Bento 16 | ||
Joseph Ratzinger parece indicar que a Igreja preza muito mais a sua unidade do que dá a entender. O "pêndulo", que, por falso, não mudou de lado, optou, é fato, pela continuidade, e nessa continuidade pode estar a força de salvação do Colégio de Cardeais | ||
Por Reinaldo Azevedo
"Quem tem boca vai a Roma", e quem não tem ouvidos para ouvir acaba usando a língua como instrumento de sua imprudência. Assim se deu, de modo geral, com a cobertura do pré-Conclave e, antes, com os fatos que se seguiram à morte de João Paulo 2º. Tendo a achar que tudo deriva de um entendimento prejudicado que a imprensa, também a mundial, tem dessa tal "dialética", reduzida à condição de mero pêndulo. E, claro, há o monumental lobby anticatólico e anticristão que tentou se apoderar da eleição do Sumo Pontífice. Não deu certo. Cumpre-me, ainda uma vez, observar que falo sobre a Igreja Católica na condição de alguém que não se considera um católico. Porque, reitero, isso, entendo, requereria uma disciplina e uma dedicação de que não me sinto capaz. O que faço, no entanto, é reconhecer, em nome da pluralidade e, bem, da lógica democrática, o que costumo chamar de autonomia para o domínio da fé, desde que ela esteja articulada como uma sociedade democrática e que não aspire à condição de Estado, desde que não pretenda se impor como uma teocracia. E é justamente o ponto em que se encontra a Igreja Católica contemporânea. Reconheço que existem bons e sinceros motivos para que muitos tenham se oposto ao pontificado de João Paulo 2º e vejam agora com receio o início da era Bento 16. A mão forte do Vaticano pesou sobre as correntes que considerava terem optado por caminhos desviantes, e é bem possível que injustiças se tenham cometido nesse processo. Mas confesso que me toma uma certa fúria — não mais do que aquela que um amante da lógica pode alimentar — a cada vez que se cobram da Igreja Católica posições que seriam, na prática, a negação dos seus fundamentos. E é também irritante a tábula rasa que se faz de temas que têm grandezas infinitamente desiguais. Não sei se a Igreja Católica, algum dia, concederá com o uso de preservativos, por exemplo. Mas é óbvio que a adesão, ainda que não entusiasmada, a métodos considerados naturais de contracepção acena para uma mudança do que parece ser um rigor excessivo. Daí, no entanto, a se supor que a instituição possa avançar (ou regredir, a depender da opinião) para a aceitação do aborto, vai uma grande diferença. Porque, em verdade, há um abismo entre uma questão e outra. A censura à camisinha ou ao casamento de homossexuais está bem mais próxima da censura mais geral ao hedonismo moderno do que da condenação ao aborto, que é considerado uma violação do princípio da vida, que é divina, morada de Deus. Juntar num mesmo parágrafo e até num mesmo período, como se faz habitualmente, a atuação do agora Bento 16 "contra a camisinha, o aborto, o casamento de homossexuais, o casamento dos padres, a ordenação de mulheres e a comunhão dos divorciados" é praticar, de fato, desinformação. Cada uma dessas realidades obedece a determinações históricas distintas. Algumas remetem a princípios inegociáveis; outras vão se encontrar com urgências em seu devido tempo. De qualquer modo, todas elas dizem respeito — e também isso se ignora amiúde — aos católicos. Debate internoOra, é claro que os católicos, os fiéis da Igreja, também podem se flagrar transgredindo esta ou aquela determinação da hierarquia. Mas há um fato que talvez soe novidade a uma larga maioria: em nenhum país do mundo, felizmente, um indivíduo é obrigado a ser católico. A adesão à religião é volitiva, espontânea. Carrega certamente o peso da tradição cultural, mas é também um ato individual. A Igreja, como toda realidade humana, se divide em correntes, em pensamentos distintos. É legítimo, segundo seus próprios princípios, que os fiéis, pertençam ou não à hierarquia, se organizem para tentar influenciar nos seus destinos. A questão fundamental é saber como o fazem. E aqui há algumas questões centrais que o pensamento laico se nega a reconhecer, embora dele parta a maior parte das censuras ao Vaticano. Pegue-se o caso do que se chamou Teologia da