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Tuesday, November 29, 2005

Duas teses sobre o retorno do velho barbudo


Cometeram um erro todos aqueles que, apressadamente e em grande número, passaram a desqualificar e descartar as contribuições daquele gênio

José Eli da Veiga, Valor (29/11/05)

São tantas as notícias importantes divulgadas pelos jornais diários que nada poderia ser mais quimérico do que supor que seus leitores as assimilem, ou simplesmente as armazenem. Ao mesmo tempo, não há nada de grave nessa constatação, pois também são inúmeras as que perdem qualquer importância em poucos dias, ou semanas. Daí a necessidade de que se esteja atento para o resgate das poucas pérolas que, de vez em quando, surgem em algumas matérias.

É o caso da bem-vinda entrevista do historiador Fernando Novais, publicada domingo, dia 20/11, no caderno "Mais!" do jornal "Folha de S.Paulo". Sobretudo, por ter destacado uma profecia que vem sendo sistematicamente subestimada por grande parte da "intelligentzia" brasileira: a volta de Marx. "Quanto mais o capitalismo estiver implantado em todo o mundo, maior deve ser a volta de Marx. As pessoas estão enterrando Marx de forma apressada, mas seu retorno terá repercussões na história", disse Novais.

Evidentemente, nada pode ser mais discutível do que esse emprego do verbo "implantar" quando se evoca a globalização da sociedade burguesa. Mas é muito comum que deslizes semânticos desse tipo ocorram em entrevistas, mesmo quando são concedidas por experientes comunicadores. O que realmente interessa, portanto, é seu conteúdo: qual poderá ser o sentido desse retorno de Marx após tão significativo período de imersão? Um período não apenas de débâcle do socialismo (que para alguns seria apenas do "real", e não do imaginário), mas também de fortalecimento objetivo e subjetivo do liberalismo.

Pelo menos duas teses podem ser avançadas sobre essa volta. A primeira é que tal movimento dependerá de clara separação entre o Marx cientista e o Marx utópico. A segunda é que esse retorno não significará um renascimento de qualquer das vertentes marxistas que proliferaram durante o século passado. Duas teses brilhantemente expostas em livros que, para variar, permanecem inéditos em língua portuguesa. A primeira, por Guido Carandini em "Un altro Marx. Lo scienziato liberato dall'utopia" (Roma: Laterza, 2005). E a segunda por Étienne Balibar em "La philosophie de Marx" (Paris: La Découverte, 1993 e 2001).

A abertura do livro de Carandini é um espirituoso diálogo fictício com Marx ressuscitado, no qual este se defende da acusação de que no fundo teria sido apenas o mais influente agitador revolucionário dos tempos modernos. Empenha-se em persuadir seu interlocutor de que o tribunal da história optou por julgá-lo somente pelo que escreveu e fez com o boné de utopista revolucionário, e não pelo que estudou e publicou com o boné de cientista social. Não se esquiva, portanto, em reconhecer que pode ter sido vitimado por aquilo que a psicologia depois passou a chamar de dupla personalidade. Por um lado, anunciava uma eminente crise final do sistema capitalista, a revolução proletária e o advento do comunismo. Por outro, sustentava que seria necessário o desenvolvimento universal do capital para que coisas do gênero se tornassem possíveis. Afirmava que o sistema capitalista deveria se estender por todo o mundo, e assim promover imenso desenvolvimento, condição indispensável ao nascimento de uma forma superior de sociedade. Por isso, não nega que foram posições incoerentes, já que a primeira queria o comunismo com toda a urgência, enquanto a segunda o projetava para um futuro bem distante.

Com certeza será muito difícil proceder a essa separação entre as duas "personalidades" de Marx. Há mesmo quem afirme que tal projeto está fadado ao fracasso, pois a mistura de ciência com utopia faria parte do próprio genoma de todos os seus escritos. Todavia, tal ceticismo parece estar sendo desmentido por alguns dos que, contra a corrente, perseveraram no estudo de sua obra. E um ótimo exemplo foi dado por Balibar em bela síntese crítica da herança legada por Marx. Seu principal objetivo é explicar porque e como Marx continuará a ser lido no século XXI. Não como um monumento do passado, mas como autor atual, tanto pelas questões que coloca, como pelos conceitos que propõe. E essa leitura mostrará, segundo o autor, que a importância de Marx para o pensamento contemporâneo é maior do que nunca, mesmo que jamais possa existir uma filosofia marxista, como quiseram seus principais seguidores.

