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Saturday, September 17, 2005

Poupar Azeredo é um acinte Mauro Chaves

O ESTADO D S PAULO

A questão não é saber se o governo Lula é ou não o mais corrupto da História do Brasil - afinal, uma cuidadosa pesquisa histórica pode descobrir precedentes insuspeitados. O problema maior, que desmonta os valores da sociedade e acaba com os pontos de referência dos jovens, é a justificação de todos os comportamentos, é a substituição da ética pela estratégia. No desfile acabrunhante de depoentes nas CPIs, assim como nos discursos presidenciais e nas entrevistas dos protagonistas da crise, o que mais se vê são violências contra evidências, inversões de sentido, desprezo ao raciocínio normal. Adota-se uma eufemistificação (peço licença pelo neologismo) que distorce e escamoteia os crimes, as culpas e as responsabilidades.

Assim como caixa 2 virou "recursos não contabilizados", inventou-se um conceito de "responsabilidade política" (utilizado, por exemplo, por Genoino e Gushiken, em seus depoimentos) que elidiria outras responsabilidades: a legal, a administrativa, a criminal. Os próceres petistas (começando pelo presidente Lula), todas as vezes que se lhes indaga sobre o volume descomunal das bandalheiras governamentais e partidárias que têm vindo à tona, repetem o mantra: "Tudo deve ser apurado e os culpados, punidos." E o presidente dá a essa frase uma entonação de quem está anunciando, com coragem insopitável, uma verdade revolucionária. Mas o traço maior desse colossal desmonte de valores éticos, gerado pela ascensão do PT ao poder, é a profissão de fé na ignorância, pela qual administradores públicos juram jamais ter tomado conhecimento das falcatruas praticadas por seus subordinados - mesmo que estas os tenham, em muito, beneficiado.

Nada é mais eticamente desmoralizante do que a utilização de dois pesos e duas medidas para a avaliação do comportamento alheio - especialmente quando cotejado com o próprio. Isso vale para pessoas, partidos e instituições. O PT se esfacelou, moralmente, porque não usou para si mesmo os rígidos critérios de cobrança ética que em duas décadas utilizou para avaliar os seus concorrentes e adversários. Tendo chegado ao poder para mudar, e tendo mudado os padrões éticos da vida pública brasileira - mas para muito pior -, só restou ao PT o discurso da generalização pecaminosa - ou seja, a do "sou, mas quem não é?" É aí que os tucanos oferecem aos petistas, com a inacreditável complacência em relação ao presidente de sua legenda, a melhor argumentação diversionista.

O senador, e ex-governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo praticou o mesmo crime eleitoral dos petistas e de outros parlamentares de partidos aliados do governo federal, ora investigados nas CPIs. Utilizou-se, em sua campanha majoritária de 1998, do mesmo canal de abastecimento de caixa 2 montado pelo "empresário" Marcos Valério de Souza - o famigerado valerioduto. A instituição financeira usada em suas operações ilícitas, o Banco Rural, é exatamente a mesma dos petistas. E a justificativa de Azeredo, tentando isentar-se de responsabilidade, é também idêntica à de todos os outros comensais eleitorais de Valério, nos termos: "Eu não sabia de nada. Quem cuidava das finanças da campanha era meu coordenador (ou tesoureiro, ou assessor, ou auxiliar, ou etc.)." No caso, o "Delúbio" de Azeredo se chama Cláudio Mourão.

O presidente do PSDB confessou, em depoimento espontâneo prestado à CPMI dos Correios (que, espertamente, o livrou de interrogatórios), ter-se beneficiado do valerioduto. Em sua campanha de reeleição ao governo de Minas Gerais, em 1998, a agência DNA Propaganda, de Marcos Valério, contraiu um empréstimo de R$ 9 milhões (R$ 11,7 milhões com juros) no Banco Rural. Como garantia ofereceu os créditos decorrentes de contratos assinados com as Secretarias Estaduais de Comunicações e de Governo, na gestão Azeredo. Em seguida, a agência SMP&B, também de Valério, repassou dinheiro para pelo menos 70 pessoas, ligadas a integrantes da coligação que apoiava o candidato Eduardo Azeredo - em que se incluíam dois deputados federais, dez deputados estaduais e dois prefeitos do interior do Estado. O sr. Cláudio Mourão alegou que só não informou à Justiça Eleitoral a existência desses "recursos não contabilizados" porque "achou" que os deputados e prefeitos beneficiados o fariam!

Na verdade, as desculpas esfarrapadas talvez sejam os andrajos mais visíveis nesse formidável lodaçal em que chafurda o espaço político brasileiro. Ao repetirem tais desculpas, os líderes tucanos endossam o núcleo central da autocomplacente argumentação petista. Mesmo que seja um único exemplo, circunscrito à região de Minas Gerais, o "caso" Azeredo é suficiente para ilustrar a "generalização pecaminosa" insistentemente utilizada pelo discurso petista - a exemplo da grotesca entrevista presidencial concedida em território francês.

Também já se percebeu, da parte de líderes tucanos, uma sutil "ameaça" de equiparação da situação de Azeredo à de Mercadante (nos termos "se mexer num, tem que mexer no outro"). Trata-se da tentativa de um pacto bipartidário de blindagem senatorial recíproca... Mas é claro que as situações são, mesmo, perfeitamente equiparáveis. Como prescreve a legislação vigente, ambos são os únicos responsáveis por suas próprias contas eleitorais (abastecidas pelo valerioduto), não importando se em tempos e campanhas diferentes (ao governo ou ao Senado). Então, que as CPIs "mexam" com os dois. A esta altura, os tucanos pouparem Azeredo é um acinte. E, ao tornar-se imoral, o moralista vira um imoral muito maior do que o imoral que criticou.

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