De hienas, golpistas e boas intenções | ||
O que é que constitui o partido? Uma essência que precede a sua existência ou uma existência que, na prática, vai compondo a sua essência? | ||
Por Reinaldo Azevedo
Elio Gaspari, este já provoca o pensamento. Especialmente quando está errado. O erro de uma pessoa inteligente é sempre mais relevante do que o de uma estúpida. Acusa em sua coluna, também na Folha desta quarta, de golpista a sugestão de que Lula anuncie que não é candidato. E atribui a idéia ao PSDB. Não é do PSDB. É minha. Um leitor reclama que fico alardeando isso como galinha cantando os ovos. É que é preciso não deixar prosperar um erro. E golpista não é, a menos que até petistas com miolos, alguns em on, como Cristovam Buarque, outros em off, como não se pode citar, queiram o golpe contra Lula. Mas não bastam as circunstâncias. Há também a questão de fundo, política. Quando sugeri a saída, e era para ser saída (mas também não gastaria uma gota de suor por ela), pensei num Lula mais livre para governar, sem o peso de ter de articular a reeleição, dado que o Planalto é hoje uma ilha, cercado de investigações por todos os lados. E nem pensei nas pesquisas de opinião quando fiz a sugestão. Gaspari, eu e todos os jornalistas de política "deste país" certamente sabíamos de pesquisas qualitativas (algumas quantitativas também) que indicavam que Lula estava bem no filme, o que foi confirmado pelo levantamento CNT-Sensus. Quem estava e está mal é o Congresso como um todo. E assim se faz o risco essencial. Será que sugeri a saída porque achava que Lula pudesse não ser reeleito? Não! Sugeri justamente porque acho que, tudo o mais constante, sem que a sujeira o colha em cheio, pode ganhar o segundo mandato. E tende a ganhá-lo com pouquíssimo mais do que a metade dos votos, com um PT certamente quebrado, tendo de conquistar uma maioria com instrumentos ainda mais precários do que os de hoje. Crise na certa. Ah, então não gosto de democracia? Não fiz como Lacerda — que ele próprio lembra em seu texto. Se eleito, que tome posse e governe até o fim se não afrontar a legalidade. Mas não há bolo bom com receita e ingredientes ruins. E imperícia do confeiteiro. Assim são as coisas. Golpista seria sugerir que lhe tomássemos o mandato caso eleito. Ademais, Gaspari é injusto com a bonomia de uma boa parte do PSDB, que se esmerou em dizer que Lula não tem nada a ver com o seu governo. E, pelo visto, o fez de forma extremamente convincente. Não bastasse isso, enquanto ele escrevia a coluna, suponho, José Serra e a Executiva do PSDB descartavam qualquer iniciativa do partido para mudar as regras do jogo. Também na minha proposta original, a iniciativa cabia ao presidente. Ademais, relembro o que já escrevi: filogolpista é lotar um aparelho público, como é o Palácio do Planalto, com algumas centenas de sindicalistas chapa-branca, que anunciam não aceitar — isto mesmo: não aceitam — qualquer resultado das investigações desfavorável a Lula e cantam slogans em favor da reeleição. Pronto. E agora migro para o artigo que suscita uma questão de mais fôlego. Está na página 2 de O Estado de S. Paulo e é assinado por Luiz Weis, a quem igualmente não faltam os dons da inteligência, estimulando, pois, também ele, o pensamento. Quer Weis que o definhamento do PT não seria interessante porque "a sua vaga será disputada pelos sem-compromisso com a democracia e pelos aventureiros do nacional-populismo". E conclui: "Antes o PT". Então quero aqui dialogar com Weis. Não quero ficar aqui arbitrando sobre as intenções do autor ou as vizinhanças de seu pensamento. Noto que há similaridade entre o seu argumento e o de Tarso Genro, novo presidente do PT, segundo quem a "desconstituição" do petismo traria consigo o risco da "colombização" do país. O que me parece é que, para um articulista como Weis, que não é um teórico da esquerda, o partido cumpriria um papel que eu ousaria chamar de saudavelmente conservador. E uso a palavra "saudavelmente" porque não se trataria, entendo, de, necessariamente, manter inalterado o statu quo num país de tantas injustiças, mas de preservar da especulação política e da irracionalidade as instituições. Sendo Tarso quem é, no seu caso, há, voluntariamente ou não, uma ameaça velada, quando menos um catastrofismo futuro vendido a valor