É verdade que os sinais de uma volta de Marx ainda têm sido raríssimos na comunidade que se dedica à ciência econômica, além de também escassos no âmbito das demais ciências sociais aplicadas. Nessas áreas, parece que ainda será longa a ressaca decorrente daquela pesada embriaguez dos anos 1970. Surpreendentemente, o inverso pode ser dito sobre o que ocorre neste momento com a evolução das pesquisas em ciências naturais. Principalmente entre os que se dedicam ao conjunto de fenômenos que podem ser caracterizados como "SDNL": sistemas dinâmicos não-lineares. Temática que infelizmente foi vulgarizada mediante a duvidosa designação de "teoria do caos".

Das áridas e herméticas abordagens cosmológicas do físico Ilya Prigogine às divertidas lições do biólogo Stephen Jay Gould, passando pelos experimentos interdisciplinares do californiano Instituto Santa Fé, liderado por Murray Gell-Man, algo muito impressionante salta aos olhos. A confirmação que suas mais avançadas conjecturas sobre "complexidade" e "emergência" trazem para as reflexões de Marx sobre dialética materialista, posteriormente tão vilipendiada.

Certamente ainda vai ser muito difícil separar o joio do trigo com a necessária clareza. Isto é, bem distinguir idéias marxistas nascidas dos equívocos utópicos do próprio Marx, do conteúdo dessa revolução científica por ele realizada, que só pode ser comparada àquela simultaneamente feita por Darwin. Mas, já está evidente o erro cometido ao final do curto século XX por todos os que, apressadamente e em grande número, passaram a desqualificar e descartar as contribuições daquele gênio que há exatos 150 anos começava a rabiscar sua "introdução a uma contribuição à crítica da economia política".

José Eli da Veiga, professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP e autor do livro "Desenvolvimento Sustentável - O desafio do século XXI" (RJ: Ed. Garamond, 2005), escreve mensalmente às terças. Página web: www.econ.fea.usp.br/zeeli/


A DESCOLONIZAÇÃO DA HISTÓRIA

Luiz Carlos Murauskas - 14.nov.2005/Folha Imagem
Fernando Novais, que está lançando "Aproximações - Estudos de História e Historiografia"


AUTOR DO SEMINAL "PORTUGAL E BRASIL NA CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL" (1979), FERNANDO NOVAIS AFIRMA QUE SÉRGIO BUARQUE REPRESENTAVA A CLASSE MÉDIA E DIZ QUE LULA QUER CONCILIAR GEORGE W. BUSH COM HUGO CHÁVEZ

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Seu nome é um mito nos corredores do departamento de história da USP. Sua obra -apesar de constituir-se de praticamente um só livro e artigos dispersos- é uma das mais importantes interpretações panorâmicas do Brasil depois das realizadas pela chamada "geração de 30" (Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.).


Gilberto Freyre tinha uma visão nostálgica do país; já para Caio Prado, o Brasil era aquilo que ele podia vir a ser


Já sua fama é de acadêmico polemista e altivo, especialmente arisco com jornalistas, embora afável com alunos e orientandos. E foi apenas por insistência destes últimos que Fernando A. Novais, 72, concordou, embora a contragosto, em publicar "Aproximações - Estudos de História e Historiografia" (Cosacnaify, 440 págs., R$ 69,90), uma reunião de textos e entrevistas, como comemoração do seu septuagésimo aniversário. "Não estava na hora, podem achar que depois disso não vou fazer mais nada, mas vou sim", diz.
Novais é autor do clássico da historiografia brasileira "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)" (Hucitec), que abriria novos caminhos para a historiografia nacional. Publicado em 1979, o livro -que foi originalmente sua tese de doutorado- desdobra a idéia de "sentido da colonização", formulada por Caio Prado Jr., para entender o processo de formação do Estado brasileiro.
Seu autor, entretanto, não seguiu um percurso acadêmico padrão. Novais aposentou-se sem completar a carreira, deixou o departamento de história da USP para lecionar no Instituto de Economia da Unicamp, em 1986, e, principalmente, nunca se acostumou com o padrão contemporâneo de produção e publicação dos intelectuais. "Escrevo pouco, mas gosto do que escrevo."
Nos final dos anos 50 e princípio dos 60, Novais integrou os Seminários Marx, que contava com a participação de outros acadêmicos ilustres, como José Arthur Giannotti, Bento Prado Jr., Roberto Schwarz, Fernando Henrique Cardoso e Paul Singer. Hoje ele se diz cansado de falar sobre essa experiência. "Criou-se todo um folclore em torno desse grupo que, no fundo, é muito divertido", diz.
Conhecido como um dos menos dogmáticos daquele grupo, sempre defendeu um diálogo entre a chamada história marxista com a Nova História, tendo sido inclusive criticado por organizar a coleção "História da Vida Privada no Brasil" (Cia.das Letras).
Sem dar importância aos ruídos causados por suas escolhas, Novais aparece em "Aproximações" apostando na volta do marxismo ("Quanto mais o capitalismo estiver implantado em todo o mundo, maior deve ser a volta de Marx. As pessoas estão enterrando Marx de forma apressada, mas seu retorno terá repercussões na história").
Eleitor de Lula, o historiador afirma que vê o governo de Lula como um "mistério total" e que não consegue compreender o projeto do presidente nem a razão pela qual ele estaria tentando conciliar partes inconciliáveis, como Conceição Tavares com o FMI ou Chávez com Bush.
Novais recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva na manhã da última segunda-feira, em sua casa, em São Paulo. O historiador falou sobre os rumos da historiografia brasileira e do país, além, é claro, das polêmicas com outros intelectuais. Leia abaixo os principais trechos.
 

