Artigo: Luiz Fernando Ribeiro de Carvalhio/Thiago Ribas Filho |
Correio Braziliense |
27/3/2006 |
O ministro Nelson Jobim tingiu com cores sombrias sua inesquecível passagem pela presidência do STF. Ali assinalou com as tintas fortes da anomalia uma indelével circunstância: teve parceiros e correligionários, em vez, como seria natural, de destinatários da tutela constitucional de direitos fundamentais. Daí a melancólica despedida da corte e da sua presidência, de que também se afasta sem estimular o rufar dos tambores pelo tributo de qualquer homenagem. Recentemente, ao reagir com irritação a críticas que lhe foram dirigidas por sua conduta em julgamento que buscava protelar a votação pela Câmara Federal da perda do mandato do então deputado José Dirceu, o ministro Jobim afirmou que "os idiotas perderam a modéstia". Essa reação, pela falta de moderação, poderia ser considerada imprópria para um magistrado, cuja altivez e firmeza nunca devem, pela própria natureza de suas funções, prescindir da serenidade. Em se tratando do seu autor, na verdade corresponde ao triste retrospecto de atuação que coloca a mais alta corte de Justiça do país a serviço de sua biografia e dos propósitos de uma recorrente carreira política, como unissonamente destacado pela imprensa nacional. Já no discurso de posse na presidência do STF, afirmara, impropriamente, o intento de uma parceria com o Poder Executivo, em tosca assimilação do princípio da harmonia entre os poderes — que pressupõe intocado o complemento da independência. A obsessão pela governabilidade não pode turvar a visão do Judiciário no tocante a seus primordiais deveres de tornar efetivas a supremacia da Constituição e a aplicação da Justiça. Nesse passo, desprezando a valoração do Judiciário como efetivo — e não apenas retórico — poder do Estado voltado à garantia dos direitos fundamentais do cidadão, pode ser lembrado o voto do ministro Jobim na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que, em nome do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, questionava a taxação dos aposentados com nova contribuição previdenciária, sem a contrapartida de qualquer benefício, onde alardeou que, em detrimento daqueles princípios da segurança jurídica, amparava sua posição em elementos da matemática atuarial. Resumindo: escolheu esses últimos como predominantes em relação àqueles, chegando a afirmar — em postura que escandaliza o constitucionalismo contemporâneo e até a jurisprudência do próprio Supremo — que a instituição da referida contribuição por meio de Emenda Constitucional não poderia ser revista pelo STF. O raciocínio torna praticamente inócuo o chamado núcleo imodificável da Carta da República, formado pelas cláusulas pétreas, assim denominadas exatamente por sua imunidade aos projetos, mesmo que revestidos pela forma de emendas à Constituição, de eventuais maiorias parlamentares ou governamentais. Também soou estranho o anúncio ao país — já ocupando a presidência do STF — de que foram enxertados no texto final da Constituição dispositivos que não chegaram a ser votados, situação que não denunciou na época própria, como era de seu dever na qualidade de relator-adjunto da Constituinte, agindo de forma que a muitos estarreceu pela notícia de uma fraude no processo de votação da Lei Maior. Há pouco tempo, a imprensa noticiou a decisão do presidente do STF de suspender a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico do presidente do Sebrae — e amigo/provedor do presidente Lula — Paulo Okamotto, decidida pela CPI dos Bingos. Mais uma liminar que teve abalada a presunção da seriedade de seus motivos. Justificou-se que a liminar decorreria de jurisprudência do tribunal, que veda a quebra de sigilo bancário com base em matéria jornalística, mas, segundo mencionado na própria decisão, o requerimento de quebra teve suporte não somente em reportagens, mas também no depoimento do próprio Okamotto à CPI, o que por si só balança sua fundamentação. Ainda mais grave se mostrou a movimentação político-eleitoral do ministro diante de insistente veiculação na mídia impressa e eletrônica, especialmente ao longo do último ano, de sua eventual candidatura à Presidência ou Vice-Presidência da República, encabeçando chapa do PMDB ou compondo coligação deste último com o PT, tudo culminando com a divulgação do seu nome em recente pesquisa eleitoral como detendo 1% de intenções de votos para a Presidência da República. Embora notória a irrelevância do percentual, a gravidade decorre do simples fato da circulação do nome na pesquisa, diante da taxativa proibição constitucional e legal do exercício de atividade político-eleitoral por magistrado. Enquanto isso, seu personagem reagiu de maneira dúbia, ora dizendo ter como único intuito o "desejo de servir ao País" (O Globo, sábado, 03/12/05), ora argumentando não ter definido seus projetos futuros. Nesse campo, não existe liberdade sem concomitante responsabilidade, pois ao legítimo direito de escolha de seu futuro político deveria preceder a renúncia à Presidência do STF, com a aposentadoria do cargo de ministro, sob pena de abastardar-se aquela presidência em palanque eleitoral e trair-se a indisponível isenção político-eleitoral de seus juízes. Essa dubiedade de comportamento