Por coincidir com o calendário das eleições, 2006 já seria um ano especial. Porém, pelas particularidades do que estará em jogo na escolha do sucessor de Luiz Inácio Lula da Silva, ele tem um pedigree comparável ao de 2002, quando, pela primeira vez, chegou ao poder no país um grupo de esquerda, sacramentado pelo voto, ungido pelo estado de direito, sem qualquer ruído institucional. A mais civilizada transição de poder de que se tem notícia na República, de Fernando Henrique Cardoso a Lula, amplificou ainda mais o peso histórico do que ocorreu há três anos.
Os rumos que tomará a campanha eleitoral indicarão se, como se espera, a sociedade sairá das eleições enriquecida politicamente, e a nação mais madura e confiante para enfrentar outros quatro anos de um período da História em que o equilíbrio do poder econômico e político mundial passa por intensas transformações. Vive-se um ciclo em que um erro de visão, um passo mal dado na definição de prioridades poderá custar, para qualquer país, perda irreversível de terreno na disputa por mercados globalizados, por investimentos cujo destino é decidido cada vez mais em escala planetária, e por tecnologias disponíveis apenas para nações capazes de absorvê-las e aperfeiçoá-las.
O PT e o presidente entram na fase final de governo contabilizando ganhos e também perdas consideráveis e evidentes. Na coluna dos lucros, Lula pode creditar, apesar de todas as ambigüidades, o apoio dado até agora à única filosofia de política macroeconômica capaz de manter a inflação sob controle e permitir que a economia aproveite de alguma forma os bons ventos da economia mundial, os melhores desde o final da Segunda Guerra.
Mesmo o mais obtuso dos opositores dessa política não pode deixar de reconhecer os mais positivos indicadores externos já acumulados pelo Brasil — a dívida, bandeira dogmática de radicais, desapareceu dos slogans ideológicos simplesmente porque começou a encolher. Não pode também deixar de admitir que a inflação tendia a fugir de controle em 2003, e só não fugiu — para o bem dos pobres que muitos desses críticos se arvoram defender — porque as políticas monetária e, em segundo plano, fiscal, não permitiram.
No alentado capítulo das mazelas, o PT, e por tabela Lula, carregam as marcas do escândalo do valerioduto, em que o partido destruiu a imagem de gladiador único da moralidade pública, de detentor do monopólio da lisura na política.
Até porque as CPIs continuarão a operar, será inevitável o escândalo ocupar lugar de destaque na campanha. E mesmo que as comissões já tivessem encerrado os trabalhos, há cassações a deliberar no plenário — para ajudar a manter o escândalo na agenda político-eleitoral. É natural e mesmo desejável que a ética na política — ou a falta dela — seja discutida na campanha. Como se constatou, o PSDB e o PFL também deixaram impressões digitais nos esquemas ilícitos. Um mal com essa extensão não pode ser esquecido.
Mas é preciso incluir nessa agenda um ponto nevrálgico para a nação: qual o Estado que queremos? Não é pergunta de efeito, tampouco descolada do cotidiano do brasileiro. Pelo contrário. É saber dos candidatos o que pensam sobre os impostos — excessivos — e sobre como o dinheiro da sociedade deve ser gasto: em quais políticas públicas, sob que sistemas de controle e de avaliação de resultados. Faturar e o que fazer com o dinheiro em caixa são questões usuais no setor privado. Não, infelizmente, num Estado de longa tradição de avidez na arrecadação de impostos e sólida e ativa ineficiência na aplicação do que coleta.
A campanha de 2006 coincide com o esgotamento de um modelo fiscal que jogou todo o peso do ajuste sobre o contribuinte e no corte de investimentos — em prejuízo, como se tem visto, da infra-estrutura do país. Foi por isso que a carga tributária atingiu sufocantes 37% do PIB, depois de dar um salto de cerca de dez pontos percentuais desde o início da era FH. O que também permitiu o aumento intencional dos gastos correntes — de 9% do PIB em 1980, eles seriam o dobro vinte anos depois.
O próximo presidente terá de escolher entre manter esse modelo, e com isso estimular a informalidade na produção e no mercado de trabalho — e ainda ameaçar o país com a volta da inflação — ou retomar reformas deixadas pelo caminho (completar a da previdência do funcionalismo, propor mais uma para o INSS, a trabalhista etc.). Além de rever as distorções nos gastos sociais, um instrumento à disposição das tentações populistas, muito fortes em ano eleitoral.
Não há soluções mágicas para recolocar o país na rota do crescimento a altas taxas, da qual se desviou na década de 80, e jamais a reencontrou. Uma parte dessa operação de retorno está cumprida, com o controle da inflação — uma conquista a ser preservada. Falta o trecho restante da expedição, relacionado à modernização do Estado. A campanha eleitoral pode e deve servir de bússola nessa jornada.
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