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Friday, February 29, 2008

Fevereiro (483)

Wednesday, February 20, 2008

Move All Your Stuff to a New Mac — Quick

Move All Your Stuff to a New Mac — Quick

In the past, if you bought a new Mac, moving all your files, music, photos, and well...everything from your old Mac to your new Mac was quite a production, and I saw it reduce many an NFL lineman to tears.

Well, in Tiger, that's all a thing of the past. Now, when it's time to make the "big move," just connect the two Macs with a FireWire cable, then go to your new Mac and look inside the Applications folder, then go to the Utilities folder, where you'll find an application called Migration Assistant. Double-click on it and since it's an assistant, it will lead you through a series of screens with questions about what you want to do. (Don't worry, they're pretty simple questions; however, some of the most critical questions are entirely in French. Kidding.) That's it — answer the questions and it'll make the move (including copying your settings for things like email, bookmarks and more).

Friday, February 15, 2008

Ano Novo com Previdência velha?


Ano Novo com Previdência velha?

Artigo - Mauro Borges
Valor Econômico
15/2/2008

"A igualdade consiste em tratar os desiguais na medida de suas desigualdades". - Aristóteles

Mesmo com o inegável bom resultado econômico obtido ao longo de 2007 e a perspectiva de que o ano em curso poderá ser melhor, é certo que o tema "reforma da Previdência" ainda permanece - ou pelo menos deveria permanecer - em pauta. É fato inconteste, no Brasil e no mundo, que toda discussão previdenciária põe em lados contrapostos - fruto do conflito de interesses - governos e trabalhadores. 

Ocorre que esses atores desconsideram um fato inconteste: a Previdência é instrumento da principal razão de ser de um Estado minimamente civilizado, que é oferecer bem-estar aos cidadãos, explicitado, neste caso, pelo consenso de que todos devem ter um adequado nível de reposição da renda perdida em face de eventos que comprometam sua capacidade produtiva, aí incluídos idade, doença, invalidez, desemprego e morte. 

Exatamente por pretender compatibilizar o atendimento deste compromisso com outros interesses e necessidades é que os governos devem manter permanentemente em suas agendas o tema da Previdência. Trata-se de uma atitude coerente e o Brasil dela não escapa. O diferencial é que tratamos o tema de modo empírico, buscando referências em países desenvolvidos e com um espectro de proteção social muito mais abrangente, comparando situações desiguais, lançando mão de remédios conjunturais e pretendendo insular o tema como se ele se encerrasse em si mesmo. 

Dentre as várias sugestões que permeiam o ideário reformista está o aumento da idade para a aposentadoria. Ora, de que modo podemos pretender discutir a fixação de uma idade mínima - 60/65 anos - para a aposentadoria voluntária, ou mesmo o aumento do tempo mínimo de contribuição, sem que enfrentemos temas como o do desemprego e o da exclusão previdenciária? 

Sabemos que o trabalhador médio, quando alcança a faixa dos 45 anos de idade, está sujeito ao desemprego e à informalidade. Não fosse isso, é certo que, ao longo de sua vida produtiva - dos 18 aos 60 anos -, fica, em média, cerca de 20% do tempo sem que sua carteira de trabalho esteja assinada e, portanto, longe de uma relação contributiva formal. Com isso, o tempo de espera para obter uma aposentadoria voluntária gira em torno de 42 anos. 

Como poderemos evoluir nesta discussão sem considerarmos o fator previdenciário? 

Havido como um componente atuarial destinado à absorção do impacto das aposentadorias precoces sobre o sistema previdenciário - já que, com sua fórmula, um trabalhador que se aposenta precocemente acaba por receber um benefício bem menor do que um trabalhador que, com o mesmo tempo e os mesmos valores de contribuição, aposenta-se com uma idade maior -, o fator previdenciário destina-se a corrigir as distorções advindas das aposentadorias concedidas para trabalhadores jovens, e parece que ele cumpre esta função de modo eficaz. 

Regime previdenciário ancorado na folha de pagamento formal e sob repartição tende a ser sempre desequilibrado 
 
Assim, não há como falar em aumento de idade ou de tempo de contribuição sem que ele seja rediscutido. Da mesma forma, não é possível pretender uma discussão séria e equilibrada sobre estes pontos sem que se enfrente o fato de que o seguro-desemprego é um benefício previdenciário. Hoje disperso, sob a gestão da Caixa Econômica e deliberação do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o seguro-desemprego, enquanto benefício previdenciário, deveria cobrir a ausência da renda decorrente do desemprego involuntário e adotar uma adequada política de formação, reeducação e readaptação do trabalhador, incluindo até mesmo o financiamento e assessoramento de pequenos empreendedores. 

A discussão também se mostra ineficaz se não equacionarmos adequadamente a inclusão previdenciária dos trabalhadores que permanentemente compõem a economia informal e daqueles que, demitidos, têm dificuldade em obter um novo emprego, permanecendo longos períodos - dois, três, ou mais anos - desempregados e, portanto, longe da cobertura previdenciária. 

Para tanto, devemos considerar o fato de que as relações de trabalho sofrem uma modificação irreversível. No novo quadro laboral, o vínculo formal, com carteira de trabalho assinada, perde espaço para relações informais e até mesmo para relações laborais múltiplas e concomitantes. Com isso, um regime de previdência como o nosso, cujo financiamento é ancorado na folha de pagamento formal e sob repartição, em que os valores arrecadados dos contribuintes ativos são destinados ao pagamento dos aposentados, tende a ser permanentemente desequilibrado. 

Não há dúvida de que a solução destas questões passam por uma adequada contextualização dos temas, abrangendo a busca de um novo modelo de financiamento previdenciário que permita a inclusão previdenciária sem onerar o setor produtivo. 

O novo paradigma de financiamento previdenciário, em que pese o desgaste sofrido, poderia ser ancorado em uma contribuição similar à "sepultada" CPMF que, por sua característica, seria o meio mais eficaz para a inclusão da economia informal - desde que, obviamente, ela fosse compensável com a contribuição direta realizada por segurados e empresas, com o imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e outros encargos sociais, como a Cofins. 

A compensação aproveitaria a economia formal e a inclusão previdenciária do segmento informal se daria por meio da garantia de um benefício mínimo. Mas não é só isso: esse modelo propiciaria a taxação de uma economia que não é formal ou informal, mas "marginal", abrangendo recursos vinculados a atividades ilícitas e que, por isso mesmo, não seriam passíveis de compensação e inclusão. 

A par das questões relacionadas ao financiamento e inclusão previdenciária, é necessário refletir sobre o atual modelo de gestão centrado em órgão mastodôntico como o INSS. Mas aí a história seria outra. Importa destacar que, sem adentrar na discussão quanto ao chamado Orçamento da Seguridade Social vis-à-vis ao déficit previdenciário, se considerados os números disponíveis, o déficit previdenciário estimado para este ano, na ordem de R$ 41,6 bilhões, seria zerado ou nulo. 

Mauro Ribeiro Borges advogado, é consultor em Previdência. E-mail: mr-borges@uol.com.br

Friday, February 01, 2008

Revista Piauí :José Dirceu

Revista Piauí

JANEIRO 08




DANIELA PINHEIRO

 

Clique aqui para baixar a versão do texto em áudio.

José Dirceu de Oliveira e Silva escolheu uma mesa no fundo do restaurante de um hotel caro e discreto, localizado entre os bairros do Ibirapuera e da Vila Mariana, onde se hospeda quando está em São Paulo. Era o começo da tarde de um sábado de novembro e ele vestia uma calça escura, camisa pólo com o decote forrado por um estampado Burberry e mocassins sem as meias. Chegou atrasado, se desculpou e disse que desembarcou de viagem na madrugada, acordou quase em cima da hora e, quando ia sair do quarto, recebeu telefonemas urgentes. Atravessou o salão vazio encarando o visor do celular por cima dos óculos. As sobrancelhas arqueadas lhe davam um ar de espanto. Deu uma rápida olhada no bufê de saladas antes de se acomodar em uma cadeira estofada com tecido florido, de costas para a entrada. Explicou que um problema na coluna – produto das horas seguidas que passa na frente do computador – o obriga a optar pelas de espaldar alto. O garçom, que o tratou pelo nome, lhe ofereceu uma garrafa de vinho. "Nem pensar", respondeu. "Não bebo mais no almoço. Tomo vinho no máximo duas vezes por semana. Tenho que perder essa barriga."

