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Thursday, April 07, 2005

FOLHA DE S.PAULO -PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.:"O papa da globalização"



Não há outro assunto: o Papa morto ocupou todo o noticiário. Multidões chegam a Roma para ver o cadáver de João Paulo 2º. O mundo não é mais religioso, mas continua mórbido.
Passando por uma banca, vejo a capa de uma revista semanal: "O papa da globalização". Por uma associação sonora meio desrespeitosa, lembrei-me do "papo da globalização".
Durante os anos 90, era um tema obsessivo no mundo inteiro. Um dos eventos responsáveis por essa onda da "globalização" foi, sem dúvida, o desmoronamento do bloco soviético, que começou pela Polônia, terra natal do papa. João Paulo 2º teve, como se sabe, um papel nessas mudanças políticas.
Logo em seguida, com a desintegração da própria União Soviética, o Ocidente entrou em êxtase. Proclamou-se o início de uma nova era, de uma economia mundial integrada, sem fronteiras, governada de acordo com um modelo único.
Em nome da "globalização", fizeram o diabo. Ela era motivo e desculpa para tudo. Países incautos foram levados a descuidar do seu Estado nacional e de seus interesses estratégicos sob o argumento de que a "globalização" não permitia mais o apego a práticas e concepções ultrapassadas.
No Brasil, um dos principais arautos da nova era foi Fernando Henrique Cardoso. Por um lado, dizia-se, a "globalização" oferecia oportunidades excepcionais aos países que seguissem obedientemente a sua liturgia. Por outro, ela acarretava riscos e impunha limites à ação dos governos nacionais.
Com o passar do tempo, a "globalização" virou uma espécie de biombo para governos escapistas, como o brasileiro. Ela, sempre ela (a "globalização"), e não ele (FHC), era responsável por todas as desventuras da economia nacional! O desemprego, a instabilidade financeira e as crises cambiais costumavam ser debitados a forças internacionais fora do controle do governo brasileiro.
Hoje, toda essa retórica anda meio esquecida ou relegada a segundo plano. Os apóstolos da "globalização" não abandonaram a sua fé, mas foram obrigados a mudar o tom e a variar um pouco o vocabulário.
O que aconteceu? Em primeiro lugar, obviamente, instalou-se o tédio e o desgaste provocados pela repetição incessante da mesma ladainha. Houve também uma vulgarização brutal do assunto. A leitora provavelmente não sabe, mas a mulher mais famosa da TV argentina é atualmente um travesti, uma tal de Florencia de la V. A Folha quis saber como isso se tornou possível numa sociedade tão conservadora como a argentina. Resposta da celebridade: "Acho que a mudança tem a ver com a globalização. Sai um programa americano de TV e logo estão passando aqui, e isso ajuda a mudar a cabeça das pessoas". Veja, leitora, a sabedoria da entrevistada, que equaciona automaticamente "globalização" com exportação da cultura de massas dos EUA...
Mas estou me desviando do assunto. O fundamental foi o que aconteceu na pátria da "globalização". Em 2001, chegou à Presidência dos EUA o companheiro Bush, cercado de uma equipe ultranacionalista. Com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o nacionalismo americano escancarou-se em imperialismo. Vieram a invasão do Afeganistão e a do Iraque. Depois, o ataque terrorista de 11 de março de 2004, em Madri.
O ambiente internacional transfigurou-se. Os EUA e demais países desenvolvidos fecharam ainda mais as suas fronteiras, intensificaram a luta contra a entrada de estrangeiros indesejáveis (asiáticos, africanos e latino-americanos) e reforçaram as suas inclinações protecionistas em matéria de comércio exterior. Instituições multilaterais como o FMI, as Nações Unidas e a OMC sofreram baques sucessivos e entraram em fase de crise ou descrédito.
Os profetas da "globalização" ficaram sem chão. O seu discurso esvaziou-se, perdeu charme e credibilidade.
Ainda bem. Em países como o Brasil, essa liturgia servia de instrumento e disfarce para um velho conhecido nosso: aquilo que o grande Euclides da Cunha, há mais de cem anos, chamou de "regime colonial do espírito".

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