se conjuga com o inexplicável retardamento — por períodos variáveis de três a oito anos — do exame de Adins, algumas ainda do período do governo Fernando Henrique Cardoso, com julgamentos suspensos no STF em decorrência de pedidos de vista do ministro Jobim que, não sendo o relator dos processos, na prática impediu o prosseguimento e a conclusão dos mesmos. Ora, sabendo-se que tais ações dizem respeito às questões mais sensíveis para o governo e para grandes conglomerados financeiros e grupos empresariais, a quem e para que serviram esses imobilizados pedidos de vista, inibidores do julgamento de matérias de elevado interesse público (e também privado)? Ainda mais quando a protelação provém do pregoeiro-mor do choque de gestão e de eficiência nos serviços judiciais, certamente incompatível com pedidos de vista que se perenizaram a ponto de desafiar a intervenção dos mais capacitados oftalmologistas, além de merecer de um outro integrante do STF a observação, ainda que formulada genericamente em tributo à elegância, de terem se transformado em "perdidos de vista". Foram essas as indagações a que, em interpelação judicial que lhe foi dirigida no âmbito do STF, por magistrados, advogados, juristas, professores e lideranças da sociedade civil, e que já produziu (ufa!) o resultado de alguns tardios chamados à pauta, o ministro Jobim não respondeu frontalmente, embora acusando o golpe quando se declarou em rede nacional candidato apenas a advogado. Nem mesmo a recente notícia da aposentadoria em março apagou a pertinência das perguntas ou supriu a necessidade de esclarecimentos afastados da arte dos sofistas. A falta de uma resposta direta apenas trombeteou a perda irremediável do tom, até pela coincidência do anunciado afastamento do STF no final de março, antes do término cronológico de seu mandato na presidência e, curiosamente, bem a tempo de atender à exigência de desincompatibilização para filiação partidária e lançamento do nome em convenções para indicação de candidatura nas próximas eleições. Mais recentemente, essa conduta de tormentosa qualificação dentro das normas da civilidade também se revelou no esdrúxulo comportamento do presidente do STJ, ministro. Edson Vidigal, principalmente no estranho episódio da guerra de liminares em torno das prévias para lançamento de candidato próprio do PMDB à presidência da República. Na ocasião, uma liminar do ministro Vidigal para suspender as prévias foi cassada pelo ministro Hamilton Carvalhido, sendo, logo em seguida, restaurada pelo primeiro atendendo a instâncias da ala governista do partido, que tem como uma de suas expressões máximas o senador e ex-presidente da República José Sarney, de quem o ministro Vidigal fora assessor de imprensa quando aquele governara o Maranhão (1966/70) e que, após uma longa convivência política com seu ex-assessor, participou de sua eleição para deputado federal pela Arena/MA em 1978, vindo em dezembro de 1987 a nomeá-lo ministro do antigo TFR, hoje STF (Superior Tribunal de Justiça). Como se não bastasse, além de toda essa trajetória marcada por coincidências que tornam implausível a isenção do ministro Vidigal para a concessão e restauração da referida liminar, este, segundo fartamente noticiado pelos meios de comunicação, entre o momento da concessão e o da restauração da medida voltou a se declarar candidato ao governo do Maranhão no pleito deste ano. Consta que, a exemplo do ministro Jobim, também já pediu sua aposentadoria, mas o simples fato de se encontrar em campanha para mandato eletivo no Executivo evidentemente o torna no mínimo suspeito para as decisões que proferiu em matéria de alta voltagem eleitoral. Se, como afirmou o ministro Jobim, os idiotas perderam a modéstia, certamente a nação, já tão castigada pela atual temporada de escabrosa corrupção em sucessão de escândalos no Executivo e no Legislativo, também não aceita a afronta de um eventual exercício de autocrítica nem da perda do pudor pela arrogância. Diante desse quadro tão sombrio, é inadiável que vozes responsáveis — principalmente do Judiciário e da imprensa — se levantem, como já vem ocorrendo, para combater o descalabro, tornando oportuna a lembrança de um pensamento de Norberto Bobbio em artigo intitulado O dever de sermos pessimistas, publicado na imprensa italiana em 15/05/77: "O pessimismo hoje, seja-me permitida mais esta expressão impolítica, é um dever civil. Um dever civil porque só um pessimismo radical da razão pode despertar com uma sacudidela aqueles que, de um lado ou de outro, mostram que ainda não se deram conta de que o sono da razão gera monstros.". Que a posse dos ministros Ellen Gracie, primeira mulher a ocupar o cargo de ministro e agora a presidência do STF, e Barros Monteiro, na presidência do STJ, assinale o início de nova era quando o sono da razão, para recuperação da credibilidade e do prestígio do Judiciário e da própria democracia atingida por condutas somente explicáveis por desmedida ambição pessoal, não tenha espaço para produzir sua escandalosa geração. |
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Monday, March 27, 2006
Tribunal não é palanque: o retorno da razão
Tribunal não é palanque: o retorno da razão
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