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Thursday, October 06, 2005

A crise e as esquerdas Marco Aurélio Nogueira*

jb



Por ter em seu centro o Partido dos Trabalhadores, um dos grandes personagens da história mais recente da esquerda brasileira, a atual crise política nacional sugere a imagem de um fracasso.

Bem mais que derrota das esquerdas, porém, ela expressa a derrota de uma certa esquerda, que se projetou nacionalmente no correr dos anos de 1990 e que se manteve em ascensão desde então. Pode-se, é claro, dizer que seu fracasso também afeta os democratas progressistas, no mínimo porque eles estiveram enlaçados pelo mesmo movimento promissor de mobilização social e de ímpeto reformador que embalou a chegada de Lula ao governo. Mas essa é uma avaliação genérica e imprecisa demais, e não propriamente justa. Não foram todos os progressistas que endossaram as escolhas feitas por Lula e pelo PT. Mesmo entre os petistas houve quem se pusesse em outra posição, como sabemos. As correntes de esquerda que souberam manter, ao longo do tempo, sua autonomia de pensamento e ação, sua identidade, perderam pouco, ou mesmo quase nada.

Não há, nunca houve e nem haverá um único partido de esquerda. A esquerda jamais honrará seu nome se vier a ser concebida como expressão monolítica do lado ''bom'' da sociedade, o lado dos puros e dos abnegados. Ela é um movimento plural e só faz sentido se estiver apoiada numa visão democrática e pluralista. Partidos de esquerda podem ser uns mais fortes que outros, uns mais inteligentes que outros, mas não podem trabalhar com base em considerações hierárquicas que distingam os ''melhores'' dos ''piores'', a não ser que sejam vistos como encarnações arrogantes da virtude e da pureza. Quando um partido ingressa em um estado de vanglória extrema, sai do reino razoável da política e passa a estabelecer relações instrumentais com todos os demais atores políticos, que passam a ser, para ele, objetos descartáveis, manipuláveis ou neutralizáveis. Nem amigos, nem inimigos, apenas um dado da vida.

O principal trunfo da esquerda repousa na capacidade de formular uma proposta de vida social e de produzir, na política, encontros e agregações em termos democráticos amplos. Não se trata propriamente de ruptura, mas de mudança em sentido forte, uma transformação a ser ativada de mil maneiras, conforme as circunstâncias históricas e as capacidades sociais. A meta é eliminar a desigualdade social, combater as formas abusivas de apropriação privada, regular politicamente o mercado, organizar uma comunidade política efetivamente democrática, ou seja, coisas que, nas condições atuais, não podem ser pensadas como conquistas imediatas, a serem ''arrancadas'' por um movimento social intransigente e duro. Despojada desse atributo - um projeto, uma proposta de vida -, a esquerda reduz-se à ''normalidade'' política, esvazia-se ideologicamente e tende, por isso mesmo, a ser capturada pelo lado escuro do sistema, que desde sempre ela procura combater.

A condição da esquerda é ser combatida pela direita. Por isso, é retórica vazia acusar ''golpes da direita'' em toda e qualquer manobra de oposição a um partido de esquerda. No caso brasileiro atual, por exemplo, é inconsistente a alegação de que haveria um ''ódio de classe'' contra o PT para justificar erros de condução, falhas operacionais ou ausência de idéias no governo Lula, muito menos para acobertar práticas estranhas ao republicanismo. O PT não foi a única nem a principal força a lutar pela democracia no Brasil, a democracia não começou com ele nem acabaria se a legenda eventualmente desaparecesse. Sua ascensão política e eleitoral deve ser justamente saudada como manifestação da voz popular tradicionalmente reprimida e preterida, mas não pode ser exagerada, sob pena de não encontrar chão empírico em que se sustentar. O extraordinário capital político acumulado pelo PT foi dilapidado por erros grosseiros de condução e de compreensão política. As ''forças conservadoras'' não podem ser responsabilizadas por isso.

O PT nunca foi, nem é atualmente, a sigla mais atacada e mais caluniada da política nacional. Antes dele, os comunistas amargaram a ferocidade de todos os estigmas e preconceitos, alguns dos quais postos em circulação por correntes que se abrigavam no próprio PT. É fato que o PT está sendo alvo de uma tentativa mais ou menos articulada de cerco e pressão, aquele esforço que o senador Bornhausen, dizendo-se ''encantado com a crise'', sintetizou na infeliz expressão ''agora a gente vai se ver livre dessa raça por pelo menos 30 anos''. Isso, porém, não deveria ser visto como algo estranho à lógica da competição política, nem dá aos petistas a condição de vítima preferencial, contra a qual sempre se ergueriam todas as forças do mal. Além do mais, nem todos os que combatem o PT podem ser confundidos com os planos ''liquidacionistas'' do senador Bornhausen e deveriam, por isso mesmo, ser vistos pelos petistas como amigos, colaboradores não necessariamente intencionais do pesado trabalho de autocrítica que terá de ser empreendido, sem o qual, aliás, as esquerdas terão um obstáculo a mais a lhes bloquear a retomada que tanto se faz necessária.

*Professor de Teoria Política da Unesp.

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