Libertação, uma corrente da Igreja que prosperou na América Latina. Da meritória intenção anunciada de levar a Igreja de Cristo para a defesa dos pobres, em que ela se converteu? Será que os que acusam a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé de ter sido ditatorial e autoritária com Leonardo Boff, por exemplo, puseram, alguma vez, os olhos no livro Igreja, Carisma e Poder? Recomendo que o façam. Ele próprio afirmou, em uma entrevista, que seu irmão, Clodovis, também teólogo, afirmara sobre o texto que ou o Vaticano reagia ou provava que estava morto. No texto, não há como ler de outra maneira, Boff vê uma igreja tão pecadora como irredimível. Para ele, o perdão, um dos pilares do cristianismo, não assistiria a própria Igreja Católica. Da defesa dos pobres à apologia da luta de classes, a Teologia da Libertação deu o salto sem atentar para a contradição essencial. Ora, creio que a democracia é o melhor remédio contra a tentação totalitária esquerdista e que tudo deve fazer para se preservar, tolerando-a até onde pode ser tolerada, até onde essa tentação não mude o seu código essencial. Mas a Igreja Católica, que não é uma democracia, não pode aceder a uma leitura do mundo que é a negação do próprio espírito católico, da sua vocação para ser a Igreja Universal. Como em nenhuma outra figura, acredito, a Igreja Católica se realiza na vocação de São Paulo, aquele que estabeleceu as bases da conversão dos gentios. Assim, pensa-se numa instituição que existe para converter, e não para ser convertida. Ou bem os teólogos da libertação admitem que devem ser salvas tanto a alma do dono de terra quanto a alma do sem-terra ou bem mudam de atuação social e aderem à luta política. Organizar-se na Igreja Católica para que ela se preocupe sempre mais com os humildes me parece bastante diferente de substituir o dogma da cruz e da salvação pelo dogma da luta de classes. Ambicionar um socialismo com face cristã é um exotismo socialista e cristão. EmbatesCreio que esses embates tomaram conta do pontificado de João Paulo 2º, que contou, sim, com a decidida colaboração do agora Bento 16 para coibir o que, entendo, se caracterizava como ameaças claras de cisma. Diz-se por aí que o papa afastou a Igreja do seu rebanho à medida que a Cúria deitou a sua sombra sobre os movimentos populares. Talvez tenha sido a ação necessária para evitar um racha que, em certo momento, chegou a parecer inevitável. Em certo período, os grandes inimigos da unidade católica pareciam estar tanto dentro da instituição quanto fora dela. E, agora, volto um pouco ao início deste texto. Quantos de nós não nos cansamos de ler na imprensa brasileira (e também americana, européia e latino-americana) que havia chegado ao limite o atual "conservadorismo" católico? Quantos de nós não fomos bombardeados pelas notícias sobre os muitos descontentamentos que o pontificado de João Paulo 2º havia provocado? Quantos de nós não procuramos indícios papáveis em cardeais latino-americanos ou africanos? Ocorre que as melhores atribuições desses "candidatos" quase nunca eram pastorais, mas políticas. Era a Igreja do Terceiro Mundo chegando, era o Sul tomando conta da Igreja do Norte; tratava-se, parecia, de uma guerra de posições. E, no entanto, o tempo quase recorde que marcou a eleição de Joseph Ratzinger parece indicar que a Igreja preza muito mais a sua unidade do que dá a entender. O "pêndulo", que, por falso, não mudou de lado, optou, é fato, pela continuidade e, nessa continuidade pode estar a força de salvação do Colégio de Cardeais. Ratzinger, que soube, então, empreender a batalha contra as correntes que tinham força para desagregar a Igreja será, agora, inevitavelmente, levado ao diálogo, inclusive com parcelas hoje descontentes do catolicismo. E não porque vá buscar o "outro lado" ou o "outro extremo", mas porque que sua missão é manter unida a sua Igreja e levá-la aonde ela ainda não está. Não tem de aderirNem cabe digredir muito a respeito, até porque a literatura sobre o assunto é bastante vasta, e muitos são os instrumentos hoje disponíveis de pesquisa: o fato é que a Igreja Católica é, sim, uma das grandes chaves da civilização ocidental, tanto no que respeita a seus