shared items

Sunday, September 04, 2005

O ex-patinho feio europeu Luiz Antonio Ryff

NO MINIMO

Certa vez, James Joyce (1882-1941) disse que pretendia com "Ulysses" fazer um retrato tão fiel de Dublin que "se um dia a cidade subitamente desaparecesse da face da terra seria possível reconstruí-la" com o seu livro. A multidão de fãs que refaz os passos do protagonista de "Ulysses" a cada 16 de junho, dia em que a história inteira transcorre, parece lhe dar razão. Mas a Dublin que a estátua em bronze de Joyce contempla é, ao mesmo tempo, muito diferente daquela em que o escritor nasceu, viveu e usou como cenário e matéria-prima para sua obra. Se ganhasse vida, certamente não reconheceria seus habitantes, que certa vez descreveu como "a mais inútil, irremediável e inconsistente raça de charlatães" que havia encontrado.

A estátua de Joyce está postada diante da antena (The Spire), o obelisco metálico modernoso de 121 metros e 128 toneladas fincado, desde 2003, na O'Connel Street, a mais ampla e famosa rua da cidade. Reputado como a mais alta escultura do mundo, o monumento é o símbolo da modernidade irlandesa, que transformou uma sociedade miserável em uma nação próspera e dinâmica – uma antítese da paralisia que aterrorizava o escritor. Não por acaso, a principal revista de economia do mundo, "The Economist", que anualmente elege os melhores países do mundo para viver, escolheu em 2005 a Irlanda. Seus critérios foram amplos e abrangem não só a renda, mas a satisfação da população e o bem-estar social – que inclui saúde, liberdade, desemprego, qualidade da vida em família, clima, estabilidade política, segurança pública, igualdade sexual, importância da vida comunitária.

Uma ironia e tanto para o lugar que durante décadas viu seus habitantes tentando abandoná-lo e deixar para trás uma perspectiva de miséria e sofrimento. Em um século, o país de emigrantes inverteu o caminho. Como milhões de seus conterrâneos nas décadas anteriores e nas subseqüentes, Joyce não via futuro na Irlanda e decidiu deixá-la em 1904. Se no passado a emigração era uma necessidade em uma nação incapaz de alimentar e criar empregos suficientes para sua população, hoje a taxa de desemprego ronda os 4%. E a imigração se tornou uma necessidade para que o ciclo de crescimento continue. Foi o país que mais cresceu na Europa nos últimos quinze anos e ganhou o apelido de "tigre celta" (referência aos tigres asiáticos), cunhado por um economista do banco Morgan Stanley, em 1994.

Para dar uma medida dessa reviravolta, a renda per capita irlandesa era de mais de US$ 33 mil em 2003 – mais de quatro vezes e meia a do Brasil. Foi um aumento de quase US$ 5 mil nos três anos anteriores. Para efeito de comparação, França, Alemanha, Inglaterra e Suécia tinham uma renda per capita que passava um pouco dos US$ 27 mil (dados: "The Economist"). Ou seja, todos bem atrás da Irlanda.

Entre 1988 e 1998, o país cresceu a uma taxa de 7,3% ao ano (com picos acima dos 10% ao ano). No mesmo período, a média da Coréia do Sul foi de 5,8%, a dos EUA ficou em 2,8%, a do Reino Unido alcançou 1,7% e a do resto da União Européia atingiu 2,0%. Para esse ano, a expectativa de crescimento da Irlanda é menos exuberante: apenas 5,1%. Para o próximo ano, é de 6%. Para os pessimistas, já seria o suficiente para comprovar o envelhecimento do tigre celta, mas continua sendo mais do que o dobro da previsão para o resto da Europa.

Enfim, à altura da tradição literária

Os especialistas atribuem o fenômeno à abertura da economia, uma das mais liberais do mundo. Além disso, os impostos são baixos e a mão-de-obra é altamente qualificada. A economia é baseada em exportações, principalmente de produtos químicos e farmacêuticos (mais de 40% do total), que são controlados inteiramente por capital estrangeiro.

Embora a Irlanda seja historicamente ligada à Inglaterra, da qual só conseguiu a independência há menos de um século, e seja integrante fundador da União Européia, seu mais importante parceiro comercial são os EUA. Sem os EUA, o tigre celta provavelmente já teria morrido de fome. Os EUA são seu principal comprador. De cada cinco dólares que vende, um é pago pelos EUA, que também são o maior investidor no país. E 80% das exportações irlandesas são produzidas por firmas de capital norte-americano presentes no país.

