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Monday, December 26, 2005

O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade

O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade
Por Reinaldo Azevedo

O Estadão me convidou para escrever um texto sobre as rampas antibandido que a Prefeitura de São Paulo construiu na passagem subterrânea da Avenida Paulista com a Dr. Arnaldo. O jornal sabe que apóio a ação. Não apenas aquelas rampas: eu cercaria todos os baixos de viaduto da cidade. Recomendo ao prefeito José Serra que, assim procedendo, imite as prefeituras petistas de Belo Horizonte e Santo André.  O texto foi publicado no sábado passado (clique aqui para ler). O jornal me informou que padre Júlio Lancellotti talvez escrevesse um artigo atacando a medida. Ele o fez ( clique aqui).

Eu e Lancellotti divergimos sobre rampas, catolicismo, teologia, ideologia, política... Como, em religião, eu sigo estritamente os ensinamentos da Igreja Católica, a começar do Catecismo recém-lançado, com apresentação de Bento 16, um de nós dois está fora da ordem. E posso assegurar, página sobre página da Bíblia (a oficial, não aquela que certos padres interpretam como querem — o livre exame do Texto Sagrado, diga-se, tem importância crucial no catolicismo há quase 500 anos...), que não sou eu. Além dos fundamentos, padre Júlio não deve ignorar, há os pilares que sustentam o edifício católico, que ele rói cotidianamente com sua atuação particularista, discriminatória e partidarizada.

Tive a impressão — e pouco me incomoda (direi adiante o motivo deste registro) — que ele leu meu texto antes de escrever o seu. As referências a algumas questões que levantei são explícitas. Não sei se o jornal lhe passou o meu artigo. Se o fez, está bem feito. É chato para o padre, que se torna apenas reativo. Em vez de desenvolver argumentos novos, fica numa postura puramente defensiva. A surpresa é a graça da vida. Ele não deve achar.

No mês que vem, terei um programa diário de TV, ao vivo. Não redigirei comentários previamente nem quero combinar as indagações que o interlocutor (interlocutora no caso) fará no ar. Ou afetaríamos aquela informalidade estudada que vejo em alguns telejornais e que me matam de vergonha. Só não vale me perguntar quantos quilômetros quadrados tem o Turcomenistão. Não sou o Google. O padre, pelo visto, gosta de um jogo combinado. Comigo não, violão. Quanto mais a quente, melhor.

Bom, vamos lá, de volta. Pobre Igreja Católica que já teve São Jerônimo, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino. E que agora tem Frei Betto, Júlio Lancellotti e Leonardo Boff — este botado pra fora, com o barulho habitual. Quem se interessar pela história da instituição saberá que foi sempre um suceder de ameaças de cismas. Ao menos dois fizeram história: o catolicismo oriental e o protestantismo. O resto se perdeu na poeira do tempo, em particularismos e maluquices várias. Assim, sei bem, os Lancellotis da vida, sem representarem uma ameaça à doutrina, tampouco são uma novidade.

Se sinto algum pesar pela Igreja, nem tanto é pelo risco, então, que ela corre com ministros dessa qualidade (de fato, ele é pequeno), mas sim pela indigência da argumentação, seja a racional, seja a teológica. É por isso que muitos fiéis preferem os truques de mágico de circo do interior de certos pastores neopentecostais a continuar no rebanho católico. E olhem que esses caras até falam línguas estranhas em seus cultos — o que também é indício do demônio, diga-se... O texto assinado pelo padre não faz sentido. É pior do que a glossolalia de araque desses picaretas que se dizem pastores. Nos dois casos, é evidente, o Espírito Santo passa longe. É pomba, mas não é burra.

Lancellotti começa negando que ele próprio e "as entidades" (que ele controla) façam o culto da miséria ou queiram os miseráveis na rua. Em seguida, ele dá um salto e defende que os mesmos miseráveis fiquem... na rua! Sua principal reclamação nada tem a ver com o bem-estar dos assistidos. Ele está bravo porque diz que a prefeitura agiu sem consultar as... "entidades"! Bingo! Eu estava mais certo do que imaginava: ele se considera o dono desse latifúndio e não aceita que ninguém invada o seu território. Os pobres são de Lancellotti como o céu é dos urubus. De olho (ou faro), como se sabe, na carniça ou na promessa dela, quando identificam um moribundo.

