ENTREVISTA: Franklin Delano Roosevelt | VEJA, Junho de 1944 | O presidente americano comemora os avanços na Normandia e a conquista de Roma, mas avisa: o caminho até a vitória ainda é longo. Com confiança nos aliados soviéticos e chineses, FDR não cogita a derrota - mas é cauteloso ao discutir as datas. 'Será bem difícil e custoso, como já alertara antes', diz. | | o assumir a presidência dos Estados Unidos, em 4 de março de 1933, Franklin Roosevelt proclamou sua frase mais famosa: "A única coisa que devemos temer é o próprio medo". A frase se refereia aos tempos da Grande Depressão, o atoleiro econômico em que vivia a nação até a posse do novo presidente. Agora, com o país novamente de pé - e mais rico do que antes -, o bordão pode muito bem ser aplicado à participação americana na guerra. Após muita resistência, os EUA subiram ao ringue e, com seu peso decisivo, inverteram a balança de forças. A posição da maioria dos americanos mudou da água para o vinho: a hesitação isolacionista ficou para trás, dando lugar a uma forte disposição de vencer. A guinada não foi obra só dos japoneses, que atacaram Pearl Harbor e inflamaram o povo - Roosevelt, político habilíssimo e espetacular orador, vendeu como ninguém a causa dos Aliados, fazendo o país enfim superar seus temores. Craque também nas urnas, FDR deverá tentar um inédito quarto mandato como presidente no fim deste ano. Nos dois últimos pleitos, em 1936 e 1940, foi reeleito vencendo de lavada. Por causa da guerra, é quase impossível que não ganhe outra vez - apesar dos sinais cada vez mais preocupantes de problemas com sua frágil saúde, sobre a qual a imprensa americana reluta em falar. Se o físico de Roosevelt aparenta desgaste, seu impressionante intelecto parece afiado como sempre. Nesta entrevista, ele explica com brilho e franqueza como vencerá a guerra e revela que ajudará até os países derrotados: "Estabelecer um padrão de vida decente em todas as nações é um fator essencial para a paz permanente".VEJA - Como o senhor avalia o resultado do Dia D e da abertura do novo front? Roosevelt - Acho que conseguimos o impossível. O golpe atordoante que atingiu a França naquela manhã foi a culminação de meses de planejamento cuidadoso e muita preparação. Tivemos sucesso até agora. Milhões de toneladas de armas e suprimentos e centenas de milhares de homens foram despejados na batalha. Não há escassez de nada! Rompemos a muralha deles. O ataque foi custoso em homens e materiais. Alguns dos desembarques foram aventuras desesperadas. Mas, pelo que sei até agora, as baixas são menores do que o previsto.
| "É claro, há ainda um longo caminho até Tóquio. Mas se nossa estratégia for mantida, podemos derrotá-los antes." | | | VEJA - O senhor acha que a recente invasão da Normandia será a batalha decisiva, a missão que determinará o desfecho desta longa guerra? Roosevelt - Não é tão simples. Sei que todo o interesse hoje está centrado na Normandia, mas não podemos perder de vista que nossas forças estão mobilizadas em campos de batalha no mundo todo, e que nenhum front pode ser visto de forma isolada, sem ter relação com o resto. Vale a pena lembrar como estava a situação há apenas dois anos, em junho de 1942. Naquele tempo, a Alemanha controlava quase toda a Europa, o norte da África e o Mediterrâneo. A Itália ainda era um importante fator militar. O Japão controlava as ilhas do Pacífico e colocava nossas forças na defensiva. Hoje, contudo, estamos na ofensiva no mundo todo, retribuindo o ataque dos inimigos. É claro, há ainda um longo caminho até Tóquio. Mas se a estratégia for mantida, ou seja, se eliminarmos o inimigo europeu primeiro e depois concentrarmos todas as forças no Pacífico, venceremos a Alemanha e o Japão mais rápido do que se pensa.
VEJA - Como país mais rico do mundo, os Estados Unidos vêm pagando parte substancial da conta da campanha aliada. Seu país terá fôlego econômico para custear a guerra até o fim sem comprometer seu futuro? Roosevelt - Acredito que sim. Além do recolhimento dos impostos comuns, reuniremos os fundos necessários para lutar através da venda de Títulos de Guerra. A compra desses papéis é um ato de livre escolha, que todo cidadão faz de acordo com sua própria consciência. E fico feliz em informar que quase todos os americanos fizeram isso. O país tem cerca de 67 milhões de pessoas com alguma renda, mas 81 milhões já compraram Títulos de Guerra. Foram mais de 600 milhões de títulos comprados, que somaram mais de 32 bilhões de dólares. Se há alguns anos alguém dissesse que isso ocorreria, seria chamado de lunático.
