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O bruxo e o feiticeiro
Na igreja de Notre Dame de Betharram, no sul da França, aos pés de uma ladeira de um quilômetro que reproduz a via-crúcis, o escritor Paulo Coelho sentou e chorou. "Olha o milagre! Uma porta que estava fechada se abriu, no primeiro dia do ano!" Era a porta da igreja, que se abriu porque Coelho interceptou um religioso betharramita passeando no pátio interno. Mais um minuto e o padre Firmino, que estava se retirando para seus aposentos, já estaria dentro de sua casa. Coelho não o encontraria, a porta não se abriria e então... sabe-se lá!
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Nada é por acaso, repete sempre o mago-escritor. E aquela porta se abrir, no dia 1º de janeiro, em que ele está recebendo José Dirceu na França e levando-o para conhecer justamente o complexo de Betharram -ordem religiosa que instalou um colégio em Passa Quatro, interior de MG, no Brasil, onde o ex-ministro de Lula estudou -só pode ser um sinal de Deus.
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Aflito, o escritor procura Dirceu para que ele entre na igreja. Mas o ex-ministro desapareceu na ladeira da via-crúcis. Sozinho, subiu o caminho de um quilômetro, cumprindo o calvário de Cristo. Parou em 13 das estações, representadas por capelas - e terminou num cemitério. Agnóstico desde os 13 anos, rezou.
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Depois de alguns minutos, Dirceu desponta no horizonte. Já chega "governando". "Vou mandar instalar uma lápide para os padres de Passa Quatro", diz. Critica a má-conservação do lugar. Conta que parou na estação da traição de Judas. "E vi ele lá." E como era esse Judas? Barbudo? Dirceu solta uma gargalhada. Chamava-se Judas Lula da Silva? Dirceu ri mais ainda. Não responde.
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O pequeno grupo -Coelho, sua mulher, Cristina Oiticica, Dirceu, o escritor Fernando Morais, o escritor Mario Rosa e sua mulher, Dayana -visita a igreja. Coelho reza. Dirceu compra uma imagem de Nossa Senhora de Betharram para a mãe. Faz uma doação de 50 (cerca de R$ 138) para a igreja. O padre tira fotos. Abençoa o grupo. "Viva Passa Quatro!", diz. "Viva Passa Quatro!", repetem todos.
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Dirceu e Morais entram no Audi de Coelho para pegar a estrada rumo a Tarbes, cidadezinha do sul da França onde todos estão hospedados. Ela é vizinha de Saint Martin, vilarejo de 300 habitantes onde Coelho vive com Cristina, aos pés dos Pirineus.
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Coelho está no auge da vida -e isso há quase duas décadas. Não pára de vender livros, arrebatar fãs por todo o mundo (é editado em 150 países, em 59 idiomas) e ganhar dinheiro. Muito dinheiro. Acaba de trocar a editora Rocco pela Planeta por 800 mil -ou R$ 2,4 milhões. O próprio carro em que roda agora pelas estradas francesas carregando José Dirceu é um exemplo.
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A Audi pediu a ele que fizesse um texto de 6.000 caracteres para ser divulgado exclusivamente no balanço a ser distribuído aos acionistas no começo de 2006. Quanto Paulo queria em troca? "Um Audi", respondeu. A empresa mandou o último modelo. Precinho: 100 mil (R$ 280 mil). Fernando Morais fez os cálculos: cada letra -e cada espaço em branco - de Paulo Coelho custa 16 (R$ 44). "Me disseram que o [Ernest] Hemingway recebia U$ 5 por palavra", informa Coelho, cheio de orgulho. Recentemente ele foi convidado para dar uma palestra. Cachê: 60 mil (R$ 166 mil). "Eu não quis", diz. "Não gosto de falar."
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Há alguns meses, ele comprou a casa do vizinho para derrubar e poder ter a vista livre para os Pirineus. Coelho fez a proposta de compra sem saber o preço da casa. "J.P Morgan já dizia: quem pergunta o preço é porque não pode comprar", diz o escritor.
