Os peões contra o PT
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL-Folha
A peãozada de São Bernardo, Santo André, São Caetano e Diadema, o pessoal do ABC que acompanhou o então operário da Villares Luiz Inácio da Silva (o Lula ainda não havia sido incorporado ao nome) nas greves de 1978, 79 e 80, que arrombaram a estrutura sindical e partidária e criaram o PT, sim, esse pessoal está contra o PT.
A pedido da Folha, na última quinta-feira, 16 dirigentes e militantes sindicais, companheiros de Lula nas lutas do ABC e na fundação do PT reuniram-se em um auditório no sub-solo do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo. O objetivo: rememorar e avaliar.
Entre os 16, 15 foram fundadores do PT e sete acabaram presos por causa da agitação política (o país vivia sob a ditadura militar). Hoje, seis já saíram do PT, decepcionados com os rumos do partido.
Apenas um dos entrevistados Jaime Vicente, o "Jaiminho", criticou abertamente Lula. Todos os demais, preservam a imagem do antigo companheiro, isentando-o de responsabilidade pelo que consideram descaminhos do governo.
A peãozada ainda homenageia Lula, o dirigente que, com eles, enfrentou a tropa de choque e a Lei de Segurança Nacional, vigente à época das greves. Jaiminho saiu do PT em 82. Trocou a legenda pelo PC do B, então adversário dos petistas e foi tachado pelos sindicalistas do ABC de "traidor" e "terrorista".
A sede do sindicato, rua João Basso, 231, centro de São Bernardo, muitos conheceram quando ainda era um barracão de zinco com barbearia, nos anos 60. A barbearia, Lula deixou de freqüentar quando resolveu deixar para trás o visual bigodudo que lhe garantiu o apelido de "Taturana", ainda lembrado por alguns antigos companheiros.dos peões.
O mais de quarto de século que separa
"
para contar . reuniu, na quinta-feira, Lula na que ajudou a projeta
O ex-metalúrgico lembra da reunião da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, quando, de repente, chega uma enorme caixa. Era final dos anos 70, ditadura militar com João Baptista Figueiredo, greves operárias pipocando quase espontaneamente no ABC paulista, berço da indústria automobilística brasileira.
Aberta a caixa, um reluzente aparelho de som, novinho em folha. Presente para Lula, então presidente do sindicato. Irado com o que considerou, conta o ex-metalúrgico,
em plena os operários do ABC já davam os primeiros passos sinais de vitalidade Teve um tempo em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tomava 51 com eles, Mais de 25 anos depois das greves do ABC que Eles fizeram as greves que abalaram o país no final dos anos 70, início dos 80, .
Isaías Urbano da Cunha, 54, desquitado, três filhos, três netos, um bisneto: "Fui diretor de base do sindicato dos metalúrgicos em 1978, 79 e 80. No dia 19 de abril de 80, a polícia invadiu minha casa. Tomei porrada junto com meus filhos e minha mulher; me levaram de pijama. Os policiais ameaçavam me matar; diziam que já tinham liqüidado um outro passarinho e que agora era minha vez. Achei que se referiam ao Cicotão (José Cicote, ex-dirigente do sindicato). Foi, por isso, um alívio quando cheguei ao Dops, onde estavam os outros presos. Ficamos todos em uma sala e me lembro do nosso entusiasmo quando vimos o [advogado] José Carlos Dias entrando. Todos pensamos que ele estava lá para nos soltar. Mas, em vez disso, ele também estava sendo preso. Logo depois, chegou o [também advogado] Dalmo Dallari - a mesma coisa.
Se eu soubesse que o Lula viraria presidente da República, tinha me esforçado para aproveitar aquela prisão para virar primeira-dama. Perdi a chance.
Eu gosto de pensar que o PT é que nem um filho meu. Quando nasceu, eu tinha controle sobre tudo o que acontecia com ele. Aos poucos, isso foi diminuindo, diminuindo, até que, hoje, aos 25 anos do PT, ele faz o que quer.
Tem gente que diz que criou o PT, mas nós sabemos quem foi que criou. Foram trabalhadores como eu. Só que essa gente que se assenhorou do partido traiu tanto o PT quanto o Lula. Eles olham para mim de cima para baixo. Não sabem quem eu sou, nem se interessam."
José Cicote, 67, casado, quatro filhos: No final dos anos 70, a gente achava que os trabalhadores eram usados pelos políticos da Arena e do MDB e tivemos a idéia de mostrar que o trabalhador sabia fazer mais coisas do que peças. E surgiu o PT. Só aqui em São Bernardo, a gente tinha uns quarenta núcleos do partido, onde os militantes participavam e decidiam os rumos a tomar. E agora? Não existe mais um núcleo funcionando. Acabaram com eles. Em vez disso, o PT se familiarizou: empregam o filho, a mulher, o pai, a mãe no partido. Eu tenho quatro filhos. Nenhum nunca fez um concurso público nem nunca trabalhou num cargo público. Eu achava assim: "Se passar, vão dizer que eu ajudei; se não passar, vão dizer que é burro" -melhor não.