Folha - No encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) de 2002, às vésperas da eleição presidencial, o sr. disse à Folha que votaria em Lula no segundo turno e que ele inauguraria uma era de "socialismo universal do reino de Deus". Como vê seu prognóstico hoje?
Fernando Novais -
O Brasil está assombrando o mundo. Não consigo perceber qual é o projeto de Lula, se é que ele tem projeto. O que parece, após três anos de governo, é que ele quer estar acima de tudo e de todos e fazendo mediação entre opostos inconciliáveis. Ele quer fazer o meio-de-campo entre o FMI e [a economista Maria da] Conceição Tavares (risos). Fazer o meio-de-campo entre Malan e Serra é possível.
Agora, entre o FMI e a Conceição Tavares é impossível! Ele quer fazer conciliação entre o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] e a UDR [União Democrática Ruralista]. Ele quer conciliar o [George W.] Bush com o Hugo Chávez, e isso para não falar em Fidel Castro.
Agora, diante de tudo isso, ele continua; é um mistério total. É um mistério completo. Como isso é possível? E mesmo fora do Brasil ele ainda tem prestígio. Apesar dessa loucura completa. Ou seja, de certa forma eu tinha razão, pois disse que o governo Lula ia dar numa coisa difícil de entender. E é isso que aí está.
Mas ainda vamos ver se o pessoal dá certo.

Folha - Por que escreve tão pouco?
Novais -
Escrevo com dificuldade e, portanto, pouco. Há gente que escreve com facilidade e pode escrever muito. Ou não. Há uma compensação para isso: eu gosto do que escrevo. E não me arrependo. Aliás, tenho certa implicância com pessoas que renegam a obra. Acho que uma obra que alguém faz e que daqui a alguns anos diz não ter nada a ver com aquilo, é porque foi uma irresponsabilidade ter publicado.
Mas há outras coisas além do meu temperamento. Sou de uma geração em que ainda não havia a globalização nem a americanização que hoje grassam de maneira insuportável. Tínhamos o padrão francês, onde o sujeito levava dez, 15 anos para fazer uma tese. Uma tese de doutorado é a obra da vida de uma pessoa.
Essa fúria de publicar, que vem dos EUA, não estava disseminada na minha época. Há um certo descompasso entre a minha geração e a atual. Eu não sou tão exceção na minha geração.

Folha - A produção do sr. em termos de artigos é vasta, porém nunca parece ter havido a preocupação de reuni-la em um livro. Essa iniciativa se deve agora a seus alunos?
Novais -
É comum, no fim da carreira, que as pessoas façam uma antologia do foi publicado e está disperso. O livro surgiu de uma insistência dos meus alunos, quando eu estava próximo de completar 70 anos. Logo de saída, disse a eles que não queria saber de comemorações.
Como me pressionaram, estabeleci condições. Uma delas é que não poderia haver nenhuma menção de comemoração à idade, nem na orelha do livro, nem no folder, em lugar nenhum.
Então estabeleci que faríamos um seminário que não fosse aberto ao público, apenas para os orientandos. A partir do seminário, surgiu a idéia de fazer o livro. Não gosto desse tipo de recolha porque dá a idéia de que daqui para a frente não vai sair mais nada, e eu quero escrever ainda umas três ou quatro coisas que acho importantes nos próximos anos. Sim, porque depois dos 80 ninguém escreve mais nada.

