década, e ao qual ele voltou emocionantemente em seu discurso de ano-novo como presidente em 1990. O pior, disse ele, era "a devastação do ambiente moral. Estamos todos moralmente doentes, pois nos acostumamos todos a dizer uma coisa e pensar outra." E: "Todos nós ficamos acostumados ao sistema totalitário, aceito como um fato inalterável, e portanto o mantivemos em funcionamento... Nenhum de nós é meramente uma vítima dele, porque todos nós ajudamos a criá-lo juntos." A "linha de conflito" fundamental, escrevera anteriormente, não passa entre o povo e o Estado, mas antes através de cada indivíduo, "pois cada um, a seu modo, é ao mesmo tempo vítima e sustentáculo do sistema." Uma faixa que vi em cima do altar em uma igreja de Berlim Oriental exprimia vividamente o mesmo pensamento básico: "Eu sou Caim e Abel."

De modo a entender o que significava para as pessoas comuns participar daquelas vastas multidões nas praças da Europa Central, gritando suas próprias e espontâneas palavras de ordem, é preciso antes um esforço de imaginação para entender a sensação de se ver obrigado a pagar uma taxa diária de hipocrisia. Reunindo-se e gritando juntos, aqueles homens e mulheres não estavam apenas curando divisões na sua própria sociedade: estavam curando divisões neles mesmos. Tudo o que tivesse relação com a palavra, com a imprensa, com a televisão, era de uma importância primordial para essas multidões. A ocupação semântica era, para elas, tão ofensiva quanto a ocupação militar; limpar o ambiente lingüístico era tão vital quanto limpar o ambiente físico. A longa fila que se formava todas as manhãs na praça Wencelas [em Praga], esperando pacientemente na neblina gelada por um jornal chamado A Palavra Livre, foi, para mim, uma das grandes imagens simbólicas de 1989.

O lema do ano – e não só na Tchecoslováquia – foi "Pravda Vitezí", a velha palavra de ordem hussita adotada por Masary, "A verdade prevalecerá", ou, no latim ainda mais antigo, "Magna est veritas et praevalebit." Assim como se fala de uma "hora da verdade" em algum empreendimento, esse foi o ano da verdade para o comunismo. Em certo sentido, verdadeiro, esses regimes viveram pela palavra e pereceram pela palavra.

Pois o que foi que aconteceu, afinal de contas? Alguns milhares de pessoas, que passaram a dezenas de milhares e depois a centenas de milhares, saíram às ruas. Falaram umas poucas palavras. "Renunciem!", "Liberdade!" E os muros de Jericó caíram. E, com eles, os partidos comunistas simplesmente desmoronaram. Com espantosa rapidez. Até o final de 1989, o Partido Socialista dos Trabalhadores da Hungria tinha-se partido ao meio, e a maioria de seus filiados o havia simplesmente abandonado. Em janeiro de 1990, ocorreu o mesmo com o Partido Operário Unificado da Polônia. Em três meses, o Partido de Unidade Socialista da Alemanha Oriental perdeu o papel dirigente, o nome e pelo menos metade de seus membros. A podridão interna desses partidos lembrou a observação de um poeta alemão em 1848: "A monarquia está morta, apesar de os monarcas ainda viverem."

Nós, o povo, de Timothy Garton Ash. Ed. Companhia das Letras, 1990 (págs. 146 a 149)

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