Ele havia ido a um casamento na véspera, encontrado amigos e tomado espumante. Depois de descrever a festa, falou de seus negócios. Contou que tem uma carteira de quinze bons clientes, a maioria deles estrangeiros, aos quais presta consultoria. Os brasileiros lhe pagam entre 20 e 30 mil reais. Deu como exemplo de cliente de peso o banco Azteca, do empresário mexicano Ricardo Salinas, que quer se estabelecer no Brasil e, como faz em outros países, cobrar tarifa zero dos correntistas. Outro cliente é o também mexicano Carlos Slim, o homem mais rico do mundo, que planeja implantar no Brasil a televisão a cabo com mensalidade de 40 reais. "Mas não sou consultor dele no Brasil", disse. "Como defendo coisas contrárias ao interesse dele aqui, temos um acerto informal de buscar negócios em outros países da América Latina. Eu disse a ele: 'Don Carlos, aqui não'. Podemos até trabalhar juntos, mas fora do Brasil", afirmou. "Ele me chamou para ir à casa de praia dele, eu nem fui para não haver mal-entendido."

Em março passado, uma reportagem de Veja lhe atribuiu rendimentos mensais na casa dos 150 mil reais. Dirceu negou: "Eu disse a eles que faturamento não é lucro, mas botaram assim mesmo. Quem fatura isso embolsa menos do que a metade. Mas, na verdade, o Roberto Civita [dono da revista] me fez foi um grande favor publicando isso: aumentou o meu passe".

Perguntado sobre os serviços que presta ao empresário Nelson Tanure, respondeu que foi contratado para ajudar na reestruturação da Gazeta Mercantil e para escrever uma coluna no Jornal do Brasil. Não haveria, no entanto, a expectativa de que, com os seus contatos em Brasília, ele conseguisse propaganda de estatais e do governo para a TV JB e os jornais de Tanure? Dirceu replicou com outra pergunta: "Você acha que se eu ligar para um ministro, pedindo alguma coisa, isso não vaza em dois minutos? Eu não sou qualquer um. Outra coisa, bem diferente, é que eu acho que se deveria ter posto propaganda na televisão do Tanure". (A TV JB fracassou e saiu do ar poucas semanas depois de estrear.)

Quando chegaram os pãezinhos, passou a discorrer sobre o que acredita ser o motivo da cassação de seu mandato de deputado federal. "Tudo tem uma explicação", disse, usando uma frase que, ao longo dos dias, repetiria em ocasiões distintas. "Um amigo me disse e eu percebi: se eu não tivesse sido cassado pela Câmara, voltaria aclamado, aplaudido, ovacionado. Seria facilmente eleito presidente do PT", falou. "Estando fora do governo, o Lula teria que me oferecer alguma coisa, uma embaixada, a presidência de uma estatal... Se eu ainda tivesse a petulância de me candidatar à presidência da República, era capaz até de ser eleito." E concluiu: "Como a minha absolvição, além de ser ruim para a oposição e a imprensa, traria dificuldades para o governo, não havia outro resultado possível".

O ex-ministro chefe da Casa Civil, que junto com o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, era o pilar do governo Lula, foi cassado em dezembro de 2005, pelo voto de 293 deputados. Meses depois, foi apontado como o "chefe da quadrilha" do mensalão pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza. Está inelegível até 2015, quando terá 69 anos. José Dirceu responderá pelos crimes de corrupção ativa e formação de quadrilha. Acredita que seu julgamento no Supremo Tribunal Federal deva ocorrer em 2009 ou 2011. "Em 2010, seria politizar ainda mais um processo que não é jurídico, é político", disse. "Não sinto falta do governo, sinto falta das amizades que fiz. Foi um jogo que joguei. A conta caiu no meu colo, eu sei. Eu era o mais conhecido, o mais visado."


Na semana seguinte, em uma manhã de calor abafado, José Dirceu foi votar na eleição dos novos dirigentes do Partido dos Trabalhadores. Chegou ao diretório da Vila Mariana numa caminhonete Chrysler preta dirigida por um amigo, Bob Marques, assessor do PT na Assembléia Legislativa de São Paulo. Repórteres o aguardavam para saber sua opinião sobre a possibilidade de um terceiro mandato para o presidente Lula. Sua namorada, Evanise Santos, uma brasiliense simpática e extrovertida, mas discreta, se protegeu do sol embaixo de uma marquise por quase vinte minutos, enquanto ele falava aos jornalistas. Ao entrar, Dirceu foi cercado por petistas. Alguns pediram para tirar fotos ao seu lado, e ele sempre se postou entre dois fãs, de modo a poder abraçar a ambos.

Evanise se sentou sozinha numa sala, enquanto o ex-ministro continua-va a maratona de fotos e conversas com militantes. "Tá com botox é, Zé Dirceu?", perguntou uma mulher de cabelos curtos grisalhos. "Não, não", ele respondeu. "É um creme que compro em Cuba, de um tratamento da Alicia Alonso. É feito de placenta, uma beleza. Um tubinho dura mais de mês." Ouviu todo tipo de pergunta: de como arrumar verbas para trocar o teto de zinco do diretório até quais seriam seus planos para janeiro. "Vou ver se fico um mês nos Estados Unidos fazendo imersão de inglês. E depois vamos para Cuba!", exclamou.

Mesmo ganhando a vida como consultor, a política ainda é o dínamo de José Dirceu. Nas semanas anteriores, ele havia, conforme disse, "trabalhado bem" na campanha do prefeito de Araraquara, Edinho Silva, para a presidência do diretório paulista. Reuniu-se com líderes locais e telefonou para caciques do partido. Quando não está viajando, se encontra semanalmente com Antonio Palocci, a quem considera o "melhor deputado do Congresso". Semanas antes, os dois haviam jantado na casa do deputado João Paulo Cunha, em companhia do ex-tesoureiro petista Delúbio Soa-res, igualmente envolvidos no caso do mensalão. No ano passado, esteve três ou quatro vezes com o presidente Lula. Para o vereador José Américo Dias, que teve o apoio dele na disputa do comando petista paulistano, "não há ninguém com tanto diálogo com a militância do PT quanto o Zé Dirceu". Tanto Dias como Edinho Silva foram eleitos.

Nos domingos, a churrascaria Prazeres da Carne, perto do Ibirapuera, está sempre lotada. A clientela é de famílias de classe média, com crianças barulhentas, avós, primos e cunhados. Depois da votação no diretório, José Dirceu, que freqüenta o restaurante há dez anos, foi almoçar lá com a filha mais nova, Camila, de 17 anos, Evanise, o motorista e o prefeito de Manágua, Dionisio Marenco. Foi recebido com abraços pelo proprietário, que o guiou até uma mesa bem longe da entrada principal. Dali, ele via todo o salão. Pediram caipirinha. "A minha é de moça, bem fraquinha", orientou Dirceu. Evanise foi fazer o prato do namorado. Do bufê, trouxe uma farta porção de salada. Ofereceu-lhe polenta, brincando de fazer aviãozinho com o garfo, mas ele não quis.

José Dirceu comia o segundo pedaço de cupim quando, sem que percebesse, um homem loiro e jovem se Aproximou e pôs a mão no seu ombro. Talvez porque imaginasse se tratar de um conhecido, o ex-ministro sorriu quando o homem se inclinou, como que para cochichar no seu ouvido. Com o rosto quase colado ao de Dirceu, no entanto, o desconhecido gritou: "Seu safado, safado, SA-FA-DO!" O sorriso do ex-ministro se desmanchou e sua expressão facial se esvaziou. Ele não demonstrou surpresa, raiva, medo, constrangimento ou qualquer outra emoção. Ficou olhando fixo para a frente, impassível, enquanto os berros continuavam e eram ouvidos nas mesas vizinhas. Com a mão ainda no ombro de Dirceu, o intruso vociferou: "Sou eu que pago minha comida! Não é o PT ou o governo, seu safado!" Pelo inesperado e pela virulência da agressão, os que estavam à mesa ficaram paralisados e silenciosos. A filha do ex-deputado desviou o rosto para o lado oposto ao da cena. O motorista não tirou os olhos do próprio prato. O prefeito nicaragüense ficou atônito.

O homem finalmente tirou a mão de Dirceu e se afastou com lentidão. Gesticulando, de dedo em riste, continuou a berrar, mesmo de longe: "Safado, safado, safado!" A cena durou menos de vinte segundos. A namorada e o prefeito ainda mantinham a cabeça virada, para acompanhar o sujeito sumir no salão, quando José Dirceu sacou o celular (um BlackBerry, no qual recebe e responde a e-mails, se conecta à internet e, às vezes, até escreve no seu blog) e, sem qualquer comentário, começou a manuseá-lo.

Pouco depois, Evanise se levantou. Sem que ninguém da mesa se desse conta disso, foi atrás do rapaz, que estava acompanhado de duas mulheres. "O que você ganha com isso, hein? Quer brigar com ele? Chama ele num canto e fala. Agora, na frente da filha, da família?", foi o que ela lhe perguntou, conforme me contou. "E você também é uma safada por estar com um safado desses", disse-lhe o homem. "Estou com ele com muito orgulho porque ele é muito mais educado do que você", respondeu Evanise.

