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Tuesday, May 20, 2008

millor

Pra não dizerem que não 
tenho estudos musicais.
Minha musicalidade começou aos 10 anos, ouvindo magnífico grupo coral que todo anoitecer apresentava seu espetáculo num brejo perto de minha casa, no Meyer. Entre o cair do sol e as 7 da noite centenas de sapos e rãs coaxavam ali, em absoluta afinação. Com a pontuação ocasional de um percussionista regente – o sapo-martelo. Até hoje sei distinguir o coaxo mais grave do sapo do coaxo mais agudo das rãs.

PRA NÃO DIZEREM QUE NÃO FALEI DO BERIMBAU.

Aprendi, professor. O berimbau tem uma corda só. E, além disso, o senhor, Coordenador do Curso de Medicina da UBCUB, Universidade Baiana de Conhecimentos Universais Baianos, diz que os baianos, como o berimbau demonstra, também têm um neurônio só.

Claro, o professor é um reaça. E nunca ouviu falar do baianamente correto. Por isso o mundo, que é como os baianos consideram a Bahia, veio abaixo. Sobretudo, sem trocadilho, a Baixa.

O professor é fascista, racista, vai ver nem é baiano. E muito menos Sotero, esse sumo da bahianidade.

Como sou a favor dos fracos e oprimidos (existe baiano fraco e oprimido? Pelo que mostra a televisão, isso é coisa do passado), fui estudar o berimbau.

Tem berimbau de peito e de boca, o de boca é chamado jew-harp e já ouvi muito bem tocado. O comum é feito de um arco de madeira que vai de ponta a ponta, e uma cabaça usada para ressonar. Sempre achei que isso, a cabaça, fosse uma moeda, mas deixa pra lá, ignorância é comigo mesmo.

Mas veja uma coisa, Magnífico: pra inventar ou tocar um instrumento desses, ao contrário do que o senhor diz, o baiano tem que ser um gênio, ter pelo menos um neurônio e meio.

E nunca é demais advertir, professor: depois que os anglo-saxões inventaram o politicamente correto, é preciso extremo cuidado com as palavras. Pois, todos sabemos, semanticamente (e juridicamente!) não há mais negro safado, nem judeu ignorante, nem gay promíscuo, nem machão gaúcho dizendo, de costas pro atacante: "Mas pode me chamar de Odete!". Também é proibido vilipendiar a mineirice dos mineiros, que transformaram o "pão-pão-queijo-queijo" em pão-de-queijo, muito menos corrigir a petulância literária dos maranhenses que chamam São Luís de A Atenas brasileira, reduzindo-a a A apenas brasileira. Nem se deve dizer que Pelotas é um paraíso gay, como dizia Lula ao passar por lá quando disputava a Presidência com Fernando Collor (está na internet, em vídeo, Lula rindo, dizendo prum assessor: "Aqui tem muito viado!"). Falar nisso, houve uma época, infame!, em que Pelotas concorria com Campinas no intenso tráfico da Transviadônica. Felizmente esse tempo da indigna liberalidade lingüística está ultrapassado.

Agora, de louro você pode dizer o que quiser. Está aí a gloriosa "Loura Burra" (acho que foi o Fawcett quem inventou), que, todos sabem, tem apenas dois neurônios. Sendo que só usa um. O outro é estepe.

Pois o Magnífico não podia ignorar que o berimbau é um instrumento heróico. Um meio de comunicação escrava pra impedir aos senhores o entendimento de mensagens. Há sempre um lado sagrado em relatos históricos, que, é claro, não acontece com instrumentos burgueses como um Stradivarius, um Steinway, e até mesmo um violão de nove cordas.

Bem, a meus coleguinhas de imprensa sempre aconselho: neste país não se pode ser muito – nem mesmo pouco – sutil. Quando escrevemos qualquer coisa irônica, não podemos deixar de botar ironia! (entre parênteses, claro).

Senão os outros não percebem, professor, e, como agora, lhe jogam na cara a grandeza baiana, de Castro Alves a Jorge Amado, de Caymmi a Caetano, sem falar do Antônio Pitanga, extensão Camila, na verdade mais Pitanga do que baiana.

E também sem esquecer Ruy, o maior coco da Bahia. Mas botar Ruy nessa história é covardia. Pois foi ele que, em Haia, perguntou: "Em que língua querem que eu fale?". É verdade que, lá no fundo, havia um  incorreto safado propondo: "Em baianês, rapaz!".

E, pro leitor não pensar que estou defendendo o famigerado professor, eu, historiador das quantas, fui buscar, no meu próprio campo de interesse, a defesa da corda única do berimbau. Está lá, precisamente  bem ilustrada, no álbum de Edward Gorey, The unstrung harp.

Desenhista e pensador extraordinário – sempre fora dos trilhos, como sói – pouco conhecido mesmo entre profissionais, Gorey tem seu mundo único. Está além de Freud, à margem do onírico, sinistro e delicadamente ameaçador, com criaturas assustadoras num universo hipervitoriano. Você nunca viu nada parecido. E peça a Deus não ver.

Em Unstrung Harp, de 1953, Gorey já se antecipava à defesa do berimbau, apresentando sua maravilhosa harpa... sem nenhuma corda! O principal personagem de Gorey, Mr Earbrass, usa o instrumento para escrever uma novela.

Tenho certeza de que, em 1958, cinco anos depois, Jorge Amado se inspirou em Gorey, e escreveu Gabriela usando um berimbau.

Fundi a cuca de alguém? Tudo bem. Eu só vim ao mundo pra isso.

Revista VEJA | Edição 2061 | 21 de maio de 2008

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