Luciano Martins Costa (*)
Vou ousar aqui repetir um destempero que me atrevi a publicar no jornal O Estado de S.Paulo, em 1992, alguns meses antes de começarem os caras-pintadas a exigir nas ruas a saída do então presidente Fernando Collor de Mello: o governo acabou.
Pode parecer aos mais sensíveis – ou aos mais sensatos – que o observador ensandeceu, ou que simplesmente espera chocar os leitores para lhes extrair comentários, o que sempre envaidece os articulistas. Mas faço a afirmação, convencido pela mesma razão que me fez acreditar, há 13 anos, que o governo Collor estava chegando ao fim: eu havia testemunhado – e registrado, na "Coluna do Estadão", de que fora titular, e em artigos na página 2 – a movimentação lenta mas inexorável das grandes forças econômicas do país para fora do círculo de apoio ao então presidente Collor.
A reação extremada da Fiesp após a detenção dos empresários Eliana Maria Piva de Albuquerque Tranchesi e Antonio Carlos Piva de Albuquerque – desproporcional, sob todos os aspectos, à relevância do fato – é a linha d´água sutil, mas muito significativa, que define o afastamento do poderoso capital paulista do governo, até então tolerado, sob a chefia do ex-metalúrgico do ABC.
Não que o partido do presidente não tenha dado contribuição suficiente para o desfecho que o observador percebe no horizonte. Ninguém, em sã consciência, descartaria o efeito devastador das revelações sobre falcatruas cometidas pelos petistas, sobre as chances de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva levar seu mandato até o fim, ou de, remotamente, se reeleger em 2006. Mas não é apenas e principalmente o escândalo das verbas clandestinas que motiva as forças econômicas – e, por extensão, a grande imprensa – a determinar que Lula deva deixar o poder antecipadamente ou se contentar em completar o atual mandato.
O que pode estar definindo o fim do namoro do patrão com o operário é que, depois de haver conseguido equilibrar um programa econômico que interrompeu a espiral das crises e recolocou o Brasil com destaque no mapa dos negócios mundiais, o governo Lula resolveu levar a sério esse negócio de responsabilidade fiscal. Primeiro, a Polícia Federal prende o dono de um dos mais vistosos escritórios de advocacia tributária do país, colocando sob a mira da Justiça uma seleta lista de empresas de boa reputação. Depois, os policiais levam sob custódia os donos da butique de luxo que faz vibrar o coração provinciano do povo remediado para cima. Em seguida, consolida o projeto da Super Receita, que está destinada a funcionar como o FBI do fisco.
Caldeirões do inferno
Quem, por dever de ofício, é obrigado a ler os relatórios de bancos de investimento e as análises sobre a economia brasileira distribuídas no mercado, não pode ignorar que, de quatro semanas para esta data, os especialistas têm indicado que os fundamentos econômicos e a segurança dos investidores estariam sob risco bastante relativo, em caso de afastamento do presidente da República. Bastaria, para tranqüilizar o mercado, que se consolidasse a possibilidade de um sucessor confiável, capaz de manter a política econômica no mesmo rumo – e deixasse o resto mais ou menos como está, diria um analista mais malicioso.
Se não há perigo para os investimentos, quem precisa tolerar por mais um mandato um governo que a qualquer momento pode resolver fazer reformas indigestas, ainda mais se pesa sobre ele a suspeita de ter se favorecido de dinheiro do caixa 2 de empresas? Se sobreviver ao escândalo, quem garante que, num eventual segundo mandato, Lula não cairia na tentação de reconstruir uma base de apoio menos confiável do que os partidos de aluguel que agora o arrastam para o mar de lama?
Pois bem. O sucessor que está sendo preparado chama-se Ciro Gomes. Discretamente, a oposição conduz o ministro para fora do escândalo, apesar de o deputado Roberto Jefferson, autor das denúncias que destamparam os caldeirões do inferno petista, já tê-lo envolvido em irregularidades no projeto de transposição das águas do rio São Francisco.
Ciro já foi o querido da mídia, em certa altura das eleições de 2002. Tem carisma, pode herdar alguma popularidade do governo Lula e fica bem na TV. Com a economia segura, ele é o nome que tranqüiliza o mercado, dizem alguns analistas.
Processo de desmanche
A pauta que a grande imprensa já comprou diz que o presidente Lula pode não ser cúmplice das falcatruas que vicejaram sob suas barbas, mas – por isso mesmo, e por outras razões – não tem o perfil necessário para ser presidente da República. Se chegou ao cargo, foi um acidente histórico, possibilitado por manobras marqueteiras financiadas com dinheiro sujo. Se seu governo é até aqui bem-sucedido em termos gerais, o mérito não seria dele, mas de sua equipe econômica. Dar-lhe um segundo mandato seria, por essa lógica, premiar a incompetência ou a desonestidade.