A transformação da Irlanda teve início nos anos 1960. Começou, então, a estancar a sangria da emigração de uma população que declinava sem cessar desde a metade do século anterior. Entre 1845 e 1847, a "grande fome" matara ou enviara para o exílio três milhões de pessoas – um terço da população na época. A adoção de incentivos a investimentos estrangeiros nos anos 50 e a entrada do país na União Européia em 1973 ajudaram a integrar a economia ao continente e proporcionaram um primeiro momento de enriquecimento. A falta de mão-de-obra fez com que muitos exilados voltassem ao país durante os anos 70. Mas os anos 80 foram de retração, o que levou a uma nova onda de fuga. Só em 1996 é que houve uma inflexão do fluxo migratório, com mais gente entrando no país do que saindo.

Mesmo assim, a população atual de 5,6 milhões de habitantes (4 milhões na república, que é independente, e o resto na Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido) é menor do que no século XIX, antes da tragédia da fome.

Só nos últimos anos a Irlanda adquiriu a pujança econômica à altura de sua tradição literária. São quatro prêmios Nobel: os poetas W.B.Yeats e Seamus Heaney, os dramaturgos Samuel Beckett e Bernard Shaw. Sem falar em Joyce, em Oscar Wilde, Jonathan Swift (autor de "As Viagens de Gulliver") e Bram Stoker (o criador de Drácula). Já o Duke de Wellington, que comandou as tropas inglesas que derrotaram Napoleão Bonaparte em Waterloo, nasceu em Dublin e nem por isso se considerava irlandês. "O fato de nascer em um estábulo não faz de você um cavalo", costumava afirmar com cavalariça delicadeza.

Mais controle da imigração

Muitos anseiam hoje por aquilo que o Duke de Wellington desprezava há 200 anos. Entre 1999 e 2003, a imigração de pessoas de fora da União Européia para a Irlanda cresceu 700%. O ano passado, o que menos recebeu imigrantes nos últimos seis anos, registrou a entrada de 50 mil. Parece pouco? É mais de 1% da população total do país. Seria como se o Brasil tivesse acolhido 2 milhões de estrangeiros em 2004. O resultado é que, hoje, mais de 10% dos moradores na Irlanda não nasceram lá (os principais grupos são originários da China e de países da Europa do leste e central). Por isso, a porta desse país famoso por seus emigrantes começa a ser fechada para estrangeiros. Pelo menos, para alguns.

Até o ano passado, a Irlanda era o único país europeu a garantir cidadania plena imediata a qualquer um que nascesse lá. A União Européia pressionou o governo para que endurecesse a lei. Um referendo mudou a Constituição e alterou a situação. A nova lei, mais rígida, passou a valer este ano e estabelece que, para alguém ganhar a cidadania irlandesa, os pais devem ser irlandeses ou, se estrangeiros, que morem e trabalhem no país há mais de três anos (estudantes e refugiados estão fora, por exemplo).

Na campanha para alterar a Constituição, o ministro da Justiça irlandês, Michael McDowell, disse que havia levas de estrangeiros chegando à Irlanda apenas para dar à luz, superlotando inesperadamente as maternidades. "Perceberam que é vantajoso ter filhos na Irlanda, já que a criança se torna automaticamente irlandesa e, conseqüentemente, cidadã européia", condenou. Isso quer dizer que automaticamente passava a ter os direitos de viver, viajar e trabalhar como os cidadãos de qualquer país que faça parte da União Européia.

Mas até a imigração oficial de países-membros da UE é preocupante. Segundo um porta-voz do Partido Verde, Ciaran Cuffe, desde a expansão da UE, em maio do ano passado, mais de 100 mil cidadãos dos dez novos Estados membros chegaram à Irlanda para trabalhar. "Isso significa que novas medidas devem ser tomadas imediatamente para assegurar que a Irlanda tenha um sistema de imigração organizado e eficiente", avalia Cuffe, que defende a adoção de cotas e um aumento do controle sobre as condições de trabalho dos imigrantes. "Temos mais pessoas checando licenças para cachorros do que inspetores de trabalho", lamenta.

Em busca de uma vida melhor

Uma dessas pessoas foi Agnieszka Lesik, 23 anos, uma polonesa que imigrou para a Irlanda pouco antes de seu país se integrar à União Européia, em meados do ano passado. Formada em sociologia, Agnieszka deixou a cidade de Chorzow, no sul da Polônia, para ir morar com a irmã mais nova, Magda, 21 anos, que já tinha emigrado antes para a Irlanda em busca de oportunidades de trabalho, atraída pelos bons salários e pelo desemprego quase inexistente (cerca de 4%, enquanto na Polônia ultrapassa 20% e é ainda maior entre jovens).

