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Monday, December 12, 2005

Sem medo e sem ódio MAURO SANTAYANA

JB
Sem medo e sem ódio



Quem conviveu com Tancredo Neves, sobretudo entre 1974 e 1984, naqueles dez anos de intervalo entre a espetacular vitória do MDB nas eleições parlamentares e a campanha para as diretas que conduziu ao governo civil, via colégio eleitoral, recorda-se de seu conselho aos companheiros: agir sem medo e sem ódio. Era preciso confrontar-se ao governo militar sem medo dos radicais de direita, que ainda estavam no comando de tropas, mas sem ódio. O ódio é diferente da indignação, que é criadora. O ódio, mais do que estéril, é destruidor.

Estamos, nesta sucessão presidencial, ameaçados pelo ódio e pelo medo. A velha e incansável direita, sob o pretexto da vingança contra os métodos que o antigo PT empregava na oposição, está disposta a partir para o tudo ou nada, no combate ao governo. O governo, por outro lado, em lugar de desprezar a provocação, quer compará-la à oposição venezuelana. Por mais vizinhos sejamos, e por mais nos sejam comuns os adversários externos, os dois países nada têm a ver, do ponto de vista de política interna, um com o outro. Lula faz uma homenagem a Bornhausen e a certos setores mais alucinados do PSDB, quando os compara aos conservadores da Venezuela. Eles não têm audácia para tanto, mas podem sentir-se estimulados a saltos mais irresponsáveis, se o governo não os deixar dentro dos próprios limites.

Quando o Brasil se encontrava no impasse, uma vez que a luta armada demonstrara impotência para a derrubada do governo militar, a saída imaginada por Tancredo e outros foi a de criar uma força de centro, de tal maneira poderosa, capaz de empurrar para fora do processo a extrema direita e a extrema esquerda. A solução, desde que os gregos tiveram aquela idéia, era a democrática. E a democracia, pensem o que pensarem certos "cientistas políticos", é o centro, o equilíbrio entre as forças sociais. Esse equilíbrio vacila historicamente. Em certas ocasiões, prevalece o pensamento conservador, puxando o centro para a direita; em outras, impõe-se o pensamento solidário para com os pobres, empurrando-se a linha de talvegue do curso histórico para a esquerda. A grande força do sistema democrático é a certeza de que a inteligência política sempre se orientará para o centro.

Naqueles dez anos, o presidente Geisel entendeu que era preciso reduzir a pressão de direita, que chegara ao seu ponto máximo durante o governo Médici. Se continuasse o confronto, estimulado pela vitória militar no Araguaia, o Brasil poderia isolar-se da comunidade internacional e se transformar em ditadura ainda mais sanguinária, como a da Indonésia ou da Alemanha nazista. Geisel, com coragem, mas sem perder a prudência, desarmou os bolsões, começando por São Paulo, onde a aliança entre os grandes empresários e os torturadores, por meio da Oban, ameaçava o seu grupo nas Forças Armadas. O ato final foi a demissão de Sylvio Frota e a confirmação de Figueiredo como seu sucessor. Tancredo e Geisel (e, depois, Figueiredo), junto com outros militares e civis, agiram sem medo e sem ódio, contra o ódio de uns e o medo de outros. A situação, hoje, é outra, mas o Brasil é o mesmo. Não conseguimos avançar muito na solução de seus problemas mais profundos, que se resumem na questão social, no encontro de um projeto nacional de desenvolvimento que não desestimule o capital mas não eternize a injustiça; que pense na exportação, mas não despreze um dos maiores mercados potenciais do mundo, o que se encontra em nosso próprio território.

Não podemos, a pretexto de combater a corrupção (que os regimes fechados escondem, mas da qual sempre se valem) colocar em risco as conquistas democráticas. Uma coisa é punir os peculatários, outra é manter os ritos democráticos. A corrupção é um caso de polícia. As eleições são assunto político. Não convém voltar ao ódio, e muito menos ao medo. Que pensem nisso os defensores da radicalização. O Brasil é o mesmo, mas as forças sociais internas não são as mesmas de 40 anos antes, nem a situação internacional é igual à do início dos anos 90, da queda do muro de Berlim e de ascensão do neoliberalismo no mundo.


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