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Por que um homem no auge do sucesso, um ídolo da classe média do Brasil e do mundo, recebe em sua casa, para as festas de fim de ano, um homem que vive hoje o ápice de um fracasso político, que acaba de ser cassado, que virou uma espécie de "demônio" para essa mesma classe média - e que nem seu leitor é? Os dois mal se conhecem, foram aproximados pelo escritor Fernando Morais, biógrafo de ambos. "Já beijei a lona. Sei como é", diz Coelho. "Tenho que ter solidariedade." E arremata, dedo em riste: "Mohamed Ali já dizia: todos os que já estiveram no topo, e beijam a lona, sabem como voltar." Dirceu um dia pode voltar. E Coelho o terá ajudado quando ninguém a ele estendia a mão.
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O ritual de despedida de 2005 e de saudação do novo ano de Coelho durou três dias e três noites. Na sexta, 30, o escritor recebeu com um jantar, em sua casa de três quartos, sala, copa, cozinha, toda feita de madeira, pedra e vidro, os amigos que chegavam de várias partes do mundo para as festas.
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Foram 20 pessoas, que vieram da Polônia, da Finlândia, da Croácia, da própria França e do Brasil. Amigos próximos do casal Paulo e Cristina: os editores e os médicos dele, o cabeleireiro dela, vizinhos de ambos -e uma feiticeira, Jaqueline, que vive na floresta dos Pirineus.
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Na "vitrola", só Roberto Carlos. Ao lado, na mesma sala, o computador onde Paulo escreve. "Falaram no Brasil que o Dirceu viria para a minha mansão. Isso é mansão?", dizia o escritor. O terreno tem 80 mil m2.
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O último a sair foi o escritor Mario Rosa, com quem Coelho conversou até as 5h. Os dois só se conheciam por e-mail. Coelho é fã do livro de Rosa, "Síndrome de Aquiles", que fala do mito que foi derrotado por um único erro. O mito Paulo Coelho é cuidadoso. "Quero o Mario cada vez mais próximo."
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No dia 31, o casal levou os amigos ao restaurante Le Petit Gourmand, de Tarbes. Na ceia, ravióli de foie gras, coquilles St. Jacques com trufas e endívias caramelizadas, carne com risoto de aspargos, sobremesas de chocolate. Dirceu sentou-se ao lado do escritor. Lá pelas tantas, no ambiente tomado pela fumaça de cigarros e charutos, Coelho perguntou: "Você tem projeto de voltar ao poder?" E Dirceu: "No governo Lula? Não."
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Dirceu vai tirar dois anos sabáticos. Diz que tem dinheiro guardado. Foi convidado para ser colunista de um jornal do Rio, "por um bom dinheiro". Pretende ganhar também com o livro que fará sobre o governo Lula. Coelho avalia Lula. "O Hugo Chávez [da Venezuela] se posiciona, o George Bush se posiciona. O Lula ainda está no meio do caminho. O Hugo Chávez tomou o espaço dele. Ele precisa se posicionar", diz. "Tá querendo muito do Lula", brinca Dirceu, baixinho.
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À meia-noite, todos foram para a gruta de Lourdes. Chovia. Pouco se via, a não ser, ao longe, a própria gruta, e dentro dela, Nossa Senhora. Dirceu quis ficar até o fim da missa. "Deus não existe. Mas vai que existe, né?", brincou.
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No dia 1º, a ceia foi na casa de um amigo de Coelho, Fréderic Bonomelli, em Hibarete, outra cidadezinha da região, com 138 habitantes. Ele fabrica presunto do porco Le Noir de Bigorre, o porco negro, primo do pata negra espanhol. A noite foi de vinhos, boa comida e cantorias, de músicas francesas da "confraria do porco" a canções brasileiras de Coelho. "Quando caminho pela rua lado a lado com você me deixas louca", cantavam as mulheres. "Eu nasci há dez mil anos atrás...", cantavam os homens.
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No fim da noite, a pedidos, Paulo Coelho cantou "Gita", dele e de Raul Seixas: "Eu sou o medo do fraco/ A força da imaginação/ O blefe do jogador/ Eu sou, eu fui, eu vou". O escritor pediu um brinde a Raul Seixas. Todos levantaram seus copos. Os rituais de ano novo tinham terminado.
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