presente. E a moeda de troca, parece, é uma certa complacência da sociedade com o PT. No caso de Tarso, impõe-se desde já que se pergunte quais seriam os promotores da "colombização" e, mais ainda, qual seria o seu conteúdo. Acompanhem comigo: quase metade da Colômbia está sob o controle da narcoguerrilha. É banditismo recoberto por glacê ideológico. Estaria Tarso dizendo que, com efeito, o petismo e o banditismo fazem fronteira, de sorte que se pode passar de um lado para outro, assim como são vizinhos na geografia o Brasil e a Colômbia? Em que momento um petista "desconstituído", sr. Tarso, se tornaria um "colombizante" constituído? Weis, por sua vez, me parece vítima de várias ilusões, ainda que por bons motivos. A primeira condição inequívoca para sua tese fazer sentido é que o PT seja o único partido ou ente da sociedade civil a encaminhar reivindicações de caráter social, fazendo-o com responsabilidade, sem sotaque populista. Nada disso me parece verdade. Não é o único, nem sempre é responsável e tem um corte freqüentemente populista, sim. Muitas vezes, o PT não é canal da reivindicação, mas se torna a própria reivindicação: uma caso clássico de meio que se torna a própria mensagem. Vejam o aparelhamento dos órgãos públicos pelos sindicatos. O partido não está em busca de reivindicar benefícios para os, vá lá, trabalhadores, mas de garantir a força de sua máquina. Isso depõe contra as instituições e da democracia, e não a favor delas. O articulista, que costuma pensar bem, erra feio neste caso. Alimenta a ilusão de que o partido possa ser convertido num agente em favor da construção democrática. Será? Vejam Tarso Genro em Paris. Está lá como ministro da Educação? Mas ele concedeu entrevista nesta quarta como presidente do PT. Santo Deus! Quem está lá representado é o Estado brasileiro, Weis. Até numa questão aparentemente sem importância, rituais mínimos da independência entre Estado e partido não são observados. Mas esse não é o principal problema do argumento. Existe um PT que precede o próprio PT? O que é que constitui o partido? Uma essência que precede a sua existência ou uma existência que, na prática, vai compondo a sua essência? Estaria o nosso brilhante Weis, ao tentar exercitar o conservadorismo virtuoso, se tornando um místico político? Conheço e conhecem todos o partido por sua obra. Weis me parece cair vítima daquela trama mental em que caíam os defensores do socialismo, ainda que se mostrassem críticos do modelo soviético. Diziam: "O verdadeiro socialismo não é este". Bem, então qual era o verdadeiro além daquele que existia e que fazia suas vítimas? Em termos estritamente conceituais, pergunta-se: o que é que, ao ser estritamente aquilo que é, revela as virtudes daquilo que não consegue ser? Podia-se dizer do socialismo o que se podia e se pode dizer do capitalismo, vale dizer: há capitalismo em regime democrático e capitalismo em regime ditatorial. Houve algum socialismo sem ditadura? Mais ainda: seria possível haver um sem ela? Uma fraude intelectual e moral queria, e alguns querem ainda, imputar culpas idênticas aos dois modelos de sociedade, como se ambos, ao comportarem crimes específicos, se igualassem no fundamento moral. E a fraude estava no fato de que um poderia existir sem eles; o outro, não. Existirá, Weis um petismo sem o encabrestamento do movimento sindical e da sociedade civil e o aparelhamento de Estado? Se existe, meu caro, trata-se, à moda daquele socialismo dos bons moços, do petismo ideal, não do petismo real. Mas só há um, ainda que Tarso e, vá lá, Valter Pomar, não se entendam. Se estão juntos, é porque têm adversários comuns. Quais são eles? Penso, obviamente, de forma muito diferente. Tenha o PT o nome que tiver, ainda que seus remanescentes permaneçam agarrados à sigla, o que me parece é que, como projeto e como obra realizada, há uma construção política e ideológica que convive mal com a democracia representativa, com a independência dos Poderes e com o Estado de Direito. Não vejo por que precisamos disso, não. Na minha formulação, Weis, o PT não é seguro contra risco nenhum. Ele, constituído como está, é o próprio risco. |
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Wednesday, July 13, 2005
De hienas, golpistas e boas intenções
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