Folha - O que se perdeu e o que se ganhou com a profissionalização do ofício do historiador? Concorda com o fato de que seu livro "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)" tenha sido, talvez, uma das últimas grandes análises ao estilo que fazia do Brasil a geração de 30? Depois disso, os recortes passaram a ser cada vez mais fechados, o que, se de um lado ajudou a profissionalizar o ofício, levou à perda da dimensão maior dos problemas brasileiros?
Novais -
A profissionalização é um aspecto da modernização. Representou o abandono do ensaísmo, das visadas gerais. Isso ocorreu no Brasil na segunda metade do século passado, a partir da universidade, mas, sobretudo, a partir dos anos 50. No Brasil, entretanto, mantém-se mais isso do que em outros países. A tendência dos modernos, dos atualizados, é dizer que isso é atraso. E a isso está ligada à pertinência do marxismo. Acho que isso é superficialidade. Não é a mesma coisa a modernização na França, na Inglaterra, nos EUA, no Brasil, no México.

Folha - Por quê?
Novais -
Porque a história não parou. Eles são, no fundo, discípulos de [Francis] Fukuyama, esse grande pensador nipo-americano que teve uma única idéia na vida, que é a idéia de que a história morreu. E que é uma estupidez. Está certo dizer que a modernização leva as pesquisas a serem regionalizadas, setorizadas. Normalmente, a modernização significa a exclusão da história. Na realidade, esses trabalhos não são ruins. O ruim é achar que o outro é necessariamente atrasado. Precisa haver uma integração das duas coisas. Nesse sentido, não estou querendo dar a idéia de que são excludentes.

Folha - O sr. diz, inclusive, nos artigos, que a Nova História não exclui a história marxista.
Novais -
Sim, exatamente. E acho que um percurso típico para refletir sobre esse aspecto é o de Florestan Fernandes. Ele começou a carreira como um scholar típico, moderno. E, depois de um determinado momento, passou a fazer interpretações gerais sobre o Brasil e a América Latina. Então dizem: "Ah, mas ele foi perseguido e saiu da universidade, por isso radicalizou-se politicamente". Sim, isso teve importância. Mas eu não estou convencido de que ele não iria se voltar para esses temas. Porque é o percurso que leva.
Tenho participado de debates em torno disso, na Anpocs, na Anpuh [Associação Nacional de História]. Sobre o grupo de leitura de Marx [Seminários Marx], criou-se um folclore, que, no fundo, é muito divertido. E é engraçado que tanto Pedro Puntoni [autor da introdução] como Laura de Mello e Souza [autora do texto da orelha], quando se referem à minha participação no seminário sobre Marx, citam Roberto Schwarz, que dizia que eu era a figura mais equilibrada daquele grupo. E isso porque não sou dogmático. Mantenho uma posição, mas creio que é preciso haver um diálogo com outras ciências.

Folha - A profissionalização está ligada à universidade?
Novais -
No Brasil, sim. No resto da América espanhola, a profissionalização já existia antes, pois a universidade existia desde o século 16. Antes da América inglesa. Aliás, existia universidade na América Latina antes mesmo de existir uma América inglesa. No Brasil, essa profissionalização só aconteceu em 1934 [com a criação da USP]. Portanto modernização e profissionalização no Brasil são processos associados. Mas, em outros países, não. Agora, profissionalização em história é ainda mais complicado. Por causa das características da própria história como domínio do saber. Porque a história não é uma matéria teórica.

