shared items

Wednesday, February 07, 2007

Raposas, leões e macacos em loja de louça por Carlos Alberto de Melo -

blog Noblat


A astúcia é o oxigênio das raposas. Já a força impõe respeito entre os leões. Fundamental é compreender o momento de ser um ou outro. No mais, lembrar que esperteza demasiada come o esperto; que força desmedida se degenera em estupidez ou covardia. O equilíbrio entre a raposa e o leão supõe a sabedoria que não está em toda parte, pois é arte. E é, na justa medida dessa arte que se constituem os "príncipes" – coletivos ou individuais – capazes de expressar e realizar a vontade coletiva. A política nacional, no entanto, tem sido a negação desse equilíbrio. As raposas caem em armadilhas e os leões amedrontam-se com os lobos. Onde falta visão sistêmica, sobram fisiologismo e dispersão de forças. Num emaranhado de interesses, pretensas raposas e leões autoproclamados se confundem; metamorfoseiam-se em agitados macacos em lojas de louça.

As primeiras semanas do novo mandato de Lula provam isto. O presidente, parece, esterilizou os 58 milhões de votos que lhe garantiriam rugir como leão. Sem ser candidato, poderia passar ao largo das armadilhas da disputa eleitoral; ser raposa e estabelecer outra lógica; uma lógica republicana. Mas, por auto-suficiência ou excesso de zelo, negou-se a enfrentar o sistema político. Ao contrário, passou a admiti-lo com naturalidade (Tarso Genro). Acreditou que acordos à base de distribuição de recursos – cargos e emendas – bastam. Foi raposa tímida quando deveria ser leão. Metamorfoseou-se num presidente, pelo menos temporariamente, enfraquecido; transformou o PT num forte.

O certo é que, em dezembro, Lula poderia ter arriscado um gesto de grandeza ou de ousadia: retirar dos quatro anos de experiência um projeto de verdade; chamar a sociedade e as forças políticas para sua construção. Sob o argumento de recuperar a capacidade de ação do Estado, propor a profunda reforma; com a legitimidade das urnas, acuar as resistências corporativas dos lobos e estabelecer negociações públicas para ocupação de espaço vis a vis a composição da governabilidade. Poderia impor perdas e definir ganhos; fosse o caso, denunciar tentativas de coerção; aproveitar a segunda chance que teve e estabelecer novo parâmetro de convivência política.

Mas verbos no futuro do pretérito não contam histórias. Objetivamente, o presidente cedeu aos conchavos; voltou-se para dentro insistindo numa fixação pouco consistente (o crescimento de 5% ao ano), quando deveria apresentar um diagnóstico mais preciso: a "trava" do desenvolvimento está menos na infra-estrutura e do que nas instituições. Governar, afinal, não é apenas abrir estradas. Por fim, centralizou a articulação para a qual jamais demonstrou disposição; barganhou espaços por fidelidades a um acordo despolitizado e sem projeto; construiu uma coalizão com 11 partidos, confundindo parceiros e agregados. Sequer o ministério conseguiu nomear. Entediou-se, foi descansar na praia.

Já o PT, naturalmente, olhou para o seu futuro; foi raposa e foi leão. O primeiro desafio era atravessar a tormenta da crise do mensalão; não ser desmoralizado pelas urnas; manter uma bancada robusta. Fez-se de morto e, por fim, desmoralizou os coveiros: a tempo, percebeu que o presidente armava a independência; montaria o governo como bem quisesse, articulando a sucessão, sem amarras. O partido seria o coadjuvante de agora e, talvez, apenas o figurante de 2010. Um PT Fraco, um Lula forte! O fim do amanhã.

As raposas agiram nas brechas do descuido do presidente. A sacada foi simples: confrontado, Lula recuaria como fez tantas vezes no passado, em sua história com o PT. Das bases de apoio Lulista, algumas rachaduras poderiam ser exploradas. O PMDB, por exemplo, poderia ser atraído pela ampliação dos mesmos argumentos que o fizeram aderir a Lula: espaço na máquina. No mais, o fiel Aldo Rebelo, não cooptável, talvez pudesse ser removido. Foi o que ocorreu; Chinaglia entrou em cena.

Arlindo jamais expressou amor sem limites a Lula. No PT, manteve-se eqüidistante de centros de poder que pudesse manietá-lo. Raposa, construiu a própria relevância se comportando como o fiel da balança. Sabendo da força somatória de sua "minoria", articulou interesses distintos: de Dirceu ao "campo majoritário"; de Marta Suplicy à esquerda do partido; dos ressentidos aos desenvolvimentistas; dos náufragos do mensalão aos cristãos-novos do PMDB; dos aliados menores aos apetites maiores; do baixo clero aos governadores Serra e Aécio – na lógica do conflito interno do PSDB. Quando não houve alternativa, configurou-se no leão: bateu duro em Aldo, nas pretensões de Ciro Gomes; encarou a mídia; seduziu setores do governo; obteve a transigência constrangida de Lula. Venceu, mas não o fez sozinho.

O novo presidente da Câmara terá que honrar as retribuições combinadas; os acordos que lhe garantiram o atual relevo. A caneta – que nomeia e demite – pode pertencer, mas, agora, a Arlindo pertence o relógio que define o timing das votações e a pauta que lhe convier. Daqui por diante, será a ele, Arlindo – em acordo com o PT e com o PMDB – a quem Lula terá que recorrer, negociar e ceder. Tudo o que o PT sonhava era com essa chance de "diálogo" com Lula. No mais, se o presidente cedeu a Severino Cavalcante por que não o faria com o próprio partido, na mesma posição de força? A lógica do aparelho, como gás, tende se expandir pela atmosfera.

Possivelmente, a vitória de Chinaglia põe o PT mais forte do que fora no primeiro mandato. As circunstâncias mudaram: a dependência estratégica em relação a Lula diminuiu – pela primeira vez, Luiz Inácio não será candidato; as condições de "adesão" ao PT são muito maiores: manejando os instrumentos do Executivo, o partido terá ao seu lado pelo menos meia-dúzia de legendas, já em 2008; a agenda da estabilidade está vencida e um vazio que genericamente vem sendo chamado de "agenda do crescimento" abre espaço para uma ampla gama de experiências; as condições econômicas do país são incomparavelmente melhores e o espectro da crise já não intimida e nem apela tanto à moderação; os focos de resistência ortodoxa dentro do governo são muito menores que em 2003 e estão, neste momento, enfraquecidos e sem perspectivas.

O que o partido fará com isso, ninguém é capaz de saber. Como se vê, tudo tem se transformado com rapidez e, afinal, o PT é o PT. Quem poderá assegurar que permanecerá assim, leão ou raposa até o fim? Inúmeras vezes, dormiu príncipe e acordou macaco na loja de louça. Por que agora seria diferente? Só a história dirá.

Carlos Alberto de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. 

No comments: