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Thursday, April 07, 2005
no mínimo | Guilherme Fiuza:O papa empalhado
06.04.2005 | Ajeita o pé do papa que tombou de novo! A cabeça tá balançando, não inclina! Fecha a boca do Papa!
João Paulo II, o Sumo Pontífice, passou os últimos dez anos de sua vida atraindo a atenção do mundo por causa dos males de seu corpo, muito mais do que pela grandeza de seu espírito. Achou que seria didático viver sua longa via-crúcis em público, uma aula de sofrimento físico, quando na verdade o que resultou foi, para muitos, um miserável espetáculo de desumanidade. O clímax deste estranho materialismo espiritual é a veneração ao corpo morto do papa, carregado para lá e para cá no meio da multidão como um Quincas Berro D´Água.
Tamanha fixação cadavérica só tem paralelo entre os antigos egípcios, em sua sacralização dos corpos dos faraós. O que fazia todo o sentido, pela convicção de que a morte era apenas um descanso antes da próxima vida – a ser vivida com aquele mesmo corpo. Mas isso foi há cinco mil anos. No século 21 Depois de Cristo, do alto das múltiplas camadas de conhecimento e cultura que sedimentam a vida moderna, uma tal exaltação ao corpo morto – e note-se que não era um general ou um líder político, mas um sacerdote do próprio Deus – só pode denotar alguma pane séria no ideal de religião.
Se os fiéis que entopem os funerais do papa declaram sentir-se, diante de sua figura mumificada, como se estivessem na presença de Deus, é preciso parar tudo e mandar todo mundo de volta à primeira comunhão. Lição número um: Deus é espírito. E os sacerdotes recebem este mandato dos homens por sua elevação espiritual, ou seja, sua suposta capacidade de transcender as razões da matéria e tocar a divindade – onde está, para os religiosos, todo o sentido da existência humana.
O desfile do papa morto pode até fazer algum sentido para os ateus e os materialistas. Desmistificação da santidade, curiosidade mórbida, essas coisas. Mas o mortal que tem alguma presunção de espiritualidade na carcaça deveria tratar de apontar sua emoção para outro lado. Deus não está ali, nem João Paulo, nem Karol Wojtila. Não há mais ninguém em casa. Trata-se apenas de matéria inanimada, a mesma desprezada pelo catolicismo quando censura os impulsos carnais, mas agora paradoxalmente transformada em souvenir religioso. Uma versão bizarra do culto ao corpo.
Talvez a figura do Papa esteja mesmo condenada a ser uma grande miragem. Morto ou vivo. João Paulo II vive sendo descrito como “o papa conservador”, entre outras coisas porque a Igreja, sob seu comando, foi rigorosa contra determinados costumes, como o uso da camisinha. Diagnóstico totalmente equivocado. João Paulo II foi contra a camisinha porque a Aids surgiu na época do seu pontificado. Paulo VI não teve esse dilema. E o próximo papa será contra a camisinha, contra o uso de embriões humanos para pesquisa científica, contra casamento entre homossexuais etc. A miragem é acreditar que virá do papa a demarcação ética dessas questões.
João Paulo II não foi um conservador. Foi dar sua bênção aos pobres, aos desvalidos e desesperançados nos quatro cantos do mundo. Aproximou a Igreja do povo, suscitou a fé nas almas mais alquebradas – o que quer dizer, em última análise, aproximar o homem de Deus. Como se não bastasse, injetou o quanto pôde os princípios de tolerância e comiseração nas relações políticas entre os Estados nacionais. João Paulo II foi essencialmente um libertário. E mostrou com o seu pontificado por que o papa é um líder mundial, cuja influência vai muito além das fronteiras do universo católico.
Toda essa obra combina muito pouco com discórdias sobre onde será enterrado o coração do Papa, que outros rituais seu corpo pode ensejar, por que esquinas passará até que finalmente seja sepultado. Um show de simbolismo estéril, um espetáculo que confunde divindade com marketing. O pastor falou o que tinha que falar, mas as ovelhas, pelo visto, não ouviram direito.
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