A mãe ficou sozinha na cidade de 300 mil habitantes. "Ela ficou triste, mas sabia que seria um futuro melhor para a gente", diz Agnieszka, que partiu com o namorado, Martin. O casal fez o percurso que dez outros amigos de infância da mesma cidade já haviam feito. Todos se reencontraram em Dublin.

O fato da população da Irlanda ter a maior percentagem de jovens na Europa – cerca de 40% têm menos de 25 anos - ajudou a integração, segundo Agnieszka. "Comunidades compostas por pessoas mais velhas tendem a ser mais fechadas. As que têm mais jovens costumam interagir mais com outras culturas", avalia ela, que também aprecia o contato com pessoas de cantos diferentes do planeta. "Adoro essa mistura. Na Polônia, isso não existe, 98% são poloneses e o resto é russo", compara.

"Aqui há mais possibilidades para os jovens. Na Polônia, mesmo com uma faculdade, você não consegue um bom emprego, uma boa remuneração. Aqui, com o que eu ganho, pago meu aluguel, faço compras, saio e até viajo. Na Polônia, não dava", diz ela, que divide um apartamento de dois quartos com o namorado e a irmã e está empolgada com uma viagem de férias que fará às Ilhas Canárias neste mês.

Se na Polônia a renda per capita não chega a US$ 5 mil, a irlandesa é mais de seis vezes maior. Como vendedora em uma loja de roupas na capital, ela consegue tirar 1.300 euros por mês (quase R$ 4 mil). Na Polônia, não ganharia 250 euros (R$ 750). E ainda vai aproveitar para fazer uma especialização em Relações Internacionais na Dublin City University.

Loura, de olhos claros, ela diz que nunca sofreu qualquer tipo de discriminação desde que chegou à Irlanda - algo de que muitos africanos não podem se gabar. "Nunca sofri nada. Mas você pode sentir que há muitos irlandeses chateados porque estrangeiros estão pegando os empregos deles", diz Agnieszka, que ainda não sabe se ficará para sempre na Irlanda. Mas tem certeza de que a Polônia faz parte do seu passado. "Definitivamente, para lá eu não volto. A Irlanda abriu muitas oportunidades para mim. Vou poder ter um emprego bom e bem pago."

Móveis de segunda mão

Essa confiança no futuro também é partilhada por Gerry Gentles, 46 anos, um motorista de táxi irlandês que diz ter uma vida melhor do que a que os seus pais tiveram. E afirma que a de seu filho está sendo ainda melhor. Gentles lembra que, ao se casar, a nova casa foi mobiliada com objetos de segunda-mão e utensílios repassados por familiares. Já o filho, assim como os amigos dele, pôde se mudar para uma casa em que tudo estalava de novo. E nem precisou casar para isso.

Gentles, que diz ter uma origem francesa perdida nos séculos, garante conviver bem com a questão recente da imigração. "Existem milhões de irlandeses espalhados em todo o mundo. Não podemos rejeitar as pessoas que vêm de outros países", justifica. Com efeito, há dez anos a então presidente irlandesa, Mary Robinson, estimou haver 70 milhões de descendentes fora do país (quase 20 vezes a população da ilha, descontado o território britânico ao norte).

Ele garante que os irlandeses convivem bem com os imigrantes estrangeiros, desde que venham para trabalhar e contribuir com o crescimento do país. "Os chineses trabalham duro. Você não os vê nas ruas mendigando", conta Gentles, que diz que os maiores problemas são com nigerianos. "Não somos racistas", afirma. "Mas eles têm maus modos. Nunca pedem 'por favor'. E há muitos nigerianos que vêm para cá apenas para pegar o dinheiro do serviço social e voltar para a Nigéria, onde vão viver como ricos", critica.

Mas esse dinheiro não vai deixar ninguém rico. Nem mesmo na Nigéria. Assistente político do Conselho de Refugiados Irlandês, Nicolau Yau, explica à reportagem de NoMínimo que cada refugiado recebe 19,10 euros por semana, se for adulto. Uma criança tem direito a 9,60 euros. É pouco para subsistir em um país europeu. E as mudanças recentes dificultaram as coisas. Desde maio de 2004, um refugiado que busque asilo deve ser residente no país há pelo menos dois anos para receber ajuda suplementar para aluguel. "Há uma completa falta de consciência da sociedade em relação aos refugiados e às pessoas que pedem asilo, especialmente no que diz respeito aos direitos delas", lamenta Yau.

No comments:

Blog Archive