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Monday, October 30, 2006

Voto condicional em Luiz Inácio

Voto condicional em Luiz Inácio

Artigo - FRANCISCO DE OLIVEIRA
Folha de S. Paulo
30/10/2006

Votei por uma nova chance de reabrir espaços onde a esquerda, inclusive a que ficou no PT, possa influenciar em alguma medida o novo mandato presidencial

A "insustentável leveza" do meu voto em Luiz Inácio Lula da Silva poderá pregar-me uma peça, mas, de qualquer modo, o voto já foi dado, e como bem me lembrou meu amigo Renato Guimarães, o arrependimento só traz salvação na Igreja Católica.
O presidente já está reeleito, com as urnas confirmando apenas o que as pesquisas de intenção de voto já apontavam. Meu voto, assim, isoladamente, não terá sido o que o reelegeu, mas nem assim a minha responsabilidade é menor. Suas razões aparecem neste texto, escrito antes da eleição, a pedido da Folha, para ser publicado no domingo. Por motivos editoriais, fui informado ontem que ele sairia na segunda.
Votei em Luiz Inácio porque a urna eletrônica tinha apenas o seu nome e o do seu adversário, o já manjadíssimo e em derretimento "picolé de chuchu", segundo charge do Maringoni na "Carta Maior". Que, advirta-se, não é fascista, como muitos do PT se esmeraram em rotulá-lo, como se a rotulação fácil resolvesse o enigma de seus 40% de votos no primeiro turno.
Votei por uma nova chance de reabrir espaços onde a esquerda, inclusive e talvez principalmente a que ficou no PT, possa influenciar em alguma medida o novo mandato. Sou céptico a respeito. Não penso que a política econômica vá mudar; aposto apenas que, até por dever de demagogo, Luiz Inácio prometa que "o céu é o limite" e que as esquerdas e alguns dos principais movimentos sociais possam articular-se para pressionar seu governo.
É preciso criar problemas para o novo mandato, tornar o Bolsa Família incompatível com os superávits primários. Uma lição freqüentemente esquecida é que foram as políticas sociais que conduziram o capitalismo no êxito dos "Trinta anos gloriosos": sem o seguro-desemprego, sem as políticas anticíclicas da teorização keynesiana e também, infelizmente, sem o keynesianismo de guerra, o sistema capitalista teria sido levado à breca.
As esquerdas precisam aprender com o "pequeno grande sardo" Gramsci: a luta política no capitalismo é uma permanente "guerra de posições", e a pregação falsa de unidade acima de tudo somente serve para deixar os flancos abertos para as forças contrárias à transformação social. Assim, em certas conjunturas, a palavra de ordem pode ser "dividir para lutar melhor": foi o que uma parte não muito grande das esquerdas fez ao deixar o PT, entre as quais me incluo para melhor dar conta da complexidade da nova situação, muito acima da simplificação que os sectários fazem.
Estão comemorando com euforia de embriagados o governo cujo primeiro mandato finda-se agora; esqueceram tudo. Nada mais longe do que ocorreu: o primeiro mandato de Luiz Inácio foi um rotundo fracasso, em todos os sentidos.
Não me demorarei a mostrar com números, de que todo mundo anda farto. Mesmo na escala internacional dos "emergentes", o fracasso é mais que evidente. Nenhuma das grandes questões nacionais foi sequer tocada: não me venham com o Bolsa Família, que na verdade é uma reunião dos cacos de antigos programas, que vêm desde o "leite de Sarney" -sim, em política boi dá leite- passando por todos os tíquetes de FHC: Vale-Gás, Bolsa-Escola etc. Cujo inventor, da última modalidade, foi ninguém menos que Cristovam Buarque, quando governador.
O Bolsa Família, que minha ética cristã -como marxista, fui educado, como quase todos nós, na ética cristã, que é uma aquisição civilizatória- impede-me de olhar cinicamente, é uma confissão do fracasso, uma capitulação neoliberal, um reconhecimento de que não existe mais a nação, pois trata-se de um programa-limite, um programa de sobrevivência no dizer de um Agamben. É o programa do Homo Sacer, isto é, dos descartáveis.
Sem a pressão das esquerdas e dos movimentos populares, o segundo mandato pode transformar-se no neopopulismo da era da globalização. Não nos enganemos com as promessas falsas do progressismo: está aí na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo o filme "Infância Roubada", título em português sobre a tragédia da África do Sul. O país, que conseguiu abater o apartheid, um dos regimes mais funestos de que se tem notícia no último século (mesmo se incluído no século do nazi-fascismo), levantando uma onda de otimismo mundial, sucumbiu frente ao neoliberalismo. Trata-se de uma dominação sem mediações: um acordo aparentemente civilizado, obra maior da política, que abriu as portas para uma exploração desenfreada, cujo retrato são as favelas de Johannesburgo, de Durban e da Cidade do Cabo: talvez, responda-me Dante, o último patamar do Inferno. Réplica de Heliópolis, Rocinha e todos os nossos casos.
Um acordo sem rupturas pode dar nisso: se Luiz Inácio governar sem a crítica contundente das esquerdas, e se esta não tiver a capacidade de fazê-lo mudar, podemos aguardar pelo último patamar. Este texto deveria ser para explicar por que votei em Luiz Inácio: está explicado. Votaria nulo, que considero ser também um voto político. Votei no nome do presidente, que, espero, se traduza em transformação. Com um pé atrás. Este artigo é também a continuação da crítica que fiz ao primeiro mandato e que continuarei no segundo.

FRANCISCO DE OLIVEIRA, 72, professor titular aposentado de sociologia do departamento de sociologia da USP, é autor de, entre outros, "Crítica à Razão Dualista" (Boitempo)