VEJA - Mas o apoio popular ao esforço de guerra ainda tem algumas exceções. Roosevelt - Confesso que fico desapontado quando noto isso. A esmagadora maioria da população recebeu as demandas da guerra com magnífica coragem e muita compreensão. Aceitaram inconveniências, aceitaram dificuldades, aceitaram sacrifícios. Mas, enquanto a maioria trabalha sem reclamar, uma minoria barulhenta continua rosnando por favores especiais. São pestes que infestam os lobbies do Congresso e os bares de Washington e enxergam na guerra uma chance de obter lucro próprio. Talvez nem estejam tentando sabotar o esforço de guerra, mas se iludem ao achar que acabou a hora de fazer sacrifícios, que a guerra já está ganha e podemos relaxar. Mas esse tipo de atitude só prolonga a guerra.
"Uma vida decente ajuda para a paz. Pessoas famintas e desempregadas são a matéria-prima para as ditaduras." | | | | VEJA - Nota-se também a preocupação de muitos americanos com o dinheiro que o senhor reservará para reconstruir os países arrasados pela guerra. Roosevelt - Mas estabelecer um padrão de vida decente para homens, mulheres e crianças em todas as nações é um fator essencial para uma paz permanente. A real liberdade individual não pode existir sem segurança econômica. Pessoas famintas e desempregadas são a matéria-prima das ditaduras. Há pessoas que se entocaiam como toupeiras e tentam espalhar pelo país a suspeita de que, se outras nações forem ajudadas a elevar seu padrão de vida, o padrão de vida dos americanos será depreciado. Na verdade, é o contrário. Já ficou provado que, se o padrão de vida de um país cresce, cresce também seu poder de compra. E essa alta estimula o aumento do padrão de vida de vizinhos com quem faz comércio. É pura questão de bom senso.
VEJA - Há mais uma queixa em seu país: a de que as medidas adotadas por causa do esforço de guerra são excessivas. A seu pedido, o Congresso proibiu, por exemplo, a realização de greves, algo que se costuma ver em regimes totalitários... Roosevelt - Nosso sistema de serviço nacional é a forma mais democrática de se lutar uma guerra. É a obrigação do cidadão servir à nação ao máximo onde ele for mais bem qualificado. E isso não significa redução de salários, perda de benefícios previdenciários, prejuízo aos empregos. Estou convicto de que o povo americano receberá bem as medidas, baseadas no princípio do "justo para um, justo para todos". É assim que se luta e se ganha uma guerra. Ainda que ache que os Aliados podem vencer sem tais medidas, estou certo de que nada menos do que a mobilização total da mão-de-obra e do capital garantirá a vitória antecipada.
VEJA - O senhor acredita que o isolacionismo, posição majoritária no país até o ataque a Pearl Harbor, voltará a existir depois da guerra? Roosevelt - Creio que não. Vivemos por tempo demais sob a esperança de que as nações agressoras e belicistas aprenderiam e entenderiam a doutrina da paz puramente voluntária. Era uma posição bem-intencionada, mas fracassada. Espero que não a adotemos de novo. Bem, esperar é pouco: na verdade, farei tudo o que for humanamente possível como presidente para evitar que esses trágicos erros não sejam cometidos outra vez. Sempre existiram os idiotas que acreditavam que não haveria guerras se todos entrassem em casa e trancassem suas portas. Eles não estavam dispostos a encarar os fatos. Mas, se estamos lutando pela paz agora, não é lógico que no futuro usemos a força, se necessário, para manter essa paz?
| "A Itália viveu por tanto tempo sob o regime corrupto de Mussolini que sua condição piorou muito. Há fome." | | | VEJA - Além do espetacular progresso obtido depois do Dia D, as últimas semanas foram marcadas também pela libertação de Roma. Como o senhor recebeu essa notícia? Roosevelt - Como foi a primeira das capitais do Eixo a estar em nossas mãos, pensei: uma já foi, agora faltam duas, Berlim e Tóquio. Talvez seja significativo que a primeira capital a cair tenha a mais longa história entre todas elas. Ali ainda vemos os monumentos do tempo em que os romanos controlavam todo o mundo. Isso também é significativo, já que queremos que, no futuro, nenhum povo seja capaz de governar o planeta inteiro. Além dos monumentos antigos, também vemos em Roma o grande símbolo do cristianismo. Fico satisfeito que a liberdade do papa e do Vaticano tenha sido garantida por nós. Também é simbólico que Roma tenha sido libertada por forças de várias nações juntas. E, se Roma foi poupada da devastação que assolou outras cidades, não é aos alemães que devemos agradecer. Afinal, manobramos com tamanha perícia que, se ficassem em Roma para destruir a cidade, os nazistas perderiam exércitos inteiros. Mas Roma é, obviamente, mais que um simples objetivo militar.