Passaram quinze minutos e José Dirceu pediu a nota. Os convidados haviam largado suas sobremesas pela metade e tomado o café às pressas. Ele pagou a conta e botou os óculos escuros. Ao atravessar a churrascaria, com a cabeça alta e firme, foi escanea-do por todas as mesas. "Cara-de-pau", disse uma senhora de cabelos pintados de acaju. Ao seu lado, um homem concordava com a cabeça. Na calçada do restaurante, quando o grupo entrou no Chrysler, um senhor de traços orientais comentou com a família: "Olha aí o carro do PT".


Dirceu embarcou naquela noite para uma viagem a Lisboa e Santo Domingo, na República Dominicana. Apesar de estar prevista uma escala de apenas duas horas em Madri, ele incluía a cidade em seu roteiro quando era perguntado aonde iria. Assim que fez o check in, na classe executiva da TAP, foi direto para a sala VIP. Vestido com um sobretudo azul, carregando uma pasta de uma marca francesa com seu computador e o livro
A Era da Turbulência, de Alan Greenspan, o ex-presidente do Banco Central americano, Dirceu só reapareceu quando faltavam poucos minutos para o avião fechar a porta. Percorreu o saguão de embarque com os olhos vidrados no BlackBerry, sem olhar para os lados. Alguns passageiros se cutucaram. "Sabe quem está passando aqui agora? O Zé Dirceu. Vade retro, Satanás", disse um homem à mulher que falava ao celular. Foi o penúltimo a entrar no avião.

Ao desembarcar em Lisboa, na manhã seguinte, entrou numa fila confusa, na qual umas 300 pessoas aguardavam a vez com o passaporte na mão. Com os olhos grudados no celular, tirava os óculos de grau, mordia as hastes e empurrava a pasta com pequenos chutes, à medida que a fila avançava. Não demorou para se ouvir: "Pilantra!" Um homem passou a fazer, em voz alta, um discurso sobre moralidade. "É absurdo deixar esse bandido viajar." Um outro gritou: "Tem ladrão na fila!" Um senhor vestido com um sobretudo marrom se aproximou de Dirceu, que estava com a cabeça baixa, lendo algo no visor do telefone, e disse: "Corrupto!" O ex-deputado não reagiu. "E tem gente que ainda se mete com um tipo desses", falou um homem de jaqueta de couro, me encarando com desprezo. Durante uma hora e dez minutos, Dirceu não desviou a vista do celular.

Passado o controle, encontrou o advogado português com o qual tem negócios, João Serra, que o aguardava com o jornal debaixo do braço e um sorriso acolhedor. "Bem-vindo, doutor José!", saudou. "O senhor está muito cansado? Precisa descansar! Deixe-me carregar sua mala." Dirceu concordou e fomos para o estacionamento onde estava a caminhonete preta do advogado. Sob o sol e a amena temperatura de 13 graus, José Dirceu cantarolou trechos de uma melodia de jazz que tocava no rádio e comemorou: "Ah, cá estamos em Portugal! Esse é o melhor país para relaxar. Vir para um hotel, descansar, comer bem e namorar. Não há nada melhor". Contou ao sócio que sai do Brasil a cada 45 dias e que fechou o ano tendo visitado a Espanha, o Marrocos, os Emirados Árabes, e os Estados Unidos, além de ter circulado por vários países latino-americanos. João Serra disse-lhe que o ex-presidente Mário Soares, com quem Dirceu deveria se encontrar, havia viajado para Cabo Verde. Com a folga da agenda aberta naquela tarde, Dirceu comemorou. "Vou aproveitar para fazer ginástica, vou fazer ginástica aqui todos os dias", afirmou.

Como sempre faz em Lisboa, José Dirceu se hospedou no hotel Pestana Palace, no bairro do Alto de Santo Amaro. É uma construção majestosa, do final do século XIX, com afrescos nos tetos e paredes cobertas com veludo. Numa das paredes da recepção, há uma galeria de fotos de hóspedes famosos: Madonna, Sandy & Junior, Diana Krall e Al Gore.

Seu primeiro compromisso foi um almoço num restaurante em Cascais com seus sócios do escritório Lima, Serra, Fernandes & Associados, especializado em direito financeiro e empresarial. Às quatro da tarde, José Dirceu chegou ao escritório deles, no centro de Lisboa, contando sobre os frutos do mar degustados de frente para a praia. Um empresário brasileiro o esperava. Por vinte minutos, conversaram a portas fechadas. Em seguida, falou com um dos diretores da Universidade de Lisboa, que estava interessado em montar um curso Master in Business Administration, MBA, com uma instituição de ensino brasileira. "Vou falar com a Celita Procópio, da Fundação Armando Álvares Penteado", disse o ex-deputado. "Eles lá são muito amigos meus, fizeram um jantar para mim outro dia. Acho que o Trevisan [o consultor Antonio Marmo Trevisan] e o Belluzzo [o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, presidente do Conselho Curador da TV Brasil] também podem ajudar. Mas vocês têm que falar com os ministros da Educação dos dois países." Durante 45 minutos, eles discutiram estratégias para deslanchar o negócio. Mais tarde, referindo-se à reunião, Dirceu me disse: "Não ganho nada com esse tipo de coisa, mas é interessante porque estou ajudando a levar coisas boas para o Brasil".

No final do dia, um Jaguar preto, de bancos de couro claros, dirigido por um jovem motorista de gravata, esperava o ex-ministro. "Esse carro está ao seu gosto, doutor José?", perguntou-lhe o advogado João Serra, com uma formalidade de sócio pouco íntimo. Dirceu achou que era uma brincadeira e apenas riu. No caminho até o hotel, ele disse que pretende se dedicar a Angola. "Meu interesse é infra-estrutura: rodovias, telefones, telecomunicações. Temos a vantagem do idioma, o know-how", afirmou. "Também vou abrir um escritório no Panamá. A América Latina está cheia de bons negócios." Outro de seus sócios, o advogado António Lamego, é amigo do general João de Matos, ex-chefe de Estado Maior do Exército angolano. Os três haviam marcado de se encontrar, em breve, na Costa do Sauípe para tratar de negócios.

Às nove da noite, Dirceu e dois dos advogados chegaram ao restaurante Vela Latina, às margens do Rio Tejo. Integraram-se à mesa o diretor da Universidade de Lisboa, um professor socialista, dono de um instituto de pesquisas políticas, e o editor-chefe do canal público de televisão RTP. Pediram vinho branco. "O senhor gosta de Pera-Manca, doutor José?", perguntou-lhe um deles. Dirceu se prontificou a acertar um encontro do jornalista com a presidente da televisão pública brasileira, Teresa Cruvinel. "Eu ligo para ela, vocês se encontram, vai ser muito bom trocar essa experiência", disse.

Também conversaram sobre Cuba. O ex-ministro está convencido de que os dias do castrismo estão contados. "Aquilo vai mudar, já está mudando", disse. "Mas os cubanos não vão aceitar o capitalismo de uma vez. Eles viram a experiência da Europa Oriental. O que eles querem é pouco. É poder ter três bicicletas e alugá-las. É ter o direito de ir e vir, poder abrir um bar, alugar um quarto na casa deles. Não é muito, não."

Os portugueses conheciam bem a política brasileira. Ao falar de Paulo Maluf, um deles usou a expressão "rouba, mas faz". Perguntaram sobre as eleições internas do PT e se referiram, mais de uma vez, à "inexpressividade política" do DEM e do PSDB. O que mais os interessava era a sucessão presidencial. Dirceu lhes disse que o PT não tem um candidato forte. Dilma Rousseff e Marta Suplicy têm poucas chances eleitorais, ele acha. Ciro Gomes, sim, seria um candidato de peso. No almoço em São Paulo, Dirceu elogiou o deputado eleito pelo Ceará. "Ele foi um excelente ministro: preparado, com iniciativa, boa cabeça política, leal ao governo e disciplinado; sempre converso com ele", disse. "Mas o Ciro tem um problema: dá a impressão de, contrariado por uma pergunta, ser capaz de levantar e dar um soco no jornalista."

Ali, ele também revelou ter uma excelente relação com o governador Aécio Neves. Jantam juntos e conversam pelo telefone amiúde. Comentou que o tucano fez um excelente governo: "Ele botou tudo em ordem, tem uma aprovação imensa do eleitorado". Instado a escolher entre Aécio e José Serra, não hesitou: "Posso discordar do que o Serra pensa e faz, mas reconheço que é um ótimo administrador. Ele é obsessivo, trabalha dezesseis horas por dia, sabe mandar e governar. Aécio é bom, mas o Serra é melhor para o Brasil", disse. Quando foi perguntado o que faria quanto à sucessão se ainda estivesse no governo, a resposta também foi rápida. "Eu teria aproximado ainda mais o PT do PMDB, já estaria tudo costurado, era só definirmos o nome do candidato em função da popularidade", afirmou. E quem seria o candidato de Lula? "Ainda é uma incógnita", ele respondeu. "O Lula é especial, ele pertence à família de Getúlio, Juscelino, Tancredo: é um político que pensa muito à frente."

