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Monday, September 05, 2005

ENTREVISTA :Francisco de Oliveira Lula monitorado, política em coma

 Estado de S. Paulo

Não é risonho o futuro de um PT que corrompeu para se manter no poder e controlar o País

 

Por Laura Greenhalgh


Não seria justo dizer que o sociólogo Francisco de Oliveira é um crítico de ocasião do PT. Com a mesma fidelidade com que cobre a cabeça com seu boné de lã, Chico veste a roupagem do crítico sistemático - isso pelo menos desde 2002, quando a campanha presidencial de Lula alçava vôo rumo à vitória.

 

Tornou sonoras suas diferenças com um programa de governo que se comprometia a repetir a política econômica traçada por Fernando Henrique em dois mandatos. Chico não desiste de bater na mesma tecla. Acha que os índices de crescimento econômico celebrados hoje são medíocres e lamenta que na era Malan-Palocci a política tenha se tornado irrelevante diante do predomínio da economia.

 

Na cruzada para tirar a política da UTI, esse recifense de 71 anos trombou com os maus humores do PT encastelado no poder. Em 2003, Lula recusou-se a prefaciar o livro Reforma Política e Cidadania, editado pela Fundação Perseu Abramo, porque havia um artigo de Chico discutindo a autonomia do Banco Central. O artigo foi censurado.

 

Pouco depois, foi a vez do ministro José Dirceu ameaçar o companheiro de partido com um processo. Mas o processo veio mesmo com autoria de Delúbio Soares. O ex-tesoureiro do PT sentiu-se ofendido quando Chico comentou publicamente a notícia de que convivas para um aniversário de Delúbio lotaram 18 jatinhos. Dissabores tantos fizeram com que o acadêmico da USP e petista de primeira hora abandonasse o partido que viu nascer. Desfiliou-se.

 

Mas continua de prontidão, em defesa da política. Nessa entrevista exclusiva para o Aliás, Chico de Oliveira garante que o presidente já vive uma situação de impeachment. "Daqui para a frente, ele governará monitorado pelo PSDB e pelo PFL", diz.

 

Avalia que o PT, apesar das denúncias e dos traumas recentes, continuará a ser a maior máquina eleitoral da América Latina, "quiçá do mundo". Mas alerta que o lulismo pode ser o sinal de que há um perigoso processo de mistificação em curso. Lula, não sendo reeleito, pode virar o santo da devoção de milhares de brasileiros? Coisas que só a política explica.

 

Vive-se um processo de depuração da política?

 

Não é de depuração. O processo é de empobrecimento. E isso ocorre não em função da política, mas da economia. O único consenso que persiste nesses tempos difíceis, juntando diferentes setores, é o de que a crise não pode abalar a economia. Ou seja, a política tornou-se irrelevante diante da economia.

 

Isso é um fenômeno brasileiro?

 

Digamos que é uma tendência mundial, mas se reflete nos sistemas políticos de maneira diferenciada. Para sistemas políticos consolidados, o efeito dessa preponderância é menor. Em países como o nosso, de pouca consolidação, a dissolução da política tem efeito devastador, com possibilidade de crises recorrentes.

 

Hoje o cerne da crise é a corrupção porque o PT, ao ampliar seu arco de alianças em busca da governabilidade, acabou obtendo justamente a ingovernabilidade. Amanhã a crise pode ser de outra ordem, e a política, desgastada como está, não terá como rebatê-la. Há quem jure que o que segura o governo é justamente a economia. É o pior que poderia acontecer. Quem corrige as assimetrias de poder no sistema capitalista é a política! Ela deveria ser o instrumento para conduzir a economia, não o contrário.

 

Não tranqüiliza saber que a inflação está sob controle, o PIB cresceu, as exportações vão bem?

 

É ridículo nos gabarmos de que o país cresce à taxa de 3,3%. Quando a política determinava a economia, obtivemos resultados superiores. Mesmo no pior período de Sarney, quando a inflação alcançou 80% ao mês, a taxa de crescimento era quase o dobro da que temos hoje. Veja o que se passa na Europa: os países estão sujeitos a políticas monetaristas, políticas fiscais restritivas, moeda única, e o crescimento europeu é medíocre. Já os Estados Unidos, que não estão submetidos a regra alguma, têm taxas melhores do que as européias. O que se vê na Europa é a política garroteada pela economia.

 

O senhor tem dito que o PT se converteu numa máquina político-eleitoral.

 

Ele deu essa guinada em 1998, na segunda derrota de Lula para Fernando Henrique, portanto, sua terceira derrota em eleições presidenciais. Ali os pragmáticos ganharam o espaço que queriam. Já tinham conquistado espaço interno no PT, mas havia um elemento que os continha: o próprio Lula, cujo projeto pessoal era compatível com o projeto político do PT na sua origem. Lula segurou a gulodice dos pragmáticos, esses mesmos que hoje estão envolvidos em escândalos.

 

Só que, em 1998, a amargura da nova derrota por parte de Lula juntou-se ao ímpeto dos pragmáticos. Enquanto isso, a estruturação burocrática do partido crescia. Assim, o PT transformou-se nessa formidável máquina eleitoral.