Há uma versão mais radical da mesma pauta, patrocinada por aquela parte do empresariado e da política que não quer ver em operação uma força policial treinada para reprimir o crime econômico. Essa versão mais radical, operacionalizada – para usar o jargão de seus patrocinadores – pela turma do gatilho, traz um interesse adicional: a indústria de armas e seus defensores gostariam de levar a crise a um impasse institucional que lhes desse a oportunidade de reverter o referendo sobre o desarmamento civil.
Um texto muito bem elaborado começou a circular nesta semana, sob a forma de abaixo-assinado, alcançando inicialmente endereços eletrônicos de brasileiros com residência em Londres, Boston e Nova York, espalhando-se rapidamente pela internet. Defende explicitamente o impeachment imediato do presidente da República, alinhando fatos reais, denúncias, boatos, interpretações livres e afirmações tresloucadas sobre o envolvimento de Lula em uma conspiração mundial que inclui as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o Movimento dos Sem-Terra, a Líbia, a Síria, o governo Chávez da Venezuela, Fidel Castro e o narcotráfico internacional.
O arco desse processo de desmanche do governo Lula começa em artigos nos quais se insiste em que, pelo fato de não possuir diploma universitário, o presidente está despreparado para o cargo, mesmo que, objetivamente, seu governo possa ser considerado um sucesso, dadas as circunstâncias em que tomou posse. Termina em e-mails e blogs mais ou menos coerentes, mais ou menos bem elaborados, mas sempre eficientes em minar a confiança geral no atual governo. No centro desse processo está a ação política combinada às operações de mídia.
Lição de História
É exercício didático a leitura dos sites de partidos políticos. Ali se percebe como se exercita a espiral de formação da opinião pública. O político faz uma declaração, que a imprensa divulga, o articulista comenta, o editorial chancela e o site partidário realimenta, dizendo que, segundo a imprensa, tal e tal. O político comenta a especulação que virou afirmação da mídia e um palpite vira fato.
Quando o observador afirma que, para a grande imprensa, o governo Lula acabou, não está fazendo eco ao coro dos petistas flagrados com a mão na mala preta, segundo a qual "a direita conspira para derrubar o governo popular". O observador precisa vasculhar as fontes mais variadas e olhar os fatos com o máximo de objetividade. Não há, na história do Brasil, personagem que tenha resistido à combinação das forças políticas conservadoras com as premissas da grande imprensa.
Não é preciso muito mais para que se consolide na opinião pública que, de fato, Lula foi conivente com a corrupção ou é incompetente. Também não será necessário muito esforço para que a margem de erro da próxima pesquisa de opinião, no limite das incertezas, seja vertida para a coluna negativa, induzindo às manchetes definidoras de uma completa derrocada da popularidade do presidente. Sua aprovação entre os considerados mais educados já está em declínio acelerado.
Debilitado por sua própria incompetência, o Partido dos Trabalhadores tem hoje um poder de mobilização muito reduzido. Não se sabe (porque os últimos anos de comando centralizado nas mãos de José Dirceu o tornaram menos transparente) se ainda persistem em seus quadros líderes capazes de mobilizar a militância para a defesa do governo. O senador amazonense Jefferson Peres (PDT), que na falta de um Ulysses Guimarães tem sido citado pela imprensa como uma espécie de Ruy Barbosa contemporâneo, já alertou que uma tentativa de derrubar Lula pela força – mesmo a força constitucional – poderia gerar sérias instabilidades sociais e políticas.
Mas a grande imprensa brasileira aprendeu muito nos últimos anos. Move-se em consonância plena com suas alianças econômicas e políticas. Suas premissas não são propriamente o que existe de mais avançado em termos de consciência do interesse público, mas sabe se alimentar em boas fontes de conhecimento. A crise a tornou mais conservadora, o desaparecimento daquela geração de patriarcas que enfrentou as turbulências do século 20 a deixou menos educada. Mesmo assim, ela evolui. Não apoiará uma versão desarmada do golpe de 1964, mesmo que respaldado numa interpretação conveniente do texto constitucional.
A imprensa trabalha para desconstruir Lula, para deixá-lo só, sem uma base partidária e sem condições de consolidar uma aliança que lhe desse a possibilidade de lutar pela reeleição. Quer lhe ensinar uma lição de História: lugar de operário é ao pé da máquina. Quer fazê-lo ver que a eleição de 2006, mesmo que ele chegue lá com a popularidade preservada, será um massacre, porque a massa vai votar naquele que ficar bem na TV.
E ninguém fica bonito tendo ao fundo um mar de lama.
(*) Jornalista no OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
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