o globo
Amigos perguntam como me sinto. Aliviado, angustiado, esperançado. Deixei o governo federal antes dos escândalos do mensalão, cético quanto aos rumos da política econômica. E sem a menor desconfiança de que havia tanta safadeza nas operações financeiras do PT. O governador Jorge Viana, do Acre, tem toda razão ao cobrar da nova direção do partido apuração urgente e punição dos culpados.
O alívio não me exime da responsabilidade histórica que me vincula ao PT, embora sem filiação partidária. Minha angústia só não é mais profunda porque conheço a trajetória da esquerda. Foi um choque Kruschev denunciar os crimes de Stalin, em 1956, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Houve suicídios de dirigentes, como relata Jorge Semprún em sua autobiografia. Não podiam supor que "a nova sociedade" tivesse sido erguida sobre a dor de tantos expurgos, massacres, prisões, torturas e fuzilamentos.
Nem por isso perdi a fé num outro mundo possível, no qual liberdade individual e justiça social se complementem, e a cidadania e a democracia sejam levadas à radicalidade — o que chamo de socialismo.
Experimentei muitas derrotas: a morte de Che na Bolívia, o fracasso dos grupos armados contra a ditadura militar brasileira, o terror da Revolução Cultural chinesa, a falência da Revolução Sandinista, acrescida de casos escabrosos de corrupção, a queda do Muro de Berlim, o fim do eurocomunismo?
"Sempre lutei do lado certo e perdi todas", declarou Antônio Callado em sua última entrevista. Não me dou o direito de tamanho ceticismo. Vejo conquistas na Revolução Cubana, na derrota dos EUA no Vietnã, no fim das ditaduras militares no Cone Sul, na criação do PT, no fortalecimento dos movimentos populares, como o MST, nos avanços de organizações indígenas, feministas, ecológicas, e de lutas contra discriminações sexuais e raciais.
Minha fé no socialismo nada tem a ver com os meus sentimentos religiosos. Funda-se na arraigada convicção de que o capitalismo é intrinsecamente inapto a construir um mundo de justiça e liberdade. Bastam os dados da ONU: somos 6,2 bilhões de habitantes no planeta, dos quais 2/3 vivem abaixo da linha da pobreza. O bem-estar dos países ricos resulta da cruel história de colonização e extorsão praticada sobre as nações da África, da Ásia e da América Latina e, hoje, prosseguida pela globocolonização neoliberal.
Meu socialismo nutre-se mais da comunidade primitiva dos cristãos, descrita nos Atos dos Apóstolos, que na teoria do valor. Sinto-me mais próximo de Proudhon que de Marx. Por isso, não chego a me abater com os escândalos e o rumo da política econômica.
Minha esperança não se ancora em teorias políticas, ideologias ou promessas eleitorais. Tem raiz ética: mais que qualquer escândalo de corrupção, envergonha-me, como ser humano, a miséria coletiva. Não escolhi a família nem a classe social em que nasci. Fui premiado pela loteria biológica. O que não é justo. Todos têm direito a uma vida digna. A desigualdade social me repugna. É uma ofensa à condição humana.
Recuso-me a aceitar que "sempre foi assim e não haverá de mudar". Não costumo ouvir isso da boca de quem foi injustamente privado de acesso aos bens mais elementares, como alimentação, saúde e educação. Ninguém escolhe a pobreza. Ela decorre de leis e estruturas injustas. Isso é o que precisa mudar.
Minha angústia não é com os atuais escândalos. É ver crianças barrigudas de vermes sem direito a uma infância feliz; a menina condenada à prostituição precoce; a mãe vendo o filho largar a escola para ingressar no narcotráfico; o pai desempregado sem poder sustentar a família.
Deus nos criou para viver num jardim, o Éden. A liberdade humana inventou a injustiça, que gerou a segregação e a exclusão. Não creio no deus que admite seus filhos divididos entre miseráveis e abastados. Comungo a fé de Jesus, que identifica Deus na face do oprimido (Mateus 25, 31-44).
Sei que não haverei de participar da colheita. Mas faço questão de ficar ao lado dos que lançam, ainda que em terra árida, as sementes de um futuro melhor.
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Saturday, September 10, 2005
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