 

Em 2002, o PT já estava nas mãos dos pragmáticos?

 

Inteiramente. Vou relatar dois episódios. Por essa época, num jantar na casa de Paul Singer, juntou-se um grupo de intelectuais do partido, como Antonio Candido, Singer e eu mesmo. Éramos militantes querendo externar uma insatisfação com os rumos que o PT tomava. Pois bem, nessa reunião, o atual deputado José Dirceu ouviu nossas ponderações e fez a seguinte declaração: "Nós ganharemos essa eleição de qualquer maneira". Depois, o mesmo se deu com Lula. Fomos debater com ele os rumos da campanha, no Instituto da Cidadania, e ele retrucou: "Vocês não sabem o que é perder três eleições. Não perderei a quarta".

 

Qual é o projeto dos pragmáticos?

 

Criar a maior máquina eleitoral da América Latina, talvez do mundo. E eu diria, sem medo de errar, que continuará sendo.

 

Mesmo com o partido enxovalhado de denúncias?

 

Continuará a ser uma máquina formidável. Partido de esquerda é diferente de partido de direita, e isso não foi inventado pelo PT. Partido de esquerda é formação organizada, metaforicamente é um exército de combate. Daí sua estrutura burocrática. O militante do PT, que integra essa máquina, tem duas fidelidades. A primeira é a fidelidade ao próprio partido. A segunda, ao líder. De acordo com esse modelo, entende-se por que a nomeação para os cargos do governo passaram pelo PT.

 

Isso justificaria o apego do deputado José Dirceu à chapa do Campo Majoritário?

 

Não só isso. Além das fidelidades às quais me referi, há muita gente lutando por motivos materiais, ou seja, para preservar empregos dentro dessa formidável máquina político-partidária que paga muito bem. Além disso, há bons empregos nas prefeituras petistas.

 

Para Dirceu, o que conta mais: o mandato ou o controle partidário?

 

Eu diria que ele gostaria de preservar tanto um quanto outro. Sabe que num partido como o PT a capacidade de comando é legitimada pelo mandato. Se ficar muito tempo longe do Congresso, o poder se esvai.

 

Foi definido pelos pragmáticos que, no governo Lula, o partido faria parte do aparato burocrático estatal?

 

Trabalharam para isso dia e noite. Essa é uma prática secular da esquerda: o partido agarra o Estado e através dele tenta controlar a sociedade. Mas era uma promessa transformadora no início do século 20, uma formulação mais hegeliana do que marxista, no meu entender. Para Hegel, chegar ao Estado era o ápice. Para Marx, não. Era o caminho que levaria, mais adiante, à dissolução do próprio Estado. A idéia comum era a de que forças coercitivas pudessem moldar a sociedade.

 

Qual o futuro político do presidente Lula? O que se diz é que provavelmente ele será preservado no poder, como forma de afastar as opções Alencar e Severino.

 

O impeachment político a Lula já foi dado. Ele não governa mais. E só chegará ao fim do mandato monitorado pelo PSDB e pelo PFL. Há quantos meses o Congresso está parado? Já não passa nada a não ser em acordo com esses partidos. Mesmo no caso da Previdência, a aprovação só veio porque a reforma, proposta na mesma linha de Fernando Henrique, contou com o apoio desses dois partidos. Então, o impeachment político já foi dado e só não vai haver o jurídico porque não interessa.

 

Repetindo, que futuro político o senhor vislumbra para o presidente?

 

Seguirá sendo um cacique do PT. Na tradição brasileira, ex-chefes de governo conseguem permanecer ativos na política. Quem imaginaria que Sarney manteria até hoje tanta influência política, tendo saído da Presidência com uma inflação na casa dos 80% ao mês? Lula tem mais chances porque o PT é muito maior que o PMDB.

 

Mas o presidente teria força eleitoral para se reeleger?

 

Difícil. O problema é que ele é o único candidato possível. Hoje o PT se transformou no partido do lulismo.

 

E o que é o lulismo?

 

É a combinação do carisma de Lula com essa vasta clientela que está sendo criada com programas como Bolsa-Família. O lulismo, se confrontado com a literatura latino-americana, é um populismo diferente do de Vargas, Perón ou Cárdenas. Estes fizeram de forma autoritária a inclusão dos pobres na política. Já o lulismo tira os pobres da política e os leva para o clientelismo. Alimentar esse lulismo é o pior cenário para o PT.

 

O senhor tem afirmado dois receios em relação ao PT: que ele seja dominado por uma guerra de gangues ou que ele se "peronize". Poderia explicar melhor?

 

O que chamo de peronização é o seguinte: Perón criou um arraigamento popular sem precedentes na América Latina. Vargas, perto dele, era aprendiz de feiticeiro. Quando acontece esse arraigamento e o líder desaparece, cria-se um vazio de relações entre o partido e as massas. Esse vazio então pode ser ocupado por lideranças menores que farão de tudo para disputar a clientela feita em torno do líder que virou mito. Foi o que ocorreu na Argentina. Menem usurpou a liderança peronista, transformou sua facção numa gangue e investiu com tudo contra os demais grupos.