O padre comanda uma entidade  — se é diretor ou não, pouco importa — que recebe R$ 420 mil mensais da Prefeitura. Também é funcionário da Febem, o que pouca gente sabe. Não quero saber o que ele faz com o dinheiro que ganha sem trabalhar. Isso tudo poderia fazer dele um profissional da assistência social, mas ele preferiu ser um profissional da miséria. E noto à margem: já um profissional da assistência estaria impedido de ser um pastor, que deve antes cuidar de alimentar a alma de seu rebanho. Não me oponho, muito ao contrário, que este senhor vire um ongueiro ou um militante do PT. É o que eu acho que ele deve fazer. Mas que largue a batina.

Falo, claro, por metáfora ou metonímia. Todas as vezes em que o vi, ele estava sem a dita-cuja. Bento 16 me decepciona um pouco. Padre tem de usar batina. E de saber latim ao menos para ler a Vulgata, um latim para semi-analfabetos, que não permite pegar um Cícero de frente, é claro. Duvido que Lancellotti saiba até esse. Não sabe nada. Está ocupado demais em fazer a sua caridade autoritária para aprender alguma coisa.

A rampa virou apenas o aspecto mais vistoso de sua militância contra a gestão do prefeito José Serra. Ele se mobiliza contra todas as ações da Subprefeitura da Sé no Centro da cidade. É o coronel dos moradores de rua, dos catadores de papelão, das crianças que cheiram cola nas praças, dos menores ambulantes. Esse Mamãe Ganso da Ideologia da Miséria Organizada espalha as suas asas imensas para proteger os seus pobres e não aceita que ninguém os proteja do seu "amor".

Não adianta ele se fazer de ofendido comigo. Eu não dou a menor bola para o seu muxoxo. Se é padre e quer ajudar, que colabore com a Prefeitura de São Paulo e ajude a convencer os sem-teto a buscar abrigo nos albergues; se é padre é quer ajudar, que colabore com a Prefeitura de São Paulo e torne esses albergues locais, como direi?, catolicamente corretos: não porque se vai ministrar religião lá, mas porque se vai tentar garantir uma condição de vida condizente com os irmãos em Cristo, que somos todos aqueles que professamos tal crença.

Mas não! Lancellotti não vê mal nenhum em, por exemplo, satanizar a gestão Serra ou Andrea Matarazzo, subprefeito da Sé, que tem feito um trabalho exemplar na cidade, revitalizando o Centro e devolvendo-o ao Estado de Direito. É verdade: a prefeitura, sozinha, não consegue dar cabo da miséria. Ela deriva, diga-se, em boa parte, da política macroeconômica que Luiz Inácio Lula da Silva, um aliado do padre-coronel dos pobres, põe em prática.

Acho uma graça o beicinho de Lancellotti para o meu texto e o pito que ele dá no Estadão.  Vejam o que ele escreve: "Considero importante o debate sobre questões públicas com o pluralismo próprio da nossa sociedade que o jornal O Estado de S. Paulo quer garantir com total e ampla liberdade. Mas me causa estranheza e constrangimento que tal 'pluralismo' seja exibido à custa da desqualificação do interlocutor, com ofensas pessoais que mais parecem oportunismo que pluralismo". Não é bonito? Ele gosta do plurarilismo, desde, é claro, que seja aquele dos que concordam com ele. Lancellotti estava acostumado a falar sozinho. Ele ameaçava botar o seu bloco na rua, decretar a sua fatwa, e todos se recolhiam. Não havia ninguém que lhe dissesse o óbvio: ele se comporta como militante petista, não como padre; ele se comporta como um cultor dos valores da miséria, não como alguém que se organiza para combatê-la.

Eu não o desqualifico como pessoa. Não o conheço e não quero conhecê-lo. As humanidades que ele estreita no peito como indivíduo não me interessam. Eu questiono e, com efeito, desqualifico a sua ação como sacerdote — que considero sectária, particularista e anticatólica — e a sua atuação como militante político. Quando o Centro da cidade era conhecido como Cracolândia, com os miseráveis, incluindo crianças, largados ao relento, seqüestrados pelo tráfico e consumidos pelo crack, sob o olhar benevolente da gestão Marta Suplicy, eu nunca o vi protestar. Ao contrário: era papagaio de pirata da prefeita. Foi seu cabo eleitoral. E quero que ele diga que estou mentindo, com a mão posta sobre a Bíblia.