"E a eleição americana, doutor José?", quis saber um dos portugueses. Enquanto comia peixe com legumes, ele disse que "a Hillary Clinton é pior para nós. Os democratas gostam de se meter na política interna dos países e são ligados historicamente ao tucanato". Acenderam-se charutos. José Dirceu recusou. O sócio Fernando Fernandes pagou a conta.

Às onze da manhã, José Dirceu saiu do quarto com um abrigo oficial da Confederação Brasileira de Futebol, CBF, de cor cinza, e foi à academia do hotel. Pôs uma toalha em volta da nuca e, sem tirar os óculos escuros, fez alongamentos durante três minutos e usou aparelhos para fortalecer os braços em séries de quinze movimentos. Quando subiu na esteira, sintonizou um canal de notícias. Andou a passos largos e ensaiou pequenos trotes. Cinqüenta minutos depois, já na porta, lembrou que faltaram as abdominais. "Só sessenta, mas vou chegar a 200", disse.

Com o rosto ainda avermelhado, gotas de suor na testa e cheio de endorfina, José Dirceu foi tomar café-da-manhã na sala em estilo Luis XVI, onde executivos com laptops, à espera do almoço, bebiam vinho branco sentados em sofás de veludo bordô. Evanise telefonou. "Oi, lindinha... Tá, tá certo... Mandou o e-mail para ele? Tá bom, tá bom... Beijinho, beijinho." Eles namoram há um ano e meio. Evanise vive em Brasília; ele, em São Paulo. Quando se conheceram, ela era funcionária do ministério dos Transportes. A aproximação se deu durante uma viagem oficial a Cuba. "Eu olhando para ela e ela só ficava 'doutor para cá, doutor para lá'", contou ele. "Linha dura, não me deu bola, não." Agora, ela trabalha na coordenação de Relações Públicas do palácio da presidência da República, e entre as suas funções está a de agendar visitas de escolas e turistas ao Planalto e ao Alvorada.

José Dirceu se casou três vezes. A primeira com Clara Becker, uma pequena empresária com quem viveu quatro anos em Cruzeiro do Oeste, no interior do Paraná. Lá, ele morou clandestinamente nos anos 70. Usava o nome de Carlos Henrique Gouveia de Melo, um paulista de origem judia, sujeito pacato e torcedor fanático do Corinthians. Tiveram um filho, Zeca, hoje prefeito da cidade, pai de sua única neta. Na década de 80, conheceu a psicóloga Maria Ângela da Silva Saragoça. Levou-a a Cuba para que fizesse um tratamento de fertilização. Daí, nasceu sua filha Joana, hoje com 20 anos. Nos anos 90, casou-se com Maria Rita Garcia Andrade, ex-colega de militância política. Juntos construíram uma casa em um condomínio no interior de São Paulo, onde Dirceu mora com Joana. De um namoro efêmero, nasceu Camila.

O relacionamento com as ex-mulheres é excelente. Clara Becker sempre o defende. Recentemente, ela divulgou uma carta que mandou a Aguinaldo Silva, autor da novela Duas Caras, na qual o vilão faz uma plástica, muda de nome e esconde tudo da mulher. O dramaturgo havia dito que o personagem era baseado na vida de José Dirceu, e ela lhe diz na carta: "Afirmo que nunca conheci um homem tão íntegro e honesto como José Dirceu e considero que a omissão de sua real identidade foi uma necessidade naquelas circunstâncias. Reafirmo que o José Dirceu foi um companheiro ideal".

Há pouco tempo, Dirceu trocou o carro de Ângela Saragoça. No escândalo do mensalão, soube-se que, com a intermediação do publicitário Marcos Valério, ela conseguiu um empréstimo bancário e uma transação imobiliária vantajosa junto ao Banco Rural, e o Banco BMG a contratou como funcionária. José Dirceu ajuda financeiramente a mãe de Camila, que tem outras duas filhas e é solteira. Com Maria Rita, fala constantemente ao telefone. "Eu ficaria casado com ela a vida toda, mas uma hora o casamento acaba, o casamento tem que estar vivo, sabe como é?", disse.

O garçom trouxe suco de laranja, croissants, geléia e café com leite. À mesa, Dirceu atacou facções políticas à sua esquerda. Começou pelo ex-prefeito de Porto Alegre e secretário-geral nacional do PT, Raul Pont. "Ele fica falando que o partido não precisa de coligação... Tenha paciência", afirmou. "O que fizemos por esse pessoal não é brincadeira. E eles não ajudam em nada, só nos dão pau." Disse que a construção da sede do PT, em Porto Alegre, "foi feita só com dinheiro de caixa dois. Era com mala de dinheiro". Lembrou que quando foi feita a denúncia, que atingia em cheio o governo de Olívio Dutra, "a gente estava com eles, não os abandonamos em nenhum minuto".

E continuou: "Vê o que a gente fez pela Heloísa Helena. Ela votou contra a cassação do Luiz Estevão. Votou mesmo, e por motivos impublicáveis. Mas nunca a deixamos sozinha, defendemos ela o tempo todo, mesmo sabendo que a história era diferente. E, depois, olha o que fazem". Bebeu um pouco de suco de laranja e prosseguiu: "Esse pessoal é assim. Chegava para o Delúbio e falava: 'Delúbio, preciso de 1 milhão'. Como é que alguém vai arrumar esse dinheiro assim, de uma hora para outra?", disse, referindo-se ao ex-tesoureiro do PT, expulso do partido sob a acusação de ter montado o esquema irregular de financiamento de campanha. "Aí, quando não recebiam o dinheiro, diziam que estavam sendo preteridos porque eram de uma outra corrente, de uma outra ala, que a direção era autoritária. O pobre do Delúbio tinha que ir aos empresários conseguir doa-ções. Aí, estoura o mensalão e esse pessoal vem dizer que o Delúbio era o homem da mala. O que não dizem é que a mala era para eles."

José Dirceu costuma encomendar pesquisas qualitativas de avaliação da sua imagem. Faz isso depois de dar uma entrevista longa, para ter a temperatura exata da repercussão. Ou quando é muito exposto na imprensa, para saber como a população o vê. Segundo ele, um dos levantamentos recentes revela que a maioria dos brasileiros o considera honesto. Em outro, feito com o eleitorado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os entrevistados disseram que José Dirceu não deveria cometer os mesmos erros de FHC. "Eles falaram que eu não deveria me meter nas brigas internas do partido, deveria ter uma agenda própria e tratar só de temas nacionais", detalhou ele. "Como o Fernando Henrique não defende uma causa, o eleitorado acha estranho. Ele devia fazer como o Al Gore."

Uma hora depois, talvez devido ao excesso de endorfina provocado pelos exercícios, José Dirceu continuava animado, emendando um assunto no outro. As notícias de que o senador Garibaldi Alves Filho tinha boas chances de ser presidente do Senado o irritaram. "Esse Garibaldi é um gaiato", disse. "Já trocou o guarda-roupa, deve estar arrumando os dentes, isso vai dar um trabalho danado. Ninguém segura esses senadores, não. Eles fazem tudo por uma rádio. Todos têm rádio. Têm sócios ocultos, laranjas. Não se dão nem ao trabalho de colocar um pequeno empresário na frente do negócio, nada. Esse Garibaldi tem duas rádios. Registradas na Anatel e no TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. E fica por isso mesmo!", lamentou. O assunto o lembrou de outro senador. "Olha o Jefferson Péres: fica aí posando de arauto da moralidade e a mulher trabalhava no gabinete dele, é nepotismo, mas ninguém fala nada, é tudo normal."

De banho tomado, José Dirceu desceu para almoçar. Pediu codorna com trufas e foie gras. A pedido, relembrou algo da sua história. Ele nasceu em Passa Quatro, uma cidade encravada na serra mineira, que ainda tem Maria Fumaça. Saiu de lá aos 15 anos para morar em São Paulo, onde, por recomendação de um tio, trabalhou como contínuo no escritório do então deputado Havolene Júnior. Ao contrário de seus irmãos, que ficaram em Passa Quatro por mais tempo, ele se considera mais paulista do que mineiro. O inconfundível sotaque caipira corrobora sua percepção. Em 1965, entrou para o curso de direito na Pontifícia Universidade Católica. Militou no movimento estudantil e chegou à presidência da União Estadual dos Estudantes, a UEE*.