 

Essa mistificação de Lula, a que o senhor se refere, teria a ver com o fato de que boa parte da população, hoje, recusa-se a acreditar que o presidente tinha conhecimento dos esquemas de corrupção em seu governo?

 

Sim. É como se ele estivesse blindado por um processo de mistificação, que está em curso. Mas, ao ir todo dia ao encontro da massa, Lula faz um jogo perigoso. É como se estivesse dizendo ao Congresso "não tenho maioria, mas tenho o povo". Isso é arriscado.

 

O senhor acredita que petistas investigados pelas CPIs serão, de fato, cassados?

 

Ah, algum tem de ser cassado.

 

E essas cassações terão efeito disciplinar no partido?

 

O efeito será pequeno. Há que contar com o efeito regenerador que virá da desfiliação voluntária de um grupo de deputados e senadores, como é o caso de Cristovam Buarque, que já anunciou sua saída.

 

O governo pode ganhar fôlego com o esvaziamento das CPIs?

 

Esse governo acabou. Será monitorado pelo PFL e pelo PSDB, que, a cada momento, vão tirar da cartola uma nova acusação. Do ponto de vista administrativo, resta um ano e meio de Presidência. Portanto, continuará como mero governo administrativo, sem capacidade de operar reformas.

 

Há tucanos dizendo que chegou a hora do PSDB disputar a Presidência sem as alianças do passado, com "chapa pura". Serviria para atrair os desiludidos do PT.

 

Até pode ser. Mas há dois fatores a considerar: primeiro é a velha reivindicação de modernidade que os tucanos fazem. Eles se vêem como a vanguarda do atraso. Essa ficção foi criada e é alimentada em São Paulo, daí o segundo fator: os tucanos se consideram os novos bandeirantes. Portanto, não cederão a cabeça da chapa, mas não querem seguir sozinhos.

 

O cenário seria propício a uma candidatura de FHC?

 

Não sei. Hoje ele pode ser vítima da maneira com que tratou seus adversários. Guardam-se imagens desagradáveis de Fernando Henrique desqualificando todo mundo, os neobobos, os jurássicos, com aquele ar de...

 

Ironia?

 

Ironia para você, aqui em São Paulo. O povo não entende esse negócio de ironia. É deboche. O tempo está mais claro para Serra, para um PSDB que não faria a política monetária de Malan nem as privatizações tal como foram feitas na época de FHC. O PSDB era um partido mantido em álcool canforado, mas Lula e essa crise deram-lhe vida nova. Foi vitamina na veia.

 

A derrota da prefeita Marta Suplicy para José Serra, no ano passado, já era uma avant-première do papel que São Paulo jogará na eleição presidencial de 2006?

 

Exatamente. São Paulo jogará um papel decisivo. Em primeiro lugar, porque tem o maior eleitorado. Em segundo, porque a opinião pública de São Paulo faz a opinião pública nacional. Mas veja bem: atribuo a derrota de Marta à rejeição a Lula, e não ao processo de "emplumagem" do PSDB. Naquele momento não havia isso.

 

A receita do governo Lula parece misturar uma política externa ousada, ou talvez "militante", uma política econômica ortodoxa e políticas sociais ineficientes...

 

Ineficientes, não. Pífias.

 

Qual o legado para o Brasil?

 

Legado marcante? Nenhum. Em primeiro lugar, a política externa que está aí não é uma invenção de Lula. A diplomacia voltada para o comercial começou lá atrás. Cresce há 40 anos a exportação de commodities. Essa disputa por uma vaga no Conselho de Segurança da ONU é idéia inventada por Fernando Henrique no primeiro mandato. E o Brasil tem colhido revezes: torrou uma candidatura para a OMC e acaba de torrar João Sayad para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento. A política econômica é continuísta, não oferece nada de novo. No campo social, o que se vê é algo próximo ao assistencialismo. Mesmo as políticas assistencialistas poderiam alcançar resultados se tivessem por trás um Estado desenvolvimentista forte. Mas isso não existe. Também não se pode progredir com as metas de superávit que são a obsessão do Palocci. E, por fim, um fator crucial: o PT pensou que poderia transpor as mesmas políticas sociais de suas prefeituras para o plano federal. Achou que política social federal é a soma das experiências municipais. Não é. A mudança de escala é decisiva.

 

Esta semana, Fernando Henrique apontou a falta de crença da população nos governantes. Com os partidos dá-se o mesmo?

 

Certamente. O risco maior da descrença dos partidos é que a imagem da política seja fortemente afetada. É senso comum no Brasil que os políticos não valem nada. O sujeito passa 20 horas numa CPI, trabalhando, e o povo acha que ele é malandro. A perda de confiança na política é mais grave do que a descrença no governante.

 

Vivemos o retrocesso da política?

 

Sem dúvida. Hoje o cidadão que vive de salário sabe ou sente que a única forma que tem de intervir no País é através da política. Por isso, é um desastre quando a política desanda. É a regressão da cidadania.

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