Folha - Referindo-se à geração de 1930, o sr. sempre disse que seu trabalho era um desdobramento do trabalho de Caio Prado Jr. Mas, em um dos textos de seu livro, o sr. o classifica como utópico, enquanto Gilberto Freyre é chamado de nostálgico. Sérgio Buarque seria o único a sobreviver às transformações pelas quais passou a historiografia brasileira?
Novais -
Todos sobreviveram. Do ponto de vista da interpretação, de linha de pensamento, sou muito mais ligado ao Caio Prado Jr. Do ponto de vista pessoal, conheci muito mais Sérgio Buarque. Do ponto de vista do gosto, também acho mais bonito Sérgio Buarque, um grande escritor. Caio Prado escrevia mal.
Todos são fundamentais e importantes. O Sérgio Buarque é o mais complexo, o mais difícil de analisar. Tenho dificuldade em analisar Sérgio Buarque. No livro, faço relações quanto à região do Brasil, à posição política e às classes sociais de cada um. Se compararmos Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., eles pertencem, do ponto de vista da pertinência direta e imediata à classe social, ao senhoriato brasileiro. Só que um rompeu e o outro não. Mas não é para isso que eu queria chamar a atenção.
Gilberto Freyre pertencia a uma camada social que é a açucarocracia do Nordeste, que estava em decadência. Caio Prado Jr. pertencia à classe social ascendente de São Paulo, a do café, que virou industrial e que estava em expansão. Portanto, Gilberto Freyre tem uma dimensão nostálgica em sua obra. Ele analisa o Brasil a partir do que ele foi. O Brasil, para Gilberto Freyre, era o que restou do Brasil.
Caio Prado, que pertence a uma classe ascendente, via o Brasil como aquilo que ele podia vir a ser. Como, ao mesmo tempo, realizou uma ruptura de classe e se transformou em um revolucionário, em um comunista, isso é ainda mais acentuado. Diante dessa observação, como é que analiso Sérgio Buarque? É impossível. Vou dizer que Sérgio Buarque é o mais ligado à classe média. Se Sérgio Buarque estivesse vivo, brigaria comigo. Se existia uma coisa de que ele tinha horror, era a chamada classe média. A pequena burguesia: ele tinha ódio dessa gente que não sabe nada, os ignorantes, para ele.


Sérgio Buarque de Holanda tinha ódio dessa gente que não sabe nada, os ignorantes, para ele


Mas porque falo que Sérgio Buarque representava a classe média? Porque ele é o mais oscilante nas interpretações. Ele é menos dogmático, como a classe média (risos), que não sabe para onde vai. E ele tem interesses mais múltiplos. Isso é uma maneira de começar a se aproximar da obra de Sérgio Buarque. Por que ele é mais importante? Por que é mais difícil? Caio Prado segue o caminho do marxismo, era um sujeito inteligente e seu marxismo é não-dogmático. O Gilberto Freyre também era muito inteligente, mas o que fazia era, basicamente, antropologia cultural norte-americana.
Além disso, ele era mais erudito que os outros e aí fica mais complicado ainda. É muito difícil, por isso há várias obras, várias teses sobre Sérgio Buarque, mas nenhuma é capaz de apanhá-lo. Todas elas evitam o último livro do Sérgio Buarque, "Do Império à República", que é o quinto volume da "História Geral da Civilização Brasileira" (Bertrand Brasil). Acho que aquele volume, para entender o conjunto da sua obra, é o mais importante. Mas ninguém enfrenta esse livro porque acha que se trata de um texto apenas descritivo e narrativo.

Folha - Mas isso porque ele só o escreveu para completar a obra, porque faltaram autores, não é?
Novais -
É mais complicado, ele funcionava como o elemento que dava unidade, pois, apesar de preservar os textos dos autores, Sérgio Buarque sempre sugeria uma pequena modificação aqui ou lá. Então escrevia capítulos que amarravam, coisa que na parte de República o Boris Fausto não conseguiu fazer.

Folha - A profissionalização é mais complicada na história por ser mais conservadora em relação a outras ciências sociais?
Novais -
Não é só isso, a história também é a menos científica. Não sei se ser científico é ser progressista. Pode ser um preconceito da minha parte. Ou uma tolice. Ou uma ilusão.

Folha - Mas talvez por ser menos científica ela tenha mais capacidade de sobreviver, não?
Novais -
Acho que a história corresponde a demandas diferentes das outras ciências sociais. Ela não depende da Revolução Industrial, do capitalismo, da burguesia. Na alta Idade Média não havia burguesia, não havia capitalismo, e estava lá o Venerável Beda (672-735) escrevendo a "História Eclesiástica das Gentes de Anglos".