Em fotos da época, ele aparece com os cabelos pretos lisos e compridos, o nariz reto aristocrático e uma postura impávida, mundana e desafiadora. Em resumo: Dirceu era lindo. Não chega a ser carismático, mas sempre soube como criar e manter uma rede de lealdades, sobretudo feminina. No movimento estudantil, amigos o chamavam de "Alain Delon dos pobres".

Em 1968, foi preso junto com outros 800 estudantes no 30º Congresso da UNE, em Ibiúna. Quarenta anos depois, acha que foi um erro terem esperado a chegada dos policiais. "Achamos que era melhor resistir, mas aquilo só serviu para a ditadura fichar todo mundo e, um ano mais tarde, saber exatamente quem deveria ser morto, torturado ou desaparecer", comentou. Disse não ter sido influenciado pelo movimento francês de maio de 68. "Vivíamos isolados", contou. Já em relação à Primavera de Praga, a invasão da extinta Tchecoslováquia pela finada União Soviética, com o apoio de Fidel Castro, levou-o a tomar uma posição: "Fui radicalmente contra. Não existe isso de um país invadir outro. Nunca fui stalinista, nunca".

Em onze meses, passou por quatro prisões diferentes. Foi um dos libertados na troca do embaixador americano Charles Elbrick, seqüestrado por esquerdistas. Banido, exilou-se em Cuba, onde, fez treinamento de guerrilha e aprendeu a atirar. "Era igual a esse filme Tropa de Elite: o treinamento era para virar máquina de matar", lembrou. "Mas nunca fiz os exercícios com gosto, não era minha praia."

No exílio, fez uma cirurgia plástica que lhe salientou as maçãs do rosto e mudou o formato dos olhos. Implantou uma prótese para tornar o nariz adunco. Voltou clandestinamente ao país por duas vezes. Na primeira, embarcou armado com uma pistola Brown 9 milímetros. Foi de Havana para Moscou, de lá para Praga, depois para Frankfurt, Bogotá e Manaus. Usou um documento com o sobrenome Hoffmann – ele esqueceu o primeiro nome. Era um passaporte verdadeiro de um judeu argentino que havia morado no Brasil. "Era ouro na clandestinidade, tanto que renovei o passaporte várias vezes na fronteira", contou.

Voltou para Cuba um ano depois e fez outro treinamento: o de como viver na clandestinidade. "Aprendi a andar diferente, a usar outras palavras, a sentar de outro jeito", contou. "Quando eu voltei para o Brasil, se alguém gritasse 'Zé' ou 'Dirceu' na rua, eu nem olhava. Realmente me convenci de que era outra pessoa", afirmou. Com a anistia, voltou à legalidade. Foi a Cuba desfazer a plástica e retornou a São Paulo. Foi funcionário da Assembléia Legislativa, retomou o curso de direito e voltou à política. Envolveu-se na criação do PT e no movimento Diretas Já. Em 1986, foi eleito e depois reeleito deputado federal até que, em 2003, foi ser ministro de Lula.

João Serra escutava o relato maravilhado. "Eu nunca tive um sonho sobre o período do exílio", disse Dirceu. "Sonho com várias coisas, mas com esse período, nada." O sócio se surpreendeu. "O doutor José então não teve traumas?", indagou. "Eu não costumo me lembrar das coisas", foi a resposta. "Elas acontecem e eu viro a página. Não fico no passado. Passou, passou. Nos últimos quarenta anos, minha vida teve ciclos de dez anos. Acaba um e começa outro. O que fica para trás, eu esqueço. Daqui a dois dias, vão me perguntar como foi esse almoço e eu não vou me lembrar."

Quando se trata de assuntos impessoais, no entanto, a memória de José Dirceu é excelente. Ele é capaz de citar números, estatísticas, dezenas de nomes e situações, em cascata. Ao pisar em Lisboa, por exemplo, falou-me sobre a quantidade de desempregados no país, os investimentos brasileiros, o comércio bilateral com os Estados Unidos, os negócios portugueses com outras três nações. Tudo ilustrado com cifras e mais cifras. Ao longo dos dias, deu o mesmo quadro de outros sete países pelo menos, sem falar nas recorrentes exposições sobre a economia brasileira, quando repete de cor as dezenas de metas do plano plurianual do governo.

José Dirceu foi entrevistado, naquela tarde, no escritório dos advogados, por dois repórteres do Diário de Notícias, um dos maiores de Portugal. Eles perguntaram antes se havia algum assunto de que não deveriam tratar. "Não, podemos falar de tudo", respondeu. Dois dias depois, o jornal publicou a entrevista em duas páginas, com o título "Terceiro mandato de Lula seria 'erro gravíssimo'". Depois da conversa com os jornalistas, ele tentou marcar, pelo celular, uma audiência entre o ex-presidente do governo** espanhol Felipe González e um candidato à presidência de El Salvador. O telefone não funcionou direito e ele se queixou: "Odeio essa TIM".

No caminho de volta ao hotel, Dirceu contou a João Serra que só comprava carros usados. Depois, lembrou-se do automóvel que havia sido colocado a sua disposição na visita anterior que fizera a Lisboa: um Porsche Cayenne verde, com bancos de couro claros. "Era muito elegante, mas para mim não dá", disse. "Quer dizer que o doutor José não pode ter um Porsche?", perguntou o advogado. "Não, se eu tiver, viro notícia", respondeu o político. Quando Dirceu entrou no hotel, João Serra me disse: "Eu tinha vinte e poucos anos e já ouvia falar dele; é uma figura mítica para nós, ligados à esquerda".

O vôo de Lisboa a Madri duraria menos de duas horas, mas estava atrasado. Às sete e meia da manhã, José Dirceu desceu correndo do Jaguar, rumo à área do check in da classe executiva da Iberia. Empurrando sua mala pelos corredores, confundiu-se com a má sinalização dos portões. Lamentava ter comido muito e tomado duas garrafas de vinho na noite anterior, em companhia do deputado português Miguel Relvas, seu amigo há décadas.

Por coincidência, a fila de embarque para Salvador e São Paulo, da TAM, ficava ao lado da que seguia para Madri, da Iberia. Mais uma vez, foi hostilizado. "Olha quem está ali, o Zé Dirceu! Olha que beleza, viajando no exterior", comentou um rapaz de mochila. O ex-ministro nem olhou para ele. Chegou ao balcão, pediu uma informação e saiu contrariado. "Olha, quanta falta de educação desse povo da Iberia", disse. "Fui perguntar sobre a conexão em Madri e eles falaram que eu que me virasse, que eles não sabem de nada. Depois falam que no Brasil que é tudo esculhambado. Vou aproveitar e escrever em meu blog", falou antes de partir para a sala VIP.

Ele ignora todas as agressões. Sua capacidade de se abstrair em situações tão embaraçosas é impressionante. Quando falamos sobre a hostilidade, dias depois, ele disse: "Em qualquer lugar que eu vá sempre vai aparecer um para me xingar, mas eu já nem escuto. Converso sobre o assunto com as minhas filhas e com o meu filho Zeca, que é o que mais sofre. É muito sensível. Mas como eles sabem quem sou e como vivo, tenho minha consciência absolutamente tranqüila". Para ele, há uma lógica matemática na probabilidade dos insultos. Sua impressão é de que 40% das pessoas acham que é inocente e 20% não têm opinião formada a seu respeito. Outros 30% não gostam dele, mas não o hostilizam. Dez por cento vão sempre "fazer aquilo", disse, referindo-se às agressões verbais na churrascaria e nos aeroportos.

O avião estava parado na pista do aeroporto de Lisboa. Há pelo menos vinte minutos todos os passageiros haviam embarcado. Esperava-se apenas um, não localizado, para que a decolagem fosse autorizada. O piloto já cogitava a possibilidade de, por segurança, retirar do avião a bagagem do passageiro sumido: ela poderia ser uma bomba. Foi quando o ônibus estacionou ao lado do jato. Dele, desceu sozinho José Dirceu com um ar preocupado. Assim que entrou, apressou-se em explicar o atraso à aeromoça: estava na sala VIP e havia pedido que lhe avisassem quando deveria ir para o portão de embarque, o que não ocorreu.

O vôo chegou a Madri três horas depois do previsto, o que fez com que Dirceu perdesse a conexão para Santo Domingo. Ao desembarcar, ele foi informado de que só haveria vôo no dia seguinte e que, se quisesse retirar sua mala, teria que esperar quatro horas no aeroporto. "Não, não, não posso ficar aqui, tenho muita coisa para resolver na República Dominicana", disse. "Vou alugar um avião para o Panamá e de lá me levam para Santo Domingo. Não dá para ficar aqui, não dá."

