A última do Apedeuta |
Por Reinaldo Azevedo |
Lula realmente acredita, ou finge acreditar, que seus pais analfabetos, que não sabiam "fazer o 'o' com o copo", acabaram por lhe transmitir uma carga genética que o torna especialmente afeito à ética. Esta foi a mística que inventaram para ele, alimentada, é bom que se diga, por uma parcela imensa da crônica política, a maior parte dela, agora, migrando para o campo crítico, como se dissesse, ela sim, "esqueça o que eu escrevi". Já disse que estou reunindo farto material sobre a ascensão de Lula e como ele chegou ao poder. Quero reconstituir o zeitgeist, o espírito do tempo, ao longo de 2001 e 2002, que guindou o Apedeuta à condição de Demiurgo. Não é apenas Lula que faz a apologia da ignorância. Ele, ao menos, o faz em proveito próprio. Também os que lhe incensaram biografia e trajetória o fizeram. E nem era em proveito próprio, mas a serviço de um exotismo teórico: por ter origem popular, ele estaria especialmente talhado para fazer um governo eficiente e decente. A memória do país se esvai na voragem do cotidiano. Recuperá-la é uma tarefa obrigatória. Eis aí. Agora vemos Lula como uma ilha, vermelho de indignação, movido por uma ira bronca e desinformada, arrancado dos alfarrábios de sua biografia mistificada o pai e a mãe analfabetos para tentar justificar a lambança em que está imerso o seu governo. Lula é culpado? Quando menos, é culpado de ser o PT como é. Ele próprio jamais se preocupou em saber de onde vinha o dinheiro que lhe garantia a vida de burguês folgazão do capital alheio. Sim, do capital alheio. Porque "os patrão" que ele satanizava em cima dos caminhõezinhos de som da CUT, estes sempre trabalharam, ocupados em ganhar mercado, vender seus produtos ou serviços, pagar salários, arcar com o pagamento de impostos, mover-se no cipoal da legislação. Tudo aquilo que o queixo mole e o verbo roto de Lula, ornados por sua barbicha demodé, ora prateada pelo tempo, mas ainda sem conferir juízo, ignorava existir. O Apedeuta era, a um só tempo, o símbolo e o mestre-de-cerimônias de uma farsa acalentada pelas classes médias conscientes e pelos defensores putativos do povo. Ah, se vocês forem reler a crônica política dos anos FHC como tenho feito!!! Eu me arriscaria a dizer que 90% das análises se refestelavam na desqualificação de FHC porque um intelectual, porque vaidoso, porque supostamente mais preocupado com Paris do que com o Jardim Ângela, porque excessivamente cordato etc. etc. etc. O jornalismo político, como quase sempre, se abstinha de falar de economia (por pura ignorância) — a não ser aqueles epodos em favor da justiça social. Ai, ai, afinal, quem teria a coragem de defender a injustiça social, não é mesmo? Não se davam conta — se darão agora, ainda que retroativamente? — de que depredavam a teoria política em favor do puro e simples empirismo. Era uma campanha constante, subliminar e sub-reptícia, em favor de Lula na Presidência da República. Foi um momento fantástico na história política do país em que um partido que se queria operário e caudatário do "socialismo científico" (Deus meu! Como é que coisas assim puderam virar letra impressa?) formou uma liderança que parecia destinada a chegar à Presidência por uma espécie de direito divino. Inventamos o socialismo místico. O símbolo do PT deveria ser uma galinha preta com farofa na encruzilhada. O PT é o ebó da burritsia de uma parte da intelligentsia uspiana. E não só. Na Universidade de Brasília, Lula, recém-eleito ou em vias de, não lembro bem, foi aplaudido de pé por professores e alunos quando lembrou que não era universitário. Faz sentido. Boa parte da academia aplaude mesmo porque se sabe inútil. A maioria talvez o invejasse e lastimasse o fato de se ter dedicado ao estudo. Deveria ter feito como Lula: subir no caminhãozinho e largar a língua em quem trabalha, que nisso ele sempre foi muito bom. E bom também para dizer platitudes, que ganhavam a força de fina filosofia na boca de intérpretes e acólitos. Lula, afinal, é o único folgazão do "otium cum dignitate". A diferença é que não produz uma linha. Só adiposidade retórica, além da real. Vamos tomar muito cuidado nesta hora. Lancei no mês passado a tese de que Lula deveria anunciar que não é candidato, buscar uma concertação política em favor de um mandato único de cinco anos para seu sucessor, com proposta de parlamentarismo a partir de 2012. Saíram gritando por aí que era golpismo. Alguns daqueles que ajudaram Lula a chegar ao poder, aqueles dos quais falo lá nos parágrafos iniciais, resolveram atribuir à idéia ao PSDB, esse partido que teria medo do povo, dizem eles. Então tá bom. Agora, parece, a coisa toda já perdeu sentido mesmo. Vamos seguir na marcha em que estamos, com o Planalto começando a ver os primeiros sinais de uma pesada nuvem negra (aquelas que anunciam tempestades), com Lula preso em seu labirinto, começando a reproduzir aquela glossolalia à moda Collor de quem vai se alienando. Nada do que propus era alheio à Constituição, muito ao contrário. Alguns malucos por aí falam em antecipar eleições. Aí, sim, já se trata de investir na bagunça, em vez de investir na ordem. O país tem um vice-presidente da República no pleno gozo de suas faculdades mentais, ainda que muitos possamos não gostar do que diz. Uma coisa é fazer uso inteligente das instituições que temos; outra é procurar usá-las ad hoc. O tempo de Lula já passou. E notem bem: já passou ainda que atravesse o furacão e venha a ser reeleito. A esperança que sustentava a chegada do PT ao poder (a de muitos, não a minha, que nunca acreditei na farsa, como sabem os leitores) era a de que tivesse mais sensibilidade para a área social e fosse dar mais atenção à área produtiva. Em vez disso, constituiu-se num grupo para assaltar o Estado e para criar um governo das sombras, cujo intuito era apenas consolidar o poder do próprio aparelho, substituindo as causas da República pelas do partido. Com o agravante, é claro, de que, livres de quaisquer amarras institucionais e morais, absolvidos de antemão pelos nobres objetivos de construir a República dos companheiros, seus promotores se aproveitaram para amealhar bens pessoais, como a Land Rover do agora ex-petista Silvio Pereira. Invejo esse moço: tenho muitos amigos mais pobres do que eu. Mas tenho alguns muito, mas muito mais ricos. E ninguém me dá uma Land Rover de presente! Os meus amigos ricos costumam me dar livros, os sovinas! Já sei: esperam que eu lhes dê em troca algumas mal traçadas. É isso: descobri que eles corrompem os meus advérbios e as minhas orações subordinadas. Não, Lula! O pai e a mãe analfabetos de Vossa Excelência — e os de ninguém — não o fazem especialmente ético. Dizer que a ética não depende do grau de instrução dos progenitores não quer dizer que ela será inversamente proporcional à escolaridade de ambos. Ou o analfabetismo seria a solução para se ter um país, finalmente, ético. Nem Pol Pot chegou tão longe. O que quer que Vossa Excelência tenha feito ou tenha permitido que se fizesse não guarda relação necessária com seus ascendentes. Eu diria até que, para o bem e para o mal, a Excelência é mesmo um autodidata. Autodidata até demais... Texto publicado em 22 de julho de 2005 |
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Sunday, July 24, 2005
A última do Apedeuta
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