Folha - As ciências sociais precisam do capitalismo?
Novais -
Sim, elas só puderam existir porque existiu o capitalismo. Mas só não têm história as chamadas sociedades primitivas, porque o que ocupa a questão da história nas sociedades primitivas é o mito. A história existe para a criação da memória. Memória social. Não quer dizer que a narrativa historiográfica seja a única forma de ter memória. Há outras. Quem não tem memória é bicho. A humanização do pré-hominídio é um processo de criação da memória social. Agora, certas formações sociais prescindem disso, formam a memória social com o mito.
Isso causou algumas incompreensões e dificuldades. O fato de a história não ser uma matéria teórica cria uma série de problemas. Por exemplo, com relação à profissão. O que é um historiador? É um sujeito que sabe história. Para saber história, ele precisa ou fazer o curso de história ou ser um autodidata terrível.
A conclusão é simples: tem que saber história. E a contrapartida disso é que todo mundo pensa que pode fazer história. Sobretudo os jornalistas. Sabe o raciocínio que fazem muitos jornalistas? "Bom, eu não sou historiador, então eu vou fazer biografias". Como se biografia não fosse um gênero de história.

Folha - O sr. menciona isso no livro. E biografia é um gênero difícil?
Novais -
Sim, é o mais difícil dos gêneros de história. Primeiramente, por ser um gênero de história por si só, como a história econômica. Biografia é uma coisa que flutua. Veja como a história é diferente das outras ciências. A crise dos paradigmas nas ciências sociais se manifesta por meio de uma discussão teórica. E, em história, se manifesta com uma mudança de assunto. A Nova História é a reação dos historiadores perante a crise dos paradigmas. Como é que o historiador resolve a crise dos paradigmas? Vamos mudar de assunto (risos).

Folha - Mas também há um novo modo de estudar os novos assuntos?
Novais -
Muda-se a maneira de estudar o assunto, mas essa mudança não é o mais importante. Se você tomar os três volumes que compõem o manifesto da Nova História ("Faire L'Histoire"), eles são "Novas Abordagens", "Novos Objetos" e "Novos Problemas" [todos lançados no Brasil pela ed. Francisco Alves]. O único que é bom é "Novos Objetos". "Novas Abordagens" e "Novos Problemas" são uma porcaria.

Folha - Mas a abordagem se diferencia também, ao existir um diálogo maior com outras ciências, como a antropologia, a sociologia.
Novais -
Mas se tirou um conceito e não se colocou nada no lugar. Qual é o conceito criado pela Nova História? Diálogo com outras ciências não é um conceito, é uma recomendação. Isso é um conselho, não um conceito. O conceito que se pode citar é o conceito de mentalidade. Que é um conceito vago. O [Fernand] Braudel, em seu ensaio sobre a longa duração, diz que não existe conceito de história, existem conceitos de ciências sociais que o historiador usa. O conceito de história para ele era o conceito de duração. Que não é bem um conceito, é quase uma sensação, dizia.
Ou seja, temos que usar os conceitos das ciências sociais historicizando. E o que é historicizar? Ninguém sabe explicar. É na base da bossa. Historicizar é fugir do anacronismo.

Folha - Que é algo muito complicado, pois um pouco de anacronismo é necessário, e até inevitável. A partir do momento em que se estabelece um assunto do passado, você já está sendo anacrônico, não?
Novais -
Sim, é dificílimo voltar os olhos para um determinado momento do passado sem cair no anacronismo. Mas anacronismo não significa que não se possa utilizar um conceito moderno. Os conceitos modernos podem ser utilizados para explicar, não para reconstituir. O que você não pode é atribuir ao protagonista o conhecimento desse conceito. Ou seja, pode dizer que ele agiu dessa forma por isso, mas ele não sabia que era por isso. Em ciências sociais, a explicação e a reconstituição são separadas. Em história são misturadas. Por isso que a história é mais difícil e mais bonita.

Folha - O sr. acha que história imediata é história?
Novais -
É história. Os franceses estão agora teorizando sobre isso. A idéia é procurar fazer o imediato sem que seja só um registro, mas uma narrativa de reconstituição. É complicado. Mas eles dizem o seguinte: que, fora isso, sempre o historiador sabe o que acontece depois, e que o protagonista não sabia. Isso em vários planos. Num plano mais imediato, não é tão difícil, mas é mais complicado no plano estrutural. Tomemos a história da colonização: quando falamos em história de nação, o problema do anacronismo é gravíssimo. Porque a nação quer se legitimar com o passado.

Folha - Ela precisa da história como instrumento.
Novais -
Sim, um instrumento para se legitimar. Aí os franceses começam a dizer que a história da França começa na Gália romana. Não tem nada a ver, é uma pura coincidência territorial. Se você, por exemplo, toma a questão do anacronismo na história do Brasil do ponto de vista "acontecimental", você começa a dizer que a rebelião de Beckman, no Maranhão, é uma predecessora da Inconfidência Mineira, quando a rebelião de Beckman não tinha nada a ver com Independência, com separação nem nada. Você só diz que foi uma predecessora porque você sabe que houve a Inconfidência depois.