Foi encaminhado com outros sessenta passageiros para um balcão onde os vôos eram remarcados. Pelo BlackBerry, ligou para a secretária em São Paulo e disse que arrumasse uma passagem urgente para voltar ao Brasil. Em cinco minutos veio a resposta por e-mail: teria que gastar mais 3 600 euros. "Aí não dá", comentou. A idéia de alugar o avião também passou a parecer estapafúrdia. A companhia aérea ofereceu um hotel quatro estrelas ao lado do aeroporto de Barajas, a 12 quilômetros do centro de Madri, com direito a três refeições e dois telefonemas. A mala ficaria presa no aeroporto. Seria preciso comprar uma muda de roupa e artigos de toalete. "Para mim, o principal é comprar um hidratante", ele falou. "Eu morro louco sem hidratante."

Aos 61 anos, Dirceu tem os cabelos grisalhos e finos, que ajeita para trás com um pentinho verde que leva no bolso da calça. Sua pele é lisa e brilhante, graças aos cremes, e ele nega que seja por causa de plásticas ou aplicações de botox. Sua aguda percepção sobre a aparência se manifesta no uso aplicado de produtos de beleza, no empenho com os exercícios físicos, no guarda-roupa de grifes e na preocupação constante com a perda de peso. Ele quer emagrecer, urgente, 7 quilos. Quando passa em frente a um espelho, ou diante de um vidro com bom reflexo, José Dirceu sempre confere o penteado e a posição do colarinho.

Na sua agenda telefônica, os nomes viram siglas. MTB é Márcio Thomaz Bastos; LEG, Luiz Eduardo Greenhalgh; MAG é Marco Aurélio Garcia. Ainda no aeroporto, ele telefonou para o embaixador brasileiro na Espanha, José Viegas, ex-ministro da Defesa, para saber se estava livre para jantar. Com a resposta positiva, a perspectiva de passar a noite em Madri se tornou menos sombria. "Como a Marta já falou, a gente não pode repetir porque fica feio, mas o negócio agora é relaxar...", comentou, enquanto andava até a van que o levaria ao hotel. "O vôo foi muito barulhento, mas eu não consegui nem brigar com aeromoça: nossa, que mulher linda."

Um carro da embaixada brasileira foi colocado à disposição de Dirceu. Enquanto o esperava, pediu no bar do hotel uma cerveja, batatas fritas e um sanduíche de jamón con queso. Comentou que o melhor quadro do governo é Luciano Coutinho, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. "Que não é petista", ressaltou. O economista, como Dirceu, é um "desenvolvimentista": alguém que privilegia o investimento na produção e na indústria, em vez de zelar a ferro e fogo pela renda do sistema financeiro. Até sair do ministério, ele travou uma luta surda com o ministro Antonio Palocci, o ponta-de-lança do rentismo. Não tem nenhuma dúvida de que, em função da disputa, se Lula tivesse de escolher entre ele e Palocci, o presidente o demitiria. Os dois acabaram saindo do governo e, como eram vistos como sucessores potenciais de Lula, o PT ficou sem candidatos de peso à presidência.

Suas relações com Lula são camaradas, e não íntimas. Eles se conhecem há quase trinta anos, se aproximaram mais na década de 80, mas a amizade jamais extravasou os limites partidários e políticos. Dirceu teve um papel decisivo na transformação do PT numa máquina para eleger Lula presidente. Foi ele quem disciplinou as diversas correntes do partido e anestesiou as alas à esquerda, forjando a política de coligações e a estratégia da campanha nos moldes tradicionais – com financiamento junto ao grande empresariado e a contratação de marqueteiros custosos. Também cultivou políticos de todos os partidos, além de industriais e banqueiros. Ainda assim, ele e Lula tiveram uma divergência política significativa. José Dirceu defendia que a aliança se desse a partir do PMDB, enquanto Lula privilegiou a coligação com os pequenos partidos de aluguel. Nomeado ministro, ele fez um acordo com o então presidente do PMDB, Michel Temer, para que o partido participasse efetivamente do governo, com ministérios importantes. Lula desautorizou publicamente José Dirceu, que se calou.

O toma-lá-dá-cá com a miríade de legendas esteve na raiz do mensalão, que provocou a queda do chefe da Casa Civil. É uma ironia da história: Dirceu perdeu o poder por articular uma política que não era sua, era do presidente. E, com o seu homem forte fora do governo, Lula deu meia-volta e aproximou-se mais e mais do PMDB.

Aparentemente, ele não guarda ressentimentos de Lula, a quem sempre defende e elogia. Contou que fazia seis meses que não via o presidente e que, no governo, jamais ia ao Palácio da Alvorada sem pedir autorização. Também se lembrou de situações em que sentiu "pouca interlocução" com o presidente. Uma delas foi quando chegou à imprensa a notícia de que a Telemar injetara 5,2 milhões de reais na Gamecorp – empresa de joguinhos de computador, cujo dono é Fábio Luiz da Silva, filho de Lula. Ele recordou uma reportagem na qual Lulinha inventara frases suas e contava que estivera em reuniões das quais nunca participou. Dirceu se queixou e a resposta foi surpreendente: "Ele se virou para mim e falou: 'Ah, mas isso não tem problema, não, é só detalhe'. Eu falei: 'O que é isso, Lulinha, você está ficando bobo? Isso é seriíssimo'".

Ele pediu outra cerveja. O lobby do hotel era impessoal e sem graça. Uma televisão estava ligada num canal de notícias que Dirceu olhava de quando em quando. "Para o Lulinha, não importa a verdade", prosseguiu. "É assim: estamos aqui tomando cerveja, neste hotel simples, à tarde. Quando o Lulinha conta essa história, ele conta assim: 'Estavam os dois, à noite, tomando champanhe Cristal no Hotel Ritz, em Paris'. Ele quer melhorar a história, ele fabula. O Lulinha pegava pesado." Na ocasião, Dirceu disse ter procurado o presidente, que respondeu: "Você vai ficar enchendo meu saco por causa do Lulinha, Zé Dirceu?" Ele tomou mais um gole de cerveja. O motorista da embaixada havia chegado.

A filial da loja de departamentos El Corte Inglés ficava a menos de cinco minutos do hotel. José Dirceu disse que estava com preguiça de escolher uma roupa. Durante cinqüenta minutos, examinou as araras da seção masculina, experimentou calças e camisas. Levou uma Ermenegildo Zegna com um colarinho menor do que o seu, que é número 43, roupa de baixo e um par de meias. E o hidratante, é claro. No carro, confessou que queria ter comprado uma calça comprida, mas era preciso fazer a bainha. Comentou que havia visto um terno magnífico, por um preço equivalente ao de um feito por alfaiate no Brasil. Dois dias depois, lamentou outra vez não ter podido comprá-lo. Dali rumou para a casa do embaixador Viegas, no centro de Madri.

"Não preciso nem dizer que tudo o que estou falando aqui é off", disse-me o embaixador Viegas, enquanto bebericava uma dose de uísque. O jantar foi alegre. Conversou-se sobre o ministério da Defesa, a crise aérea, o governo Lula e a busca frustrada de Dirceu por um creme de cabelos da marca Keune. Foi servido espaguete à carbonara e bebeu-se vinho tinto. José Dirceu se contorceu em gargalhadas quando a embaixatriz Erika Stockholm, peruana de nascimento, contou as desventuras do casal em uma praia espanhola. Jovem e esfuziante, ela só anda de Vespa pelas ruas de Madri. Está terminando um curso de decoração de interiores e fará a cenografia de um desfile de moda. Se fosse uma sinfonia, Erika seria o allegro vivace. Na volta, Dirceu ainda ria sozinho das histórias contadas pela embaixatriz. "Sabia que ela era a Xuxa do Peru?"

José Dirceu chegou ao aeroporto carregando a sacolinha dourada do El Corte Inglés com as mudas sujas. Era a primeira vez que repetia uma roupa. Em quatro dias e meio, usara dois ternos, quatro camisas sociais, três gravatas, um sobretudo, uma jaqueta de couro, uma calça de veludo, outra de brim, um mocassim, um sapato preto, um tênis, uma camisa jeans, o abrigo de ginástica da CBF, uma bermuda e duas camisetas. Sua mala era bem maior do que a minha.

A ensolarada Santo Domingo, onde a temperatura média anual é de 30 graus, lembra uma cidade de praia do interior da Bahia. As largas avenidas cortam paisagens de coqueiros, onde barraquinhas de madeira vendem frutas. O mar azul celeste fica à uma hora do centro da cidade, e é lá que se concentram os resorts, lotados de americanos aposentados. Na área urbana, não há praia e a água do mar é escura como chá. Um muro baixo separa o mar das ruas onde circulam os veículos. Na classe alta, a maioria dos dominicanos usa bigode, pinta as unhas com esmalte transparente e ostenta anéis e relógios dourados. As mulheres estão sempre de salto alto, cabelos presos em coques, ou armados com laquê, e muita maquiagem.

