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Wednesday, July 06, 2005

Procurador recebe R$ 902 mil de Valério

PRIMEIRA LEITURA
Com base em dados do Coaf, a Folha de S.Paulo informa que o publicitário pagou essa quantia a Glênio Guedes em 2003, que por sua vez mandou arquivar processo contra o Banco Rural na semana passada

O procurador da Fazenda Nacional, Glênio Guedes, que foi afastado do cargo na semana passada por ter passagens e hospedagens pagas por Marcos Valério, recebeu mais do publicitário: R$ 902 mil, segundo reportagem publicada na edição desta quinta no jornal Folha de S.Paulo.

De acordo com o jornal, o pagamento consta de levantamento do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que foi encaminhado à Procuradoria-Geral da República e à CPI dos Correios. Foram feitas duas transferências, segundo o Coaf, registradas em relatório do Bank Boston em 2003. A primeira de R$ 782 mil, e a segunda, de R$ 120 mil.

Valério é o amigo do tesoureiro do PT, Delúbio Soares, acusado de operar o mensalão, e, como avalista de empréstimo ao partido, honrou parte de uma dívida milionária. E Glênio era o procurador que fazia os pareceres sobre recursos administrativos apresentados por instituições financeiras multadas pela Comissão de Valores Imobiliários, pelo Banco Central e pela Secretaria de Comércio Exterior.

Primeiro detalhe relevante: Glênio analisava processos contra o Banco Rural para dar seu parecer a respeito e mandou arquivar um deles, na quarta-feira da semana passada, que havia sido movido pelo Banco Central. Segundo detalhe relevante: de acordo com o deputado Roberto Jefferson, o mesmo Banco Rural era uma das instituições que movimentavam o dinheiro do mensalão.

O procurador foi afastado na sexta-feira passada. Ocupava o posto desde 1998. Seu nome aparece na agenda da ex-secretária de Valério Fernanda Karina Somaggio como contato freqüente do publicitário. Na agenda, há referências sobre compras de passagens aéreas e pagamento de diárias de hotéis de luxo ao procurador entre maio e dezembro de 2003.

Foi aberta sindicância para apurar as denúncias no prazo de 60 dias. Segundo o jornal O Globo, Glênio, que mora no Rio, também teria a conta de seu telefone celular custeada pela SMP&B, a agência do publicitário.

Durante depoimento na CPI, nesta quarta, Valério chegou a ser indagado se havia feito pagamentos ao funcionário e negou. A Folha informa que procurou Glênio, mas foi informada pelo porteiro do prédio que ele havia vendido o apartamento, num condomínio de luxo na Barra da Tijuca, no Rio, há cerca de um mês.

E se Valério for só um laranja?
Há uma incompatibilidade total entre o publicitário e os fatos. Por isso ele foi tão longe no PT: afinal, por lá, quem não fantasia recorre ao delírio

Por Reinaldo Azevedo

Pelo menos uma mentira inquestionável o sr. Marcos Valério contou à CPI. O primeiro que o indagou sobre o pagamento feito a Glênio Guedes foi o deputado Eduardo Paes, já no fim da sessão. A pergunta foi repetida pelo deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR). O dito publicitário negou. Quantas outras negativas ditas às autoridades da Comissão Parlamentar de Inquérito são também mentirosas? Noto que, enquanto ele mentia, a Folha já estava em algumas bancas da cidade de São Paulo. Vale dizer: há uma incompatibilidade total entre Valério e os fatos. Por isso ele foi tão longe no PT: afinal, por lá, quem não fantasia recorre ao delírio.

Interessante este Marcos Valério. O seu desempenho mereceria uma análise entre psicanalítica e semiótica. É cheio de humildade no uso dos vocativos — "senhor deputado" pra cá, "senhor senador" pra lá, mas um esgar de desprezo de quem sabe muito mais do que fala trai essa subserviência estudada. Como os homens de negócio dos filmes de Scorsese, ele nos diz todo o tempo: "Perguntem ao meu contador". Nem mesmo se lembra de detalhes de um suposto aval concedido a um empréstimo de R$ 2,4 milhões. Como disse o deputado Roberto Jefferson, fala de dinheiro como se falasse de maná, sendo ele, no caso, o próprio Deus. Uma beleza!

Chamo a atenção dos leitores e dos parlamentares da CPI para um fato interessante. Por que o PT precisaria emprestar tanto dinheiro, fora da campanha eleitoral, nadando, como nadava, em recursos? Montada a rede que montou, com seus operadores prontos, segundo os hábitos, a fazer bons negócios com empresas privadas a partir dos postos conseguidos em estatais e órgãos públicos, talvez pudesse resolver seus problemas de outra maneira.

Não estou acusando, mas só alertando. Não haveria a possibilidade de que tal dinheiro emprestado nem mesmo tenha existido e de que seja só um meio de, como se diz, "lavar" um dinheiro que precisava ser "internado" e que buscava uma origem legal. Em suma: talvez Valério, embora muito rico, não seja mesmo PC, que era um chefão. Talvez ele seja só um "laranja". Mas de quem?