valores espirituais e simbólicos como no que respeita à questão mais comezinha: a guarda empreendida de alguns de seus testemunhos concretos de grandeza intelectual. Cometeu erros, violências, omissões. E pagou caro por cada uma dessas faltas. Mas, na sua unidade, restou como um dos pilares de nossa formação, hoje plenamente integrada às sociedades democráticas, sem ser uma democracia, que esta é tarefa nossa, dos que estamos fora da hierarquia, católicos ou não. Não como quem comunga de valores religiosos necessariamente, mas como quem também combate certo relativismo, este cultural, não vejo um só valor essencial da Igreja Católica que acene para um mundo de violência, de terror, de degradação da vida humana. Ao contrário, considero, como indivíduo — um quase nada — esta instituição uma minha aliada na defesa de alguns princípios que também tenho por inegociáveis. Se Bento 16, ainda como cardeal Ratzinger, atacou o relativismo que, entende, concede com extremismos, também eu tenho cá a minha militância (quase solitária, admito) contra outras formas de agressão a princípios da tal civilização ocidental constantemente satanizados em benefício de particularismos que, se generalizados, resultariam em tirania. Sob o pretexto politicamente correto do multiculturalismo, conquistas caras à essência mesma de um regime de liberdades públicas são hoje postas em questão. Também eu, como Ratzinger, no que me concerne e na minha medíocre militância, acato a diferença, assim como o agora Bento 16 vai dar seqüência ao diálogo ecumênico, de que ele é artífice, diga-se. Mas também eu, como ele em relação à sua fé e à universalidade do catolicismo, advogo, no entanto, a superioridade dos valores da cultura ocidental, que, entendo, não devem ser impostos pela força, mas também não devem se deixar contaminar por particularismos que lhe são estranhos e lhe neguem a essência. Se querem um pouco de concretude e exemplo, pois não: devemos buscar o diálogo com o Islã, mas é bom que tenhamos muito claro que chegamos, no que concerne ao respeito à pessoa humana, muito mais longe do que eles. Se a França não pode, porque não pode, levar seu laicismo aos países islâmicos, é de se indagar por que o Islã pode islamizar a Franca. É claro que os próprios franceses colaboram quando igualam, em sua história, a Cruz ao Crescente, proibindo ambos nas escolas. Mesmo aos que não crêem na diferença essencial entre uma coisa e outra, resta a questão: qual dos dois sinais preserva as conquistas mais importantes da cultura e da história francesas? Qual dos dois sinais, em suma, fez-se, para além de qualquer crença, história encarnada? Volto à escolha do nome "Bento". Só Ratzinger tinha autoridade para uma primeira diferença em relação ao antecessor, já expressa no nome. Depois da comoção que se seguiu à morte de João Paulo 2º, qualquer outro estaria obrigado a ser João Paulo 3º. Ele não. Como não resta qualquer dúvida sobre a sua fidelidade ao antecessor, tem a independência para emitir sinais próprios. A homenagem aos dois "Bentos" anteriores é uma poderosa inspiração. Do 15, vem o apelo à paz e a declaração de independência da Igreja em questões de política e guerra; do 14, a coragem de voltar-se à doutrina mesmo quando a Igreja parece de tal sorte cercada que nada tem a fazer senão ceder em seus princípios ou entregar-se ao Estado forte, às ditaduras. Entendo, sinceramente, por que muitas pessoas não gostaram da escolha de Ratzinger — inclusive uma das que, hoje em dia, me são mais queridas, católico que vive profundamente a sua fé. Mas sou otimista. Acho que Bento 16 vai operar mudanças importantes na Igreja. De dentro para fora, da Santa Sé para o mundo. Depois de João Paulo 2º, só ele poderia mudar o que tem de ser mudado. Finalmente... Nota dois: Alencar é apenas quatro anos mais novo do que Ratzinger. E está cheio de planos. Até para a Presidência (toc, toc, toc...) da República. Nota três: não são quatro anos que faltam a Alencar para livrá-lo de falar bobagem. São os outros 74 de convívio com alguma forma de rigor intelectual. |
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Wednesday, April 20, 2005
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