"Eu chego aqui e já me dá vontade de tomar rum", disse José Dirceu ao desembarcar, depois de oito horas e meia de vôo, no acanhado aeroporto de Santo Domingo. O ministro Miguel Mejía, um homem de 2 metros de altura que tem o rosto de uma pintura de Botero, o esperava na porta do avião. Foram direto para uma sala reservada, onde Dirceu entregou seu passaporte e o tíquete da mala, o que o poupou da fila e o aliviou do peso de carregar a própria bagagem. "Isso aqui é igual a Cuba: é o sociolismo. Tudo acontece se você conhece alguém socialmente", disse.

O carro estava ligado e à espera do convidado. O ministro assumiu a direção e Dirceu, que o conhece há quarenta anos, sentou-se ao seu lado. No banco de trás havia dois seguranças e uma moça elegante, que acompanhou Mejía o tempo todo. Conversaram sobre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. "El tipo esta loco", disse Dirceu. "Eu não te falei que ele ia perder?" O ministro concordou. Dois dias antes, Chávez havia sido derrotado no plebiscito que previa a sua reeleição ilimitada.

Na opinião de Dirceu, o presidente venezuelano havia feito tudo errado: ausentou-se do país no mês anterior à votação, não tinha vantagem expressiva nas pesquisas, e acabou por dividir sua base de apoio até perder o general mais moderado do governo, além de ter fortalecido a oposição. Fora o fato de ter inventado o referendo em meio a uma séria crise de desabastecimento e rumores de corrupção. "É prepotência, é ambição, é um erro atrás do outro", disse. "Vamos combinar uma reunião de dez amigos do Chávez em Caracas. Temos muito que conversar. É preciso valorizar a situação no Brasil. Nós corremos o risco de perder as eleições em 2010."

José Dirceu já havia comentado que, diante de um fracasso de Chávez, Cuba seria fortemente prejudicada, já que, em troca de produtos bolivarianos, envia mão-de-obra qualificada – médicos, dentistas e professores – para a Venezuela. Mejía contou ter ouvido de alguém próximo ao presidente cubano, Raúl Castro, que o país apoiaria a Venezuela numa reforma democrática, mas não numa ação revolucionária. "É verdade, não acredito que Fidel concordasse com isso", disse Dirceu. Ele recordou que, dois dias antes do resultado, Fidel Castro publicara um artigo insinuando uma derrota. "Cuba sabe dessas coisas, o governo tem serviço secreto, não é bobo", completou.

O carro avançava devagar pelas avenidas engarrafadas de Santo Domingo. Boa parte da frota está caindo aos pedaços. Num dos carros que ultrapassou o do ministro havia oito adultos espremidos e nenhum vidro lateral. Uma toalha de banho cor-de-rosa era usada para controlar o vento. José Dirceu mudou de assunto e disse a Mejía: "Há uma empresa brasileira, uma das maiores, muito interessada em vir para cá. É o grupo do vice-presidente da República, a Coteminas. Eu já conversei com o Josué, o filho do José de Alencar que cuida dos negócios, e eles estão dispostos até a construir a fábrica".

Dirceu chegou ao Hotel Hilton às sete da noite. Por ter o seu nome no cadastro de hóspedes freqüentes, fez rapidamente o check in. Foi para o quarto, no piso executivo, atualizar seu blog. Nele, Dirceu comenta notícias de jornais ou temas que considera relevantes. Muitas vezes, publica dez longos comentários num único dia. Seu estilo de escrita é direto, com poucas metáforas ou firulas de linguagem. Suas análises comportam adjetivos como "lamentável", "uma vergonha", "absurdo" e terminam com uma frase em tom de lição de moral. Em dezembro, lá estavam suas impressões sobre a Bolívia, a Venezuela, a greve de fome do bispo Luiz Cappio contra a transposição do rio São Francisco, a política americana sobre o álcool, o aniversário de Oscar Niemeyer, a sucessão presidencial, a taxa Selic, o fim da CPMF, a política de segurança pública, além de críticas a reportagens e repórteres. Pelo seu controle, o blog tem um acesso diário de 3 mil pessoas. Antes de publicar, ele envia os posts ao seu advogado, José Luis Oliveira Lima, em quem confia muito, e a um amigo, o jornalista Breno Altman. Quando acham que Dirceu exagerou nas críticas, eles o aconselham a baixar o tom.

Às 21h40, Dirceu, de terno, parecia estar sendo engolido pelo sofá da recepção. "Acho que esqueceram de mim", disse, cansado. Há quarenta minutos esperava Mejía para jantar. Foi quando chegou o empresário dominicano Johnny Cabrera, dono da Petroconsa, empresa de petróleo e construções, com quem deveria se encontrar no dia seguinte. Ambos têm um interesse comum: etanol. Segundo Dirceu, Cabrera tem estrutura para fazer o blend do combustível no Caribe e, de lá, mandá-lo para os Estados Unidos, que impõem duras barreiras tarifárias para a importação do produto brasileiro. Vinte minutos depois, chegou Mejía, de quem Cabrera é amigo.

Após o jantar num restaurante italiano, "com gente jovem e bonita", segundo Dirceu, ele e Mejía foram conhecer uma casa fechada onde seria possível instalar um restaurante. "Vou trazer a churrascaria Bassi para cá", explicou o ex-deputado. "Vai ser uma churrascaria rodízio e butique de carnes. O lugar é perfeito, fica em um ponto turístico ótimo." Dirceu também foi procurado por empresários paulistas para entrar como sócio numa franquia do restaurante Floridita, de Havana, que era freqüentado por Ernest Hemingway. O investimento seria de 4 milhões de reais. A parte de José Dirceu, 400 mil reais. "Mas estou achando muito caro", comentou.

O dia seguinte começou com José Dirceu se exercitando na esteira. Dessa vez, em frente à janela da academia do hotel, que dá para uma vista espetacular do mar de Santo Domingo. Outros dois empresários remarcaram o encontro que teriam com Dirceu, já que ele havia atrasado em um dia sua chegada à cidade. O presidente da República, Leonel Fernández, também estava em um compromisso inadiável, o que o deixou com a tarde livre. Ele disse que aproveitaria para escrever seu blog e atender ligações urgentes, como a de um alto executivo da Parmalat, que o chamou pelo celular.

Às dez e meia da manhã, recebeu o amigo Daniel Herrera, a quem chama de Olaf, seu nome de guerra. Herrera é um cubano com um enorme bigode branco que disfarça a falta de dentes. Ele vestia uma guayabera com seu nome bordado no bolso e fumava feito uma chaminé. Olaf é consultor do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega. Nos anos 60, foi encarregado pelo governo cubano do contato com os brasileiros exilados na ilha. Foi ele quem sugeriu que Dirceu usasse na clandestinidade o codinome "Daniel". Com um sorriso, em seu espanhol impecável e forte sotaque brasileiro, José Dirceu me apresentou como "una periodista de la prensa burguesa". Foi a única vez que ele usou uma expressão marxista. Olaf fez graça: "Pelo menos é a imprensa que paga mais, não é?"

O cubano pediu notícias dos companheiros do passado, como Marco Aurélio Garcia. Dirceu deu informações sobre uns e emendou: "O franco-argentino está se metendo demais, vou dar um pau nele no meu blog". "Quem?", quis saber Olaf. "O Luiz Favre, o Felipe", respondeu Dirceu, referindo-se ao nome de batismo – Felipe Belisario Wermus – do marido da ministra Marta Suplicy. Conversou-se sobre Cuba, Venezuela, Nicarágua e sobre a beleza das mulheres brasileiras. Olaf usou a seguinte imagem para descrever a atual realidade política em Cuba: "O Raúl contrata uma orquestra para convocar a população e ninguém aparece. O Fidel toca um apito e o lugar enche".

Ao se despedirem, Dirceu fez o amigo prometer que iria ao Brasil cuidar dos dentes. Seu dentista é o paulistano Fábio Bibancos, que é conhecido como o "dentista das estrelas", tal a quantidade de celebridades que atende, como os atores Fábio Assunção e Ana Paula Arósio. "É um cara sensacional, alguém que eu não conhecia e de quem virei amigo. Ele me defende muito", afirmou. "Tenho certeza de que ele vai ter o maior prazer em fazer isso", disse. Olaf mostrou-se preocupado com os custos e a hospedagem no Brasil. "Você é meu convidado, não precisa se preocupar com nada", disse ao amigo.