Ah, esta nossa detestável "cordialidade", que nos inviabiliza
Lula sabia? Foi pessoalmente beneficiado? No curto prazo, isso é fundamental e vai definir se ele termina ou não o mandato. No longo prazo, são perguntas erradas, que só nos condenam a ser esta lástima que ainda somos

Por Reinaldo Azevedo

Reproduções
OS LIVROS: Raízes do Brasil e Os Donos do Poder. Eis duas súmulas das nossas inviabilidades
Vocês repararam que estamos todos, jornalistas, leitores e cidadãos comuns, vivendo um pouco à espera do Godot desta história? E quem é ele ou o quê? Uma prova material de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sabia do esquema de que Marcos Valério é acusado de operar ou, sei lá, um depósito do publicitário ou de uma de suas empresas na conta de alguém próximo de Lula ou de sua família. Só aí, então, estaríamos culturalmente preparados para concluir: "Ah, então ele sabia!" Caros leitores, essas linhas acima resumem o espírito da tragédia da institucionalidade brasileira.

Muita bobagem se diz por aí sobre a "cordialidade" do povo brasileiro, atribuindo-se uma penca de tolices ao livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Confunde-se a dita-cuja com um comportamento nosso que seria tendente ao amorável, à doçura até. É claro que não se trata disso. No livro, o autor trata, com tintas críticas, da importância que as relações familiares têm na formação do Brasil em detrimento da esfera pública, de tal maneira que aquelas deitam sua sombra sobre esta. E o corolário é óbvio: não se faz uma República decente assim.

O livro deve ser apreciado em conjunto com um estudo mais alentado, de leitura mais pedregosa, que é Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, que volta às origens lusitanas da formação do patronato brasileiro e do fenômeno sociológico chamado "patrimonialismo". É um estudo de caráter mais histórico, documental, perfeitamente compatível com a leitura sociológica de Sérgio Buarque. Faço certas restrições a ambos, admito, porque me parecem um pouco deterministas, como se estivéssemos impedidos, em muitos aspectos, de mudar algo que está em nosso destino.

Já devo, aqui e ali, ter criticado, por razões que continuo a considerar justas e apreciáveis, ambos os livros. Mas, convenha-se, diante dessas dúvidas quase hamletianas de boa parte até do jornalismo sobre se Lula "sabia ou não sabia", é preciso recuperar os aspectos virtuosos daquelas duas obras. Há algo na cultura brasileira que, com efeito, nos faz um bando de bocós: 1) Lula assume a Presidência da República; 2) um verdadeiro Estado paralelo se constitui em sua gestão; 3) o homem a quem ele declarou ter dado um cheque em branco demole o seu governo com denúncias; 4) todos os acusados vão caindo como moscas; 4) o ex-ministro ao qual se atribui a coordenação do esquema diz que só agia com o conhecimento do presidente; 5) e nós estamos preocupados em saber se existe alguma prova que implique Lula pessoalmente!

Pessoalmente? Afinal de contas, o Lula que nos interessa é qual? Não seria aquele que exerce a Presidência da República e que sempre foi um verdadeiro czar no PT? Não é justamente este Lula que deixou de tomar providências sobre as acusações do mensalão? E deixou por pelo menos duas vezes: 1) quando foi advertido do fato pelo governador de Goiás, Marconi Perillo (o que o Planalto não desmente); 2) quando foi avisado por Roberto Jefferson (o que o Planalto admite). E só a questão pessoal do sr. Luiz Inácio Lula da Silva parece fazer diferença.

Vejam o caso de Marcos Valério. Com a cara mais limpa do mundo, ele diz que foi avalista, como pessoa física, de um "empréstimo" do BMG ao PT. E o teria feito por "amizade". Na hora, no entanto, de pagar os supostos juros, aqueles quase R$ 350 mil, aí, quem pagou já foi a empresa. Mais ainda: ele é dono (ou casado com a dona em um dos casos) de agências de publicidade que mantêm contratos milionários com empresas estatais e órgãos do governo. Projetados no tempo, eles somam R$ 400 milhões.

Supõe-se que as agências façam, afinal, trabalho publicitário para tais entes, sendo escolhidas por meio de licitação pública. Logo, pergunta-se: o que tanto este senhor se reunia, e admite que o fazia, com um tesoureiro de partido e com uma lista imensa de deputados? Ah, eram só relações pessoais! Enquanto escrevo este texto, a TV está ligada e vejo e ouço os parlamentares a fazer perguntas para Marcos Valério: os petistas, como sempre, a fazer diversionismo; os da oposição a correr desesperados atrás de alguma contradição ou indício de prova. É um espetáculo: ainda vai acabar parecendo normal que este senhor se encontrasse, quase todos os dias, com parlamentares, dirigentes partidários, diretores de estatais, ministros de Estado. Santo Deus! Por si mesmo, isso é um escândalo. Sobre o que eles falavam? O que faziam juntos? Tomavam Chicabom?