Se o que caracteriza a economia colonial não é o fato de acumular externamente, o que é então?


No plano geral, você começa a reconstituir a história da colonização portuguesa como sendo uma história destinada a criar uma nação, como se a colonização fosse feita para criar uma nação. O cúmulo é que os portugueses adoram essa idéia.
Por quê? Há uma continuidade em relação à historiografia portuguesa. O Brasil foi Portugal a maior parte do seu tempo. Agora é que estamos entrando num século em que passará a ficar igual a parte de Brasil à parte de Portugal. A história da colonização é história de Portugal e pré-história do Brasil, ao mesmo tempo. Isso é que é difícil.
Quando fui fazer o doutorado, tinha que escolher: naquele tempo havia a cátedra e era na cadeira de história moderna, não podia fazer história do Brasil. O conselho do professor [Eduardo D'Oliveira] França (1915-2003) foi que eu fizesse história da Colônia ligada com Portugal. Pensando naquele recorte, eu acreditava que, para entender a política colonial, tinha que entender o sistema colonial.
Nessa mesma época, li a "Formação do Brasil Contemporâneo" (Brasiliense), do Caio Prado Jr. E aquela coisa de sentido da colonização, é a primeira vez em que há uma ruptura, aquilo é uma ruptura epistemológica na historiografia brasileira, porque Caio Prado realmente fugiu do anacronismo. A colonização em geral, e não só a do Brasil, é o ponto de partida para entender a história do Brasil.
O recorte da história do Brasil não pode ser Brasil apenas, tem que ser o mundo colonial. O recorte territorial é o mundo colonial. Porque não havia Brasil. O que eu fiz depois foi aprofundar a idéia do sentido da colonização e elaborar uma maneira de entender conceitualmente o sentido da colonização com o conceito de sistema colonial. Essa foi uma maneira de fugir do anacronismo. Como, setorialmente, faz o Antonio Candido em "Formação da Literatura Brasileira" (Itatiaia).

Folha - No livro, o sr. relembra a polêmica sobre a idéia de "interiorização da metrópole". Como ela surgiu?
Novais -
Não, não é por aí. A idéia de interiorização da metrópole se apresenta contra a idéia de sistema colonial, de crise do sistema colonial. E conclui pela continuidade da dominação da camada dominante. Ora, a dominação da camada dominante está na análise da crise do sistema colonial.
Estou dizendo a todo momento que a geração que faz a Independência é o senhoriato colonial, definido por uma camada da sociedade que possui terras e escravos. É uma classe social, que possui terras que foram dadas, não fez nada para ganhá-las, e domínio sobre homens, tem escravos. Também é uma classe que tem de lidar com mercadorias, com produção. Ou seja, é um nobre que é burguês ao mesmo tempo. É complicadíssimo de entender.
E para entender isso é que é bom partir dessas análises. Ou seja, elas são indiretamente importantes para a explicação geral do Brasil. Mas não são "a" explicação, e sim a análise de uma peculiaridade.
A minha discordância é que a grande novidade, o grande ponto da afirmação da coisa da Colônia é dizer que é uma continuidade da dominação. Mas essa continuidade já tinha sido afirmada pelo Raymundo Faoro. "Os Donos do Poder" (Globo) mostra justamente isso. E essa continuidade não está ausente da crise do sistema colonial.
Agora, há uma outra característica, que é ser ruim. Cria uma ilusão de que não foi a colônia que saiu da metrópole, mas que foi a metrópole que entrou na colônia, uma ilusão. É uma análise que fica na superfície dos acontecimentos. De fato, d. João 6º veio para cá (risos), mas ele teria voltado para lá e tudo continuaria como antes se não houvesse a crise do sistema colonial. Ele teria voltado e não teria acontecido nada.