VEJA - E como será a vida dos italianos agora? Roosevelt - Eventualmente a Itália conseguirá se reconstruir. Mas será seu próprio povo que fará isso, escolhendo seu próprio governo democrático. Enquanto isso, não seguiremos o padrão adotado por Mussolini e Hitler nos países ocupados, de pilhagem e fome. Já estamos ajudando. Com a cordial cooperação dos italianos, estamos estabelecendo a ordem, dissolvendo as organizações fascistas, suprindo as necessidades cotidianas até que eles possam cuidar deles mesmos. Os italianos viveram por tanto tempo sob o regime corrupto de Mussolini que sua condição piorou muito. Encontramos fome, miséria, doença, educação e saúde pública pioradas. São subprodutos do fascismo. A tarefa aliada na ocupação é gigantesca.
VEJA - O senhor sabe estimar quanto essa operação custará? Roosevelt - Veja, alguns podem pensar nisso só pelo aspecto financeiro. Mas esperamos que a ajuda seja um investimento no futuro, que pague dividendos ao acabar com o desejo italiano de iniciar outra guerra. Não perdemos de vista suas virtudes como nação pacífica. Lembramos dos muitos séculos em que os italianos brilhavam nas artes e ciências. Lembramos de seus grandes filhos, como Galileu e Marconi, Michelangelo e Dante. No passado, milhões deles chegaram aos EUA. Foram bem recebidos, prosperaram, se tornaram bons cidadãos. O mesmo ocorreu em outros países, como no Brasil, por exemplo. A Itália deve continuar sendo uma grande nação-mãe, contribuindo para o progresso e preservando sua herança cultural e histórica. Todas as nações contrárias ao fascismo devem ajudar a Itália a ter outra chance
"Chiang mostra ter grande visão. E Stalin combina uma tremenda determinação e ótimo humor." | | | | VEJA - Antes do Dia D, surgiram relatos de que americanos e britânicos brigaram para decidir quem comandaria essa monumental ofensiva. Essa informação procede? Roosevelt - É evidente que não. Você pode até ter ouvido de algumas pessoas que britânicos e americanos não se dão bem, que a cooperação entre nós é difícil. Nossas recentes vitórias desmentem esses preconceitos ignorantes. A luta incansável do povo britânico nesta guerra foi simbolizada pelas históricas palavras e ações de Winston Churchill, com quem me entendo muito bem. Na verdade, o senhor Churchill se tornou conhecido e amado por milhões de americanos. É um grande cidadão do mundo. Continuaremos lutando juntos.
VEJA - E os russos e chineses? Há alguma rivalidade ou atrito com eles? Roosevelt - As recentes conferências do Cairo e Teerã deram-me a primeira oportunidade de conhecer o generalíssimo Chiang Kai-shek e o marechal Josef Stalin, de sentar à mesa com eles e conversar frente a frente. Confiávamos uns nos outros, mas precisávamos do contato pessoal. Agora, além de confiar neles, os conheço bem. Valeu a pena viajar milhares de quilômetros para ver que concordamos em todos os objetivos e em todos os meios de obtê-los. Encontrei no generalíssimo Chiang um homem de grande visão, de um entendimento agudo dos problemas atuais e futuros. E me relacionei muito bem com o marechal Stalin, homem que combina tremenda determinação com um eterno bom humor. Acredito que ele seja um legítimo representante da alma e coração dos soviéticos, com quem, creio, teremos uma ótima relação.
VEJA - Então os Aliados já definiram o que fazer quando a guerra terminar? Roosevelt - Concordamos substancialmente nos objetivos gerais para o mundo no pós-guerra. Discutimos as relações globais sob o ponto de vista das metas amplas, não de detalhes. Mas, depois desses debates, posso dizer que não creio no surgimento de diferenças indissolúveis entre URSS, Grã-Bretanha e EUA. De qualquer forma, não é hora de iniciar a discussão sobre termos de paz. Primeiro precisamos ganhar a guerra. Não podemos aliviar nossa pressão sobre o inimigo perdendo tempo com discussões sobre fronteiras e controvérsias políticas. Ainda não é hora de festejar. A vitória ainda está a alguma distância de nós. Essa distância será percorrida no tempo devido. Mas isso será difícil e custoso, como já alertara antes. E suspeito que, quando essa guerra enfim terminar, não estaremos em clima de festa. Acho que nossa maior emoção será uma grave determinação para que isso jamais volte a acontecer. |
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