Relações normais? Não mesmo! Devemos a Roberto Jefferson a revelação de um tão notável protagonista — quando menos, um empresário que mereceria ser premiado por sua notável capacidade de fazer amigos, influenciar pessoas e fazer crescer as suas empresas. Nota-se até um certo clima de desânimo na CPI. Protegido pelo STF, Valério não precisa dizer nada que o incrimine, e ele, claro, dribla sempre que pode a questão que interessa: a fantástica movimentação em dinheiro vivo, com o qual diz pagar fornecedores (?). Quais? Ah, isso é segredo. No mais, é como se nos dissesse: "Não há crime nenhum em conversar com as pessoas. São todas minhas amigas".

Poucos acreditam, mas ele certamente sabe que surfa naquilo que acaba sendo um dado da nossa cultura: a institucionalidade precária, aquela mesma que protege o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que nos faz esperar ou temer que algo atinja, vamos dizer assim, a sua cozinha. Em bem poucos países do mundo, à exceção das ditaduras talvez, Lula já não estaria por um fio, quem sabe fora do governo. E a acusação principal seria, obviamente, prevaricação — que é, entendam bem, mais grave para uma República do que um hipotético depósito suspeito em sua conta pessoal ou de algum familiar.

Helmut Kohl, em vez de prosopopéias de quinta categoria, unificou as duas Alemanhas, uma obra monumental, e teve a carreira política liquidada por causa de uma acusação de financiamento irregular de seu partido, a CDU. Marcos Valério riria dos amadores alemães. Sabem o valor do dinheiro suspeito que Kohl teria movimentado? Entre US$ 500 mil e US$ 1 milhão. O sr. Valério, em menos de dois anos, em dinheiro vivo, movimentou, R$ 20,9 milhões — ou mais de 8,7 milhões pelo dólar de hoje. Estima-se que suas empresas tenham movimentado, sem origem declarada, perto de R$ 500 milhões em seis anos, ou mais de US$ 208 milhões. E nós precisamos, claro!, de provas, não é mesmo? Para tocar em Lula, então, precisamos de algo que o pegue pessoalmente.

No caso alemão, antes mesmo que se chegasse ao fundo da investigação e à prova inconteste, Kohl já era um cadáver político. Porque os alemães olharam para a sua institucionalidade e disseram: "Isso não pode; é inaceitável, mesmo para um herói nacional". Afinal, eram as suas qualidades que o tinham feito aquele herói, não os seus defeitos. Nós, por aqui, em nome e por conta das supostas qualidades de Lula — e, de novo, pessoais, não políticas —, lhe atribuímos o direito de permitir que uma república das sombras se instalasse. PC Farias tinha fantasmas. Lula tem um verdadeiro governo fantasma, que manipula os cordões do Estado. Mais: quando menos, ele deixou de tomar as providências que funcionalmente lhe cabia tomar. E o que se tem em relação a ele é um espírito de tolerância.

Acreditem: pessoas informadas, algumas com vasta experiência profissional, boa formação intelectual, me perguntam: "Mas você acha que Lula sabia?".A minha resposta tem sido — de forma resumida, claro — a que segue neste texto. Sintetizo assim: "A pergunta está errada, e a resposta seria inútil". Uma boa pergunta: "Lula tinha a obrigação de saber?". A boa resposta: "Tinha porque dispõe dos instrumentos para tanto". Outra: "Criou um partido e um governo afeitos a procedimentos heterodoxos?". A resposta óbvia: "Sim!". Eu até preferiria que nada respingasse em Lula pessoalmente. O que ele fez e o que ele não fez, na Alemanha, já teriam constituído matéria suficiente para botá-lo para correr.

Volto aos livros. Não estou, claro, convencido de que as nossas origens portuguesas nos empurrem a isso. Sabem por quê? Porque, no sentido em que falamos aqui, os portugueses é que já não são "portugueses", entendem? Há uma construção puramente nativa que nos empurra para esta tolerância idiota com os poderosos. Parece-me mais um traço, aí, sim, herdado de uma sociedade que tardou a abolir a escravidão. É o complexo de nhonhô. No caso de Lula, ele se fundiu com os delírios da esquerda, embalados pelos setores politicamente corretos da mídia, que nunca se interessaram em saber com que meios ele construía o seu partido.

Então chegamos a isso que aí está. Sei que é o processo político que vai definir até onde vamos ser, como país, tolerantes com Lula. Eu preferiria, claro, um modelo que concorresse um pouco mais para a educação do público, de sorte a despersonalizar o poder do Estado, chamando mais atenção para a norma do que para os homens. O Parlamentarismo, é óbvio, é um modelo superior neste processo de educação política. O que quero dizer é que pagamos, caro ou barato, por escolhas que são nossas, das lideranças que estão aí, vivas, atuantes, que devem ser chamadas à sua responsabilidade. Se a nossa história realmente tem efeito tão negativo sobre nosso caráter, vamos tentar mudar o que ela fez conosco.

Lula sabia? Foi pessoalmente beneficiado? No curto prazo, isso é fundamental e vai definir se ele termina ou não o mandato. No longo prazo, são perguntas erradas, que só nos condenam a ser esta lástima que ainda somos. Ele tinha a obrigação de saber. É o que o define como presidente da República. As outras duas só o definem como homem, como caráter. Espero que seja aprovado neste critério. No outro, ele já dançou.

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