Não, padre! Eu nada tenho contra o senhor. Apenas lhe sugiro que deixe o Poder Público fazer o seu trabalho. A sua Igreja Católica não é mais Estado. Deve ser parceira nas obras de ação social, oferecendo — e jamais impondo! — o humanismo cristão como norte ético das ações do Estado. Não é o que o senhor vem fazendo. Ao contrário: pretende arrostar com este Estado, satanizá-lo, submetê-lo à expiação pública. Quando o senhor falava sozinho na mídia, nunca apontou a parcialidade. Agora que tem uma voz contrária à sua dividindo espaço no jornal, faz-se de ofendido porque eu o estaria "desqualificando". E me acusa de oportunista. Desde quando bater em padre com fama de caridoso rende popularidade? O senhor fique tranqüilo. O senhor continuará a ser convidado para seminários em que se discute o Brasil do século 25!!! Enquanto houver miseráveis que lhe façam a fama, a sua fortuna crítica estará garantida. Há demanda no mercado para o tipo de produto que o senhor oferece. Ademais, as suas virtudes de marqueteiro são inequívocas. Em pior situação fico eu, que lhe dou a chance de posar de vítima.

Segundo entendi, e já caminhando para a conclusão, Lancellotti prefere não responder ao que realmente importa no meu texto — por que ele não ajuda a tirar as pessoas da rua? — e rezar por mim, jogando toda a responsabilidade de sua atuação nas costas da Igreja Católica, que aprovaria as suas atitudes. Aprova? Ela tem sido historicamente tolerante com desvios — das mais variadas naturezas — e é bem provável que acolha Lacellotti como uma daquelas ovelhas que, embora teimosas, não devem ser deixadas pelo meio do caminho. A esperança é a de que acabe se integrando. É um erro. Não vai acontecer nunca. O capítulo das heresias é dos mais fascinantes da história do catolicismo.

Infelizmente, a Igreja é um lugar propício ao acoitamento de vocações que preferem se exercer nas sombras. O padre, é óbvio, é um político. Eu já o teria obrigado a voltar para o seminário e estudar de novo os Textos Sagrados e a doutrina ou a deixar a Igreja e se filiar ao PT. Segundo entendi, ele ora por mim. O que dizer? Não sou arrogante a ponto de dispensar as orações. Quero crer que sejam em favor do meu bem-estar. Ou ele não ocuparia os ouvidos do Altíssimo. Deixo-lhe uma recomendação: não faça de seu perdão um clichê e da oração em favor dos "caluniadores" um gesto de soberba. É pecado. Até porque, padre, eu nem o calunio nem o delato. Eu apenas o relato.

Ministério Público
Li no Estadão que o Ministério Público Estadual vai instaurar um inquérito civil público para apurar as razões que levaram a Prefeitura a construir as rampas. Noticia o jornal: "O promotor da Infância e Juventude, Vidal Serrano, disse que os argumentos da subprefeitura não o convenceram. 'Se é um problema de segurança, não vai adiantar, porque as pessoas mudam para a quadra seguinte e continua a ter assalto.' Para investigar o caso, o promotor atuará em parceria com outra promotoria criada para cuidar especificamente do povo da rua. A promotora responsável será Fernanda Leão de Almeida. 'Pediram que alguém especializado no regime jurídico de moradores de rua trabalhasse junto', explicou Fernanda." Ora, "inquérito" para quê? Esses ilustres representantes do MPE já sabem tudo e já deram a causa como transitada em julgado. Nunca se conformaram em ser promotores. Sua vocação sempre foi a de ser juiz. E juizado absoluto. De última instância. Até o fim dos tempos.

Sugiro, doravante, que a Prefeitura, a cada vez que for instalar um sinal de trânsito para evitar acidentes, consulte antes o promotor Serrano. Caso se chegue à conclusão de que colisões continuarão a acontecer, é de se perguntar: "Sinal para quê?". Tudo isso já foi muito além do ridículo. Como diria Millôr, esse pessoal é realmente um espanto: sempre que chega ao limite, avança mais um pouco.


[reinaldo@primeiraleitura.com.br] Publicado em 26 de dezembro de 2005.

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