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Friday, April 29, 2005

Eles, que deram um pé no traseiro da teoria política


Eles, que deram um pé no traseiro da teoria política
A crônica política ajuda a criar confusão e desinformação e a turvar o cenário. Boa parte dos críticos do presidente, se bem lidos, anseia é por um Lula mais parecido com seu discurso pregresso, o que é uma temeridade

Por Reinaldo Azevedo

Reprodução
VIRAM SÓ? Até ele se comporta e senta no banquinho. Dizem que até reconhece algumas letras...
Só não sinto pena de Lula em razão das bobagens que diz porque reprovo a sua pouca disposição para sentar o traseiro na cadeira e ler ao menos um livro, o que poderia, sem dúvida, ser útil à sua formação. Assim como ele nos incitou com o seu "Levanta o traseiro e anda", eu retruco: "Sossega o traseiro e senta". Por favor, presidente, tenha ao menos a paciência de ler os relatórios que certamente lhe mandam sobre taxa de juros, spreads bancários e coisas afins. Antes de sair por aí usando termos à matroca, cujo significado o senhor certamente ignora, pare um pouquinho para consultar, vá lá, nem que seja o dicionário.

Restam-lhe ainda 613 dias de mandato (ai, Jesus!). Se aprendesse três palavras novas por dia, ao fim do curso, seriam 1.839 vocábulos que se somariam àqueles que já conhece. Para o senhor ter uma idéia, uma boa tradução do capítulo 13 da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, um dos mais belos textos da literatura universal, não tem mais de 250 palavras. Descartadas as repetições, conectivos, preposições e termos de apoio, devem ser, sei lá, menos de cem os termos distintos. Serelepe como o senhor é, não padecendo da preguiça glútea de que nos acusa a todos, o senhor poderia retrucar que a palavra não faz o pregador, e sim a inspiração. Até concordo. Mas a palavra que abunda, fique certo, não prejudica a inspiração que claudica. Da ampliação dos recursos pode nascer um manejo um pouco mais destro que venha a livrá-lo desse constante sinistro verbal.

Vão dizer que estou aqui a tratar Lula com desrespeito. Eu, não. A rigor, foi ele quem, a título de estímulo, deu um pé no traseiro de seus novos patrões. É até compreensível. Lula não devia satisfações a ninguém desde 1975, quando assumiu a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Iniciava ali a sua carreira de self-made man, livre-atirador da ideologia (que nunca teve) em favor do socialismo que nunca soube o que era. Depois vieram alguns intelectuais da USP e alguns marxistas de batina e lhe venderam a preços módicos utopias que haviam custado milhões de vidas na Europa, Ásia e América Latina. Ele comprou.

Juntou, então, a utopia (de fato, distopia) à vida folgazã de dirigente sindical. A sorte foi-lhe sorrindo de empreitada em empreitada, até lhe dar a Presidência da República. Mas, oh desdita!, embora ele goste do emprego, vê-se, descobriu que não pode ser mais olímpico como era quando imperador de aparelhos sindicais. Resultado: fica zangado. E, ao se zangar, é claro que ele não vai ler a Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios. Nada disso. Prefere tirar dos alfarrábios da infâmia nacional aquela que é a crítica mais pusilânime que certa elite vagabunda fazia aos brasileiros: este é mesmo um povinho mequetrefe, que só sabe reclamar.

Na sua ânsia de ser aceito por aqueles a quem julgou combater um dia — nota: jamais combateu porque nunca soube o que quis e nunca teve projeto —, mimetiza-lhes o pior. Sociologicamente, Lula é um desastre formidável: quando sindicalista, sempre teve uma visão vesga e aparvalhada do processo produtivo; presidente, torna-se ventríloquo da versão deformada da economia de mercado.

Sim, vejo alguns colunistas que lhe cantavam as glórias e derramavam adjetivos aos pés — gente que, em verdade, tem tanta aversão aos livros e à teoria política quanto o seu antigo objeto de culto — fazer muxoxos de desagrado e acusá-lo de traidor. Aqui, peço licença para defender Lula. Traidor ele não é! Vocês é que estavam desinformados. Desinformação que continua a alimentar ainda hoje os panegíricos às avessas quando evocam o seu passado de grande líder como contraste ou paradoxo com sua atuação presente. O que eu posso dizer neste particular? Ainda bem que Lula não se levava a sério, não é? Ou Quito seria aqui. O que não quer dizer, obviamente, que esteja fazendo a coisa certa ou que não sirva a um projeto autoritário de sociedade. Sejamos gratos por Lula ter desistido de seus antigos equívocos para que possamos, com mais clareza, apontar seus equívocos presentes.

O que eles querem
O momento político não é dos mais iluminados, não. A crônica política ajuda a criar confusão e desinformação e a turvar o cenário. Boa parte dos críticos do presidente, se bem lidos, anseia é por um Lula mais parecido com seu discurso pregresso, o que é uma temeridade. Corresponderia a somar ao desastre administrativo em curso o autoritarismo político, que, volta e meia, mostra a fuça, mas sempre contido a tempo pela sociedade. Se querem uma prova, procurem investigar quantos são os olhos compridos e substantivos lânguidos que são dirigidos ao Equador. Há mesmo quem use aquele país como uma espécie de advertência a Lula, como se dissessem: "Ou o senhor caminha imediatamente para a esquerda ou o aguarda a voz rouca das ruas". Na prática, sugerem que o que resta de discurso incendiário no petismo seja apagado com gasolina.