Não é possível que o PT tenha formado um governo assim. Não foi isso que a gente pensou. Não podiam ter rasgado o nosso programa de governo, para se aliar a uns radicais de direita como os que estão na base do governo.
O Lula morou quatro anos em Brasília no mesmo apartamento que eu, quando fomos deputados federais. Hoje, eu não consigo nem falar com o Gilberto Carvalho [chefe de gabinete pessoal do presidente], que dirá com o Lula."
Nelson Martinez, 55, casado, dois filhos: "Eu não fiz parte da fundação do PT, porque era ex-preso político e, em todo lugar que eu ia, sempre tinha um policial atrás de mim. Fiquei preso entre os dias 26 de setembro de 1973 e o final de 75, no DOI-Codi da rua Tutóia. Saí de lá estéril de tanto que fui torturado. Solto, acompanhava tudo o que acontecia nas fábricas, as greves. Quando me falaram do PT pela primeira vez, falaram em solidariedade, fraternidade e companheirismo. Isso, que orientou a fundação do PT, me deu a esperança de, enfim, poder mudar esse país.
Mas, agora, o PT foi apoderado por uma maioria oportunista, que cassou a voz dos militantes, que se opõe a que o Lula converse com seus antigos companheiros, conosco. É uma gente tão arrogante que passa e nem cumprimenta -gente como o Genoíno. Se o Lula quisesse, podia nos convidar para ser os ouvidores do seu governo. Aí sim, ele saberia o que o povo trabalhador está pensando.
Luiza Maria de Farias, a "Tia", da lanchonete do sindicato dos metalúrgicos do ABC, 67, viúva, seis filhos, "doida pra casar": "Não sou metalúrgica. Conheci esse homem [Lula] que a gente ama muito por intermédio do [ex-dirigente sindical] Nelson Campanholo. Quando vi o Lula pela primeira vez, comecei a chorar. Meu marido ficou assustado, mas eu expliquei que, na outra encarnação, certamente o Lula foi alguma coisa minha. O que eu posso falar é que sou cozinheira. Trabalhei no fundo de greve cozinhando, fui presa no dia 8 de março de 80, dia da mulher, na porta da Brastemp -estava agitando- e trabalho até hoje na lanchonete do sindicato.
Olha, eu passei noites sem dormir por causa desse maldito mensalão. O que fizeram com a nossa criança, o PT? Os trabalhadores não são mais donos do partido; nem conseguem participar dele. Desmontaram todos os núcleos e a gente perdeu o direito de falar com os dirigentes. A gente fica com aquela mágoa, aquele sentimento de que foi traído. Os donos atuais do partido só estão olhando para o umbigo deles. Eu fico tão emocionada com isso que nem dormir mais eu não consigo. Teve uma noite em que até fiz xixi na cama de tão descontrolada que eu estava. É uma tristeza."
Lenice Bezerra da Silva Azevedo, a "Nice", 47, três filhos, uma neta: "Em 80, trabalhava na Polimatic e participei da greve. Fui presa com a "Tia". Quando a greve acabou, me demitiram. Fiquei quase um ano desempregada. Depois, consegui emprego em uma fábrica, mas resolveram transferi-la para outra cidade. Foi o pior momento para mim. A fábrica fechada, eu desempregada de novo, meu marido sem emprego. Fui morar superlonge. O jeito foi ir vender roupas nas mesmas fábricas que eu, antes, parava.
Eu sou muito crítica. Em 1995, saí do sindicato, me desfiliei do PT e não olhei para trás. Acho que o PT está colhendo o que plantou.
Eu dei parte da minha vida para criar o partido. Com 22 anos, eu não ia namorar, não ia a bailes, ia de uma reunião para outra, de uma assembléia para outra. Eu não vi os meus filhos crescer. E para que isso tudo? Parece que algumas pessoas passaram anos se prepararando para criar o escândalo, para nos envergonhar. O Genoíno e o Zé Dirceu são só duas delas.
Eu espero que o partido consiga dar a volta por cima. Mas vocês vão ver no ano que vem o que nós vamos apanhar para pedir voto para o partido."
Djalma de Souza Bom, 66, casado, dois filhos: "A impressão que eu tenho é que a proposta do PT era tão forte, mas tão forte, que precisaram modificá-la totalmente. A gente estava ligado aos movimentos sociais, às lutas do povo e também disputava eleições. Lamentavelmente, nestes 25 anos, o PT fez a opção pela disputa eleitoral e isso foi domesticando o partido. Resultado: o PT ficou igual à geléia geral dos partidos brasileiros. O incrível foi ver o PT ser contra a CPI para apurar as denúncias de corrupção. Eu assinaria a CPI. Quem não deve, não teme.
Acho que nem o Lula está contente com seu governo. Lembro um dia em que ele mesmo disse: "Para alguém ganhar, alguém tem de perder". Ora, se o Lula está no governo, quem teria de perder seria o FMI, os latifundiários, os banqueiros. A classe trabalhadora tinha de ganhar. Mas é o contrário o que está acontecendo.