José Oviedo, a quem o presidente Lula chama de "Gordito Oviedo", foi conselheiro político da República Dominicana no Brasil. Vestido com uma guayabera amarela de mangas compridas e andando com certa dificuldade devido ao sobrepeso, ele foi encontrar José Dirceu no lobby do hotel. Seu português é perfeito. "O Dirceu era um mito. Era o sedutor da América Latina", contou-me. O elogiado olhava para o lado e ria. "A vovó do rock'n'roll, a Rita Lee, não falou que ele era o dirigente de esquerda mais gostoso do país? Então, era assim que ouvíamos falar dele em todos os lugares." Dirceu atalhou: "O que é isso, Gordo, imagine..."

Juntou-se à turma o ministro Mejía. Entraram em dois carros e partiram para o centro da cidade. Foram almoçar em uma churrascaria lotada, cuja decoração natalina incluía cabeças de alces enfeitadas com gorros de Papai Noel. Houve uma pequena espera e o grupo encostou-se ao balcão de madeira escura. José Dirceu ria, brincava com os garçons e insistiu para que eu experimentasse de seu copo o rum Imperial, que bebia com uma pedra de gelo e limão. "Você nunca provou uma coisa dessas na sua vida", disse-me. De fato, o rum era ótimo.

Enquanto se desviava do entra-e-sai de clientes, Dirceu conversou com Mejía sobre a vantagem de ter um avião Citation. Depois de dez anos, argumentou, sai mais barato ser proprietário de um jatinho do que alugá-lo. Um rapaz com colete e chapéu avisou que a mesa estava pronta. Assim que se sentou, Dirceu disse: "Gooooordo! Estamos na América Latina e ninguém está falando nadaaaaa!", exclamou com as duas mãos espalmadas em cima da mesa e um sorriso escancarado. Numa conversa paralela, perguntei a Oviedo como Dirceu lidava com os xingamentos públicos. "Para ele, é muito difícil", respondeu com uma expressão de desalento.

Uma mulher magra, de cabelo à Chanel, passou ao lado da mesa. José Dirceu a seguiu com os olhos até que ela sumisse de seu campo de visão. "Gordito, aquela mulher estava me secando com os olhos!", comentou. "Olha só, ela tem uns 50 anos, mas nem parece. Eu me casava com ela!", brincou. Em seguida, contou que, numa viagem ao Peru, ao tomar o café-da-manhã no hotel, foi abordado pelo garçom. Uma hóspede havia perguntado sobre el hermoso da mesa ao lado e estava interessada em saber se poderia conhecê-lo. "Quinze minutos depois, chegou o marido", contou às gargalhadas. Ninguém quis sobremesa. O ministro Mejía pagou a conta.

A conexão na Cidade do Panamá, de onde sairia o vôo para São Paulo, era de apenas uma hora. Mais uma vez, José Dirceu escolheu se sentar longe do portão de embarque. Lamentou não ter conseguido ler uma página sequer do livro de Alan Greenspan.

Perguntei como conciliava a atividade de consultor de empresas privadas com sua trajetória socialista. Afinal, ele quer hoje derrubar, reformar ou incrementar o capitalismo? "Tudo o que eu fizer vai ser ligado ao capitalismo", ele respondeu, grave. "Fui chamado para participar de vários processos de fusões e aquisições e não aceitei." Recusou por ideologia? Ele fez silêncio, pensou, e continuou: "Olha, eu não tenho condição de escolher o que fazer e o que não fazer. Eu faço o que dá. Depois do que aconteceu comigo, eu não tenho muita escolha. Meu nome, o que vai ficar de nós para a História, tudo isso é muito complicado. Eu estou muito pessimista, muito pessimista quanto ao meu futuro". Um grupo de chilenos sentou-se ao nosso lado, mas ele prosseguiu: "Por isso, quero ficar longe, quero trabalhar fora do Brasil. Eu não roubei, não tenho dinheiro guardado, não tenho nada. Tenho que trabalhar para sobreviver. A Receita devassou minha vida por dezessete meses e não achou nada. Essa coisa do Bassi, o que eu ganho com isso? Nada. Mas eu sinto que estou melhorando o Brasil, ajudando as empresas brasileiras". Fez outra pausa e finalizou: "Eu tenho que trabalhar". Foi a única vez na viagem que ele pareceu emocionado e triste.

Eram sete da manhã quando o avião pousou no aeroporto de Guarulhos. Os passageiros, ainda sonolentos, olhavam José Dirceu com indiferença. Ele ignorou o free shop e foi o primeiro a cruzar o portão da alfândega.

A casa de José Dirceu, em um condomínio de classe média alta em Vinhedo, a 30 quilômetros de Campinas, fica no alto de uma colina, de onde se vê um bosque de pinheiros. Fazia apenas sete horas que havia chegado do exterior, mas já comandava um almoço para amigos, assessores e familiares. Um churrasqueiro contratado cortava apetitosos pedaços de picanha, frango e lingüiça. Bebia-se prosecco e ouvia-se jazz em alto volume.

A casa de dois andares, pintada de amarelo, não tem grandes luxos. A decoração é no estilo rústico, com armários, cristaleiras e um aparador em madeira pesada. As paredes internas também são amarelas. Na sala de jantar, em frente à mesa de doze lugares, há um único quadro: um espantoso peixe cabeludo, verde, de meio metro de comprimento, com moldura barroca. A obra é assinada pelo senador José Sarney.

Na área da churrasqueira, a mais usada, há duas mesas de madeira, uma geladeira industrial com a propaganda de uma marca de cerveja na porta, e um forno de pizza. A área fica em frente a uma piscina em forma de grão de feijão. José Dirceu apareceu sem camisa, de bermuda cáqui e chinelos azuis. Estava furioso com um ar condicionado que fora instalado em sua ausência. "Quem foi o retardado que pôs isso desse jeito?", perguntou à namorada Evanise, que havia chegado de Brasília na véspera e não sabia do que ele falava.

As duas filhas de Dirceu e a de Evanise, que tem 14 anos, tiravam fotografias de si mesmas, dos convidados e do casal de namorados, que se abraçava e trocava confidências. Quando o almoço foi servido, José Dirceu passou a circular entre as duas mesas, contando episódios da viagem por três países em seis dias. Ao detalhar os vinhos que tomou e os restaurantes onde jantou, disse que todas as despesas foram rateadas com os sócios lusitanos. "Lá é tudo contabilizado, tudo certinho, não é igual aqui", afirmou. Na Europa, seus ganhos estão condicionados aos resultados dos negócios que consegue fechar. No caso, 1% da negociação que deu certo. "No Brasil, os contratos são de 30 mil reais por mês, mas só ganho 0,5% de success fee", disse.

Quando finalmente se sentou, foi na cadeira da elétrica Rosemary Noronha, assessora especial do gabinete pessoal da Presidência, em São Paulo. Amiga do presidente Lula (a quem, como Dirceu, só chama de "Luiz Inácio"), ela estava com um iPhone novinho que atraiu a curiosidade de todos.

Ao retomar o xingatório na churrascaria, ocorrido uma semana antes, Evanise me disse: "Não entendo como ele agüenta, sabe? Como não dá um soco na cara de um sujeito desses. Eu não consigo entender. Uma vez, a gente estava no aeroporto da Venezuela e um homem começou a gritar que ele era chefe de quadrilha, essas besteiras. Ele não faz nada, eu fico louca". "Não pode, Eva", disse o jornalista Hélio Doyle, que foi secretário de governo de Cristovam Buarque, no Distrito Federal. "Se ele faz isso, perde totalmente a razão."

Um dos pretextos do churrasco era discutir os próximos passos de um documentário sobre a atuação de José Dirceu como líder estudantil. Há dois anos, o produtor e diretor de televisão Abelardo Blanco tem gravado cenas, inclusive de uma viagem do ex-deputado a Cuba. O grupo falou sobre uma nova ida a Havana. Dirceu deu uma olhada numa lista de militantes do Movimento*** de Libertação Popular, o Molipo, no qual militou, e deu palpites sobre quem deveria ser entrevistado. "Como alguém já disse, aqui só tem presunto", falou com expressão séria. Dos 32 da lista, havia apenas cinco sobreviventes. Combinaram de ir a Cuba em fevereiro.

O anfitrião abriu um vinho de sobremesa para acompanhar as musses de limão e maracujá. O café foi servido. José Dirceu estava sonolento e com olheiras. A filha Joana veio avisar que ia sair e ele aproveitou a deixa: "Gente, vamos acabar logo porque estou muito cansado, preciso dormir".

No final de janeiro, está marcado seu primeiro depoimento oficial sobre o mensalão. Ele será ouvido na Segunda Vara da Justiça Federal, em São Paulo.

* Correção em relação à versão impressa, na qual se lia "UNE".
** Correção em relação à versão impressa, na qual se lia que José Dirceu tentava marcar um encontro entre o ex-presidente espanhol Felipe Gonzalez e o presidente de El Salvador.
*** Correção em relação à versão impressa, na qual se lia "Movimentação".