Folha - Há também um momento, nas entrevistas, em que o sr. faz uma crítica aos historiadores do Rio, como João Fragoso, que estariam fazendo história como historiadores portugueses. Quer dizer que a um historiador brasileiro convém ver a ruptura e, ao português, a continuidade?
Novais -
Ninguém, por mais que queira, sai do seu espaço. Você não consegue. Quando falamos com os portugueses, falamos a mesma língua, mas dizemos coisas diferentes. É uma coisa que temos de aceitar.
Agora, com relação às polêmicas com os colegas do Rio, existem dois aspectos. O primeiro é estritamente no plano da história econômica. Eles não aceitam a caracterização de uma economia colonial como uma economia que se distingue pela acumulação externa. Eu contesto essa discussão deles, mas é uma discussão, não tem problema nenhum.
Em meio a esse debate, fiz uma maldade, que foi chamar a atenção para o fato de que eles não estão falando de Independência coisa nenhuma. Eles não pensaram que as análises deles no plano econômico batem com as análises dos portugueses no plano político.
E mais essa coisa de interiorização da metrópole. Eles dizem que, na colônia, a acumulação não é externa, o capital é residente. Se é assim, também o Estado migrou para cá. Mas como assim? Nós não existíamos? A Independência não tem importância nenhuma? É a mesma coisa dizer que Tiradentes era um bestalhão? Ele não era um bestalhão. Ele não era um sujeito muito bom do ponto de vista organizacional, mas isso é outra coisa. Eles ficam danados da vida. Eles querem brigar, mas agora que briguem com os portugueses, isso é coisa deles (risos).
E a pergunta que faço aos colegas do Rio é a de que, se o que caracteriza a economia colonial não é o fato de acumular externamente, o que é então? Ou não há nada que distinga uma economia colonial de um outro tipo de economia?

Folha - Não pode ser o fato de haver escravos?
Novais -
Não, não pode. Há outras economias que não eram coloniais e que possuíam escravos.


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Nova História - Criada com a revista "Annales d'Histoire Économique et Sociale" (Anais de História Econômica e Social) -fundada na França em 1929 pelos historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch-, a Nova História se opõe à historiografia tradicional -que considera positivista e patriótica- e defende a necessidade de a história passar a se servir das ferramentas de outras ciências (como sociologia, antropologia e psicanálise) e tratar menos dos grandes acontecimentos e heróis. Nesse sentido, a historiografia, para a Nova História, deve voltar-se para o estudo do homem e seu contexto, de que são exemplo a história do cotidiano e a das mentalidades.

Fernand Braudel (1902-1985) - Historiador francês cuja obra destaca o poder dos mercados no desenvolvimento da civilização. Foi aluno de Lucien Febvre e ajudou a fundar a Escola dos Annales. Braudel veio ao Brasil em 1935 para ajudar a fundar a Universidade de São Paulo. É autor de livros como "A Identidade da França" (Globo), "Civilização Material, Economia e Capitalismo", "O Espaço e a História do Mediterrâneo" (ambos pela Martins Fontes), entre outros.

Seminários Marx - Reuniões de jovens professores da USP para o estudo de "O Capital", de Karl Marx (1818-1883), entre 1958 e 1964. Entre os intelectuais que discutiam a obra estavam o próprio Novais, o crítico Roberto Schwarz, o filósofo José Arthur Giannotti, o economista Paul Singer, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e a antropóloga Ruth Cardoso

Florestan Fernandes (1920-1995) - Sociólogo e professor universitário com mais de 50 obras publicadas, estabeleceu um novo padrão de pesquisa em ciências sociais no Brasil. Foi professor de intelectuais como Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Cassado em 1969 com base no AI-5, deixou o país e lecionou nas universidades Columbia (EUA), Yale (EUA) e de Toronto (Canadá). Retornou ao Brasil em 1972 e passou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Em 1985, recebeu o título de professor emérito da USP.

Raymundo Faoro - (1925-2003) - Jurista, escritor e historiador, Faoro foi um dos grandes pensadores do Brasil, autor do clássico da sociologia "Os Donos do Poder" (1958, ed. Globo), em que diz que "o poder, se não corrompe, amansa". Propõe uma reinterpretação da história brasileira inspirada nos conceitos de patrimonialismo e estamento, formulados pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Faoro presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil de 1977 a 1979, quando liderou movimento pela anistia de presos políticos. Foi também membro da Academia Brasileira de Letras.

Interiorização da metrópole - Conceito criado em 1972 pela pesquisadora paulista Maria Odila da Silva Dias. Nele, ela chamava a atenção para a necessidade de considerar a Independência não só a partir do quadro das pressões externas, pela substituição da política mercantilista, mas também a partir da dinâmica econômica e das tensões sociais internas do Brasil. Para ela, a presença da corte teria transferido de Lisboa para o Rio o papel de agente colonizador do território. Assim, estudar a continuidade era tão importante quanto falar de ruptura. E a idéia de um embate entre colônia e metrópole seria um mito a ser confrontado.

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