O Lula tinha de ser mais audacioso. Aquele velho companheiro, sensível, tem de voltar. Alguém aqui duvida da integridade do Lula? Ninguém. Mas ele não pode querer governar com um picareta como o Roberto Jefferson. Lula tem de fazer acordo é com o povo. Eu acho que ele não sabia dessas coisas que estavam acontecendo no governo. Foi montado um cordão de isolamento em torno dele.
Desde a eleição de Lula, em 27 de outubro de 2002, não sou mais um militante. Agora, sou eleitor e admirador do PT, faço aulas de canto e violão e atuo em uma entidade de caridade de São Bernardo. Espiritualmente, estou muito bem.
Gilson Luiz Correa de Menezes, 56: O capitalismo é muito sedutor. Quando eu trabalhava na Scania, e comecei a me envolver com o sindicato, tentaram me cooptar, me oferecendo o dobro do salário. Não aceitei porque me sentia compromissado com a luta dos trabalhadores.
Mas o Lula está governando só para os banqueiros. Nem os perseguidos da ditadura militar estão sendo respeitados. Não estão pagando as compensações econômicas para os que foram torturados ou perderam o emprego por sua luta para transformar o país em uma democracia.
Em 2003, eu me acorrentei ao Palácio do Planalto, para pressionar pela liberação das minhas compensações atrasadas. Meu filho tinha sido seqüestrado e eu não tinha dinheiro para pagar o resgate. Pedi ajuda ao Gilberto Carvalho para ver garantido um direito meu, mas foi em vão.
O incrível é que só na contratação da agência do Marcos Valério, gastaram mais de R$ 1 bi. Enquanto isso, um monte de companheiros nossos está com a vida destruída. É justo isso? O governo Lula deveria homenagear quem lutou contra a Ditadura. É uma dívida do Estado brasileiro, ele tem de honrar.
Rubens Teodoro de Arruda, 66: "Nós colocamos um peão na presidência deste país. Eu, como peão, tenho orgulho de ter um companheiro nosso como presidente. Mas a gente fica triste com essas denúncias de corrupção. Ainda mais que, aqui no sindicato, sempre se dizia que não podia ter falcatrua. Eu fui diretor do sindicato durante 11 anos e nunca usei o cargo para estufar o peito. Grande merda. Quando eu fui diretor de uma empresa de transporte coletivo, tinha um diretor lá que me dizia para eu não falar mais com os peões. Mas eu faço parte da história e fico chateado quando vejo que os companheiros perderam o companheirismo, a alegria do encontro, a capacidade de fazer brincadeiras. Em 2003, eu cheguei a sugerir ao Lula que fizesse um encontro com a antiga diretoria do sindicato. Eu nunca fui pedir um cargo em Brasília, mas gostaria de colaborar com o país. Esses dias aqui, o sindicato promoveu um encontro do Lula com a diretoria eleita com ele em 1975. Estava combinada uma hora de conversa, mas o Lula chegou atrasado. Aí, deram para cada um de nós um trofeuzinho de madeira com a imagem do João Ferrador, símbolo de nossas lutas. E ficou nisso.
Jaime Vicente, o "Jaiminho", 53, casado, sete filhos: "Cheguei em São Paulo em 1970 e minha vida se transformou no sindicato. Em 1981, fui para a chapa 2, de oposição a Lula. Logo vi que ia ser barra. A chapa 2 era considerada de traidores. O MR-8 e o PC do B eram o núcleo dela. Na apuração dos votos, tivemos de sair escoltados pela polícia porque os apoiadores da chapa 1 queriam linchar a gente. Democracia? Não havia democracia. Eles usavam de todas as violências contra nós. E olha que fui fundador do PT, em 1980. Fazia forró para arrecadar fundos para o partido. Mas, quando fui para o PC do B, em 82, meu mundo caiu. De lá para cá, não arrumei mais emprego. O pessoal praticamente me expulsou do sindicato. Eu era ameaçado. Diziam que o PC do B era terrorista, atrapalhava o movimento. Em 82, saí candidato a vereador pelo PMDB. Morava na favela.
Acho que o companheiro Lula virou as costas para os trabalhadores. A assessoria dele quer que viaje para o mundo todo, para fazer as maracutaias. Se o Lula quiser dar a volta por cima, tem de chamar os velhos companheiros para conversar. Hoje, vivo da ajuda dos amigos. Tive depressão profunda porque a solidariedade acabou.
Arlindo Pereira Dias, o "Xexéu", 52: Vim para São Caetano do Sul em 1971 e entrei de sola na luta sindical. Em 1983, entrei no PT. Devido à minha luta, acabei me separando da minha família e vivo sozinho, jogado às traças, fazendo bicos de pedreiro. Faz vinte anos que não arrumo emprego fixo porque tem uma lista negra com o meu nome entre vários outros nas empresas. Estou tentando obter a compensação aos perseguidos da Ditadura, mas está difícil. Acredito muito no companheiro Lula, no Vicentinho, no Marinho. Tenho certeza de que eles são decentes. Mas tem algumas pessoas que têm o rei na barriga; são uns traíras que usam o PT. A verdade é que, depois que o PT inchou, mudou totalmente. Eles são uns carreiristas.
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