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O conto da ascensão e queda daquele homem que veio de uma modesta família austríaca para mergulhar o mundo numa guerra global e num dos períodos mais conturbados de todos os tempos está em Hitler, de Joachim Fest, a mais completa biografia do ditador nazi. Na obra, vão-se aprofundando aos poucos as origens e a formação da personalidade de Hitler. Façamos um breve delineamento da ordem das coisas para recordação: estudante com pretensões a pintor e arquiteto; combatente condecorado com a Cruz de Ferro na Grande Guerra de 1914-1918; chefe, em 1921, do Partido dos Trabalhadores Alemães Nacional-Socialista - o Partido ''nazi'' -, cuja militância ele transformou nas tropas de choque SA.'' Em 1923, Hitler tenta um putsch contra a República de Weimar, fracassa, e escreve na prisão Mein kampf (Minha luta), em que expõe sua doutrina ultranacionalista e anti-semita.
Em 1933, chega a chanceler pela via constitucional exige e obtém do parlamento plenos poderes. Com a morte do presidente da república, o marechal Hindenburg, em 1934, torna-se presidente, ditador e indisputado Führer da Alemanha. Em 1939, Hitler faz um pacto com a União Soviética de Stalin e, oito dias depois, invade a Polônia dando início à guerra européia. Em 1940, derrota a França em pouco mais de um mês de combate; em junho de 1941, trai o Pacto e invade a Rússia, sua nêmesis. Leva tudo de roldão e suas vanguardas chegam a 30 quilômetros do centro de Moscou. Detido pela portentosa resiliência russa, tenta de novo no verão de 1942, e esse é o início do fim para Hitler, com a derrota de Stalingrado. Daí em diante, vira a maré e ele passa a defender-se em todas as frentes: no sul recua ante os aliados na África, na Sicília e na Itália; no Ocidente, os aliados desembarcam na Normandia e avançam, expulsando-o da França; e no leste, a avalanche vermelha se derrama sobre a Polônia e invade a Alemanha. É a queda.
Explicar quem foi esse Hitler e como ele chegou ao poder numa sociedade altamente civilizada como a alemã é o desafio da obra de Fest, pois parece absurdo que a mistura de ''pathos, jactância e agressividade'' tenha feito o povo alemão recuar nos tempos e voltar ao paganismo da floresta sombria. E, mais, tenha conseguido daquele povo que silenciasse sobre a barbárie do extermínio, do assassinato aberto dos judeus, dos eslavos e de outras minorias raciais. Simplesmente ter Hitler como uma trovejante nuvem histórica que de repente escureceu o céu não ajuda a entender o risco que correm as sociedades organizadas quando se deixam hipnotizar por líderes carismáticos. O que ocorreu na Alemanha em 1933 e parece explicar a corrida para o nacional-socialismo tem muito a ver com a exploração do caos econômico e da humilhação a que o povo alemão foi submetido pelo Tratado de Versalhes de 1919. Não bastasse isso, a crise mundial de 1929, acabou por transformar a Alemanha numa ''sociedade de pessoas amarguradas'' à espera tão-somente de um líder, de alguém que lhes desse o sinal.
Na verdade, Hitler chegou ao topo numa nação espiritualmente em frangalhos, mais que nunca ansiosa pelo retorno das tradicionais ''pontualidades germânicas'' - desbaratadas em 14 insuportáveis e longos anos de impotência e frustração desde o levante comunista de 1918. Poucos, porém, fora de seu círculo mais íntimo, tinham uma noção do grau de despotismo, de violência e de privação dos direitos civis que o Führer e a ''nova ordem'' trariam consigo. Entre 1933 e 1938, o programa de recuperação econômica da Alemanha, o controle da inflação e a restauração do orgulho e da soberania nacional fizeram explodir a popularidade de Hitler. Até mesmo Churchill afirmou que se Hitler tivesse morrido em 1938 seria considerado um dos maiores estadistas europeus. Mas Hitler não morreu em 1938. No começo, pareceu a todos o ''homem que tirou a Alemanha do poço''.
É deste período inicial a insistência no conceito de pan-germanismo -''Um povo, um estado, um chefe'' e a exacerbação do secular nacionalismo teutônico - ''Alemanha acima de tudo'' . A tarefa mais urgente da política alemã, entretanto, era soltar o país das amarras do Tratado de Versalhes. Foi a oportunidade de Hitler de convencer as classes dominantes, ainda a se lamentarem da fracassada ambição de transformar a Alemanha numa grande potência naval e colonial. Apesar do receio sobre seus métodos de tudo-ou-nada e de sua personalidade de aventureiro, parecia à elite alemã ser ele o líder para realizar suas intenções revisionistas. O que seus partidários e cúmplices não levaram em consideração foi a determinação de Hitler de tomar ao pé da letra suas visões - um misto de fantasias e frio calculismo. No poder, Hitler fez exatamente o que prometera ou ameaçara em seu livro e em seus discursos de campanha.
Hitler sempre teve um enorme desdém pelos processos democráticos de condução do estado. Simplesmente tratou de aniquilar qualquer oposição ao regime e se julgava, não só o herdeiro de Frederico, o Grande, e de Bismarck, mas também o continuador da história alemã: ''O futuro nos pertence,'' proclamava. Ao fim e ao cabo, seu III Reich, que ele pretendia ''de mil anos,'' terminou numa terrível tempestade, exibindo em dose ainda maior as mesmas contradições, a desilusão e o drama subjacentes na chegada ao poder em 1933. Seu desaparecimento guarda, um sentido de libertação da humanidade. É esta a característica que dá à obra de Fest uma qualidade teatral única, ao dissecar, corte por corte e expor nervo a nervo, a trajetória da vida de Hitler, analisando com senso crítico os motivos e razões que o levaram a ter um poder de vida e morte sobre o destino de milhões de seres.
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