E eu, no entanto, digo: o problema de Lula não está, é claro, em ser fiel ao que disse. Pessoalmente, espero que seja cada vez mais infiel, já que o discurso petista não passava de uma soma de anacolutos políticos e econômicos. O problema de Lula é bem outro: está no desrespeito às instituições e na forma absolutamente ligeira, freqüentemente irresponsável, com que aborda questões da maior gravidade. A equação macroeconômica é certamente ruim e dependente apenas da saúde financeira de estranhos. Isso é consenso até entre os defensores do governo. Não há uma só pessoa que faça um juízo, vá lá, matemático ou econométrico do crescimento do país que não o veja como parte da expansão mundial, de que participamos com timidez, diga-se. Mas também é óbvio que não reside aí o pior do governo petista.

O monumental desastre em curso é de ordem gerencial e, se quiserem saber, guarda relação distante, de fato, com a taxa Selic. Algum economista que não dá a mínima pelota para a política e que entrega o futuro ao curso dos fatos deve ter soprado aos ouvidos de Lula algo como: "Sem crise, mantemos compactada boa parte da elite com essa política; com crise internacional, todos os absolutos são mesmo relativos". E Lula se convenceu. O buraco está em outro lugar. À diferença dos meus coleguinhas de esquerda que querem um Lula mais Lula, um governo ainda mais petista, infiro que a memória partidária original incrustada na máquina administrativa é que responde pelos descalabros.

Assim é com a politização incompetente da Saúde; com a baderna sangrenta que se instalou no campo, com a piada macabra em que se transformou a assistência social no país (e pensar que Lula vendeu o Fome Zero até na ONU — se bem que a ONU, uma espécie de petismo planetário, mereceu ouvir), com a desmoralização da já desmoralizada Previdência (Jucá é do PMDB, mas atendia originalmente ao propósito da aliança partidária para 2006), com o desprezo olímpico devotado à segurança pública (o defunto Plano Nacional de Segurança jamais saiu do papel) ou com a política externa desastrada e amante de ditaduras. A rigor, para os propósitos a que se destina — bem entendido! —, só a política econômica funciona. E tudo porque este é, sim, senhores!, um governo do PT. E não porque falte petismo ao Planalto. Quem considera Lula um traidor tem é de se juntar a Heloisa Helena. Eu acho que ele cumpre um destino. Como diria Genoino em seu momento Schopenhauer, "uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa".

Conto, claro, a possibilidade de que possa estar errado, e os meus coleguinhas de esquerda, certos. Mas só aceito debater com textos. Quero que me apresentem ao menos um de economia política produzido pelo PT ao tempo em que era de oposição que não conduzisse o país ao desastre. Só os aduladores de biografias vitaminadas pela mitificação ideológica poderiam supor que o PT era viável numa sociedade democrática, com aspirações à civilização. Reitero: apresentem-me os textos da viabilidade das propostas petistas de governo.

Então quer dizer que o PT ainda é o melhor antídoto contra o petismo? Não! Essa é outra falácia posta em curso pelos partidários moderados — alguns elaboram a análise como crítica, outros, como calmante para as elites. Na realização dos desastres acima listados, está se construindo também um Estado e uma forma de entender a coisa pública. O PT não se realiza só como negatividade, mas também como positividade — a depender, claro, do que se quer. Esse Estado serve hoje ao propósito de alimentar uma nova classe e garantir a sua reprodução.

Tenta-se construir marcos que se querem indeléveis, que teriam potencial para enrijecer a democracia, como é o caso da reforma universitária ou da reforma sindical (que parece ter naufragado). A República Sindical — esta que silencia diante da absurda fala de Lula sobre os nossos traseiros — toma conta hoje do aparelho estatal e paraestatal, com ramificações no setor financeiro por meio dos fundos de pensão. O flerte do governo Lula com Chávez, por exemplo, é muito mais importante do que parece. Na Venezuela, trama-se abertamente contra a democracia, embora respeitando formalmente alguns de seus ritos.

Os basbaques
O jornalismo basbaque (aquele mesmo que acreditava de tal sorte em Lula que agora o chama de traidor) cai na conversa de que Condoleezza Rice realmente aposta no presidente brasileiro para ser o Nestor de Chávez  — isso se soubesse, é claro, quem é Nestor...  E Lula não será. Diante do óbvio insucesso do Brasil como mediador das relações Washington-Caracas (afinal, Condoleezza não é maluca, e Chávez é), restou a Marco Aurélio Garcia, o ministro interior de Lula para Relações Exteriores, dizer, nesta quarta, que o Brasil não é "garoto de recados". Por enquanto, tem sido, sim: garoto de recados do protoditador da Venezuela.

Precisamos, enfim, de traseiros menos serelepes também no jornalismo. Hora de um pouco de